Há trinta e oito anos, o Exército começava a abrir uma das mais longas estradas brasileiras. A rodovia BR-163, que liga Cuiabá, em Mato Grosso, a Santarém, no Pará, atravessou uma parte do Brasil onde ainda viviam tribos que nunca haviam contatado o mundo externo.
Abrindo dois quilômetros de mata por dia, os militares montavam acampamentos sobre chassis de caminhão. "Integrar para não entregar a Amazônia. A preocupação era realmente a integração", conta o coronel Severo. Naquela época, o governo militar temia a guerrilha que se opunha à ditadura no país, e também tentava se proteger da suposta cobiça internacional provocada pelas vastas florestas intactas.
No meio do caminho e dos planos do governo estavam as terras dos índios Panarás. Eram quinhentas pessoas que desconheciam os brancos. Apesar de não ter havido conflito, graças ao apoio dos famosos indigenistas Villas-Boas, dois anos depois o povo havia se reduzido a 82 indivíduos. "Começou a febre, deu um grande sarampo naquela época, acabou todo mundo", lembra o índio Akan, um dos sobreviventes.
Hoje, a tribo voltou a crescer e são 420 índios, a maioria crianças. O comandante do batalhão que abriu a estrada lamenta o sofrimento dos Panará, mas defende a construção da rodovia de terra, inaugurada em 1976. "A gente sente orgulho, alegria de ter participado de uma obra tão importante. Era uma estrada larga, estrada de primeira classe, uma viagem tranquila", relembra o coronel Mathias.
Buracos
Trinta e dois anos depois da inauguração, menos da metade da rodovia foi asfaltada. Uma equipe de reportagem da TV Globo partiu de Cuiabá e percorreu todo o percurso de 1.777 quilômetros até Santarém. Foram 20 dias de viagem.
Logo de saída, um flagra de capotamento. Na rodovia falta acostamento e sinalização. Em alguns trechos, a pista é muito ondulada e cheia de buracos. Na beira da estrada, cruzes lembram os mortos em acidentes, e são símbolos de protesto.
A falta de segurança é um dos piores problemas da estrada. Quando se cruza a divisa entre Mato Grosso e Pará, ainda há 900 km terra até Santarém. E o pior: o primeiro hospital está a 750 km, em Itaituba.
Os ônibus têm que elevar a suspensão para enfrentar os buracos. Genivaldo Ribeiro, um motorista que trabalha há dez anos no trecho diz que, se chover, não dá para seguir. "É dormir na estrada, sem condições de nada, com sede, com fome, junto com os passageiros", relata.
Um dos trechos mais perigosos é o conhecido como Cintura Fina. O terreno arenoso faz da rodovia uma espuma derrapante. Basta um erro para que os ônibus e caminhões vão parar nas imensas valas que margeiam a estrada.
O asfalto só aparece a 100 quilômetros do porto de Santarém, um importante acesso para o transporte de produtos à Europa e aos Estados Unidos. A promessa do governo é recuperar a BR-163 até 2011. A obra tornaria mais barata a exportação de grãos de Mato Grosso e daria dignidade às famílias que vivem no Pará. O grande desafio do empreendimento, contudo, será asfaltar a rodovia preservando o que ainda resta da Amazônia.
Destruição da floresta
A BR-163, entre Cuiabá e Santarém, assusta não só motoristas. Apesar das más condições, por onde ela passa a presença do homem dobrou. A do boi, triplicou. E a destruição da floresta, quintuplicou.
O governo já aprovou o asfaltamento de 900 quilômetros dentro da Amazônia. Vão pagar pelo asfalto e cobrar pedágio. Empresas privadas interessadas em mandar milhões de toneladas de soja para o Norte, e produtos da Zona Franca de Manaus para o Sul.
As árvores solitárias dão uma idéia do que foi a Floresta Amazônica às margens da estrada, a BR-163. E o asfaltamento da rodovia vai ser o teste para se saber se nós brasileiros vamos conseguir ou não ocupar a Amazônia sem a devastação que foi até agora a marca da chegada do homem a região.
Valeu até agora a lei do mais forte na área de influência da estrada, que abrange um quarto do território nacional, segundo a definição do governo.
A área de influência inclui as zonas mais cobiçadas por madeireiros, garimpeiros, pecuaristas e agricultores. Avanço que é sinônimo de desmatamento.
Para esse imenso território o governo propõe um plano prevendo a criação de dezenas de áreas protegidas, como florestas nacionais, reservas indígenas e unidades de conservação.
E está tentando convencer a população e os interesses locais em Novo Progresso, no Oeste do Pará, de que a combinação de restrições e incentivos, prevista no plano, trará benefícios a todos. Não tem sido um diálogo fácil.
O motivo da briga é claro: Novo Progresso vive da extração e comercialização da madeira, no momento proibida pelo governo, que impôs severas restrições à região inteira em conseqüência do assassinato da freira Dorothy Stang.
Mas a poucos quilômetros dali o negócio da madeira prossegue como sempre.
"Cheguei ontem, é a primeira viagem, fazer o que, tenho de trabalhar", diz o caminhoneiro.
São milhares de pessoas que vivem de uma atividade no momento proibida, que se acostumaram a ver riquezas amontoadas na beira da rua, e para as quais o governo só proíbe, ou não cumpre o que promete.
"O governo obriga a tirar a madeira de maneira irregular, não tem como trabalhar pois o governo não regulariza", diz um trabalhador.
A floresta na região da BR-163 esconde, de fato, enormes riquezas. Em alguns casos é ouro puro, explorado há décadas. Em geral, sem a mínima preocupação com o meio ambiente.
As águas escuras são limpas, são as do Rio Tapajós. Estão sendo poluídas pelo Rio Crepori, contaminado ao longo de dezenas de quilômetros por dejetos lançados por balsas que, segundo a lei, não deveriam estar trabalhando. Ou por garimpos que, segundo as mesmas leis, não deveriam estar poluindo os rios.
No centro da área onde o governo quer declarar como Floresta nacional e onde, supostamente, não deveria existir nenhum tipo de atividade de garimpeiro, muito menos este tipo de atividade que polui o rio desta maneira. Mas os garimpeiros estão lá há muitos anos, e dizem que não têm a menor intenção de abandonar a área.
É enorme a desconfiança em relação ao poder público e seus planos.
"Onde se descobre uma grande reserva de ouro se cria uma reserva ambiental ou indígena. Está se passando sobre os direitos que já foram concedidos anteriormente para o os próprios garimpeiros e hoje querem se criar uma reserva pegando uma parte da reserva garimpeira", diz Dirceu Frederico Sobrinho, da Associação das Mineradoras de Tapajós.
Voar pela região de influência da BR-163 mostra não só que a expansão da mais nova fronteira brasileira foi, até agora, desordenada. Não só os grandes desconfiam das autoridades.
O agricultor Felix Feli e a mulher já pegaram cada um cinco malárias tentando viver num assentamento, próximo à estrada, iniciado pelo Incra, mas em parte já abandonado pelos primeiros colonos.
O casal fez a terra render sem crédito, sem apoio técnico, sem qualquer documento de posse.
"O documento melhor da terra é você, estando nela, trabalhar. O Incra só dá terra para quem fica acampado esperando, esperando toda a vida. O cara que quer trabalhar, quem é trabalhador não pega pelo Incra", conta o agricultor.
Talvez o plano para a BR-163 seja a última oportunidade para se provar que pode ser diferente do que foi até agora a exploração de vastas áreas da Amazônia.
Convencer, reconhece o governo, começa com concessões.
"É necessário ter algum grau de flexibilidade nessa negociação", avalia Julio Miragaya, economista do Ministério da Integração Nacional.
Ambientalistas, de um lado, e o universo de quem explora as riquezas, de outro, terão de ceder. Desse compromisso depende a Amazônia que eles vão receber.
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1 Comentário(s).
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tayna de lima correia 22.09.09 16h12 | ||||
gostei muito do seu texto,ficou muito legal,parabens pelo trabalho | ||||
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