Nascido no Rio de Janeiro, o advogado e escritor Eduardo Mahon, de 42 anos, é um apaixonado pela cultura de Cuiabá, cidade onde fincou raízes no início da década de 80. Do linguajar à literatura, da história tricentenária à política atual, pouca coisa sobre a cidade escapa de seu radar.
Dessa convivência de quase quatro décadas, o escritor concluiu que a grande atração da Capital - que neste dia 8 de abril completa 300 anos -, é mesmo seu povo. E é o cuiabano, em sua opinião, quem transformou a cidade em um centro de gravidade que atrai gente de todos os lados, a despeito do clima, da distância e de outros tantos obstáculos.
Por isso, Mahon avalia que a classe política - especialmente o prefeito Emanuel Pinheiro (MDB) e o ex-governador Pedro Taques (PSDB), dois cuiabanos - errou na condução dos preparativos para os 300 anos da cidade. E o grande erro foi justamente ignorar o valor do cuiabano e seus costumes como um dos elementos centrais da cultura da cidade.
"Ele [Emanuel] acreditou francamente que quem nunca teve o menor contato com a cuiabania iria ter 'know how' para fazer as comemorações dos 300 anos da cidade", disse, referindo-se ao ex-secretário da Secretaria dos 300 anos, Júnior Leite.
Na entrevista que deu ao MidiaNews nesta semana, o advogado ainda falou sobre a história da cidade, a Câmara de Vereadores, o Centro Histórico, a relação dos moradores com o agronegócio e outros temas.
Confira abaixo a entrevista na íntegra:
MidiaNews – Na sua opinião, há o que comemorar nesses 300 anos de Cuiabá?
Eduardo Mahon – A única coisa a se comemorar nos 300 anos de Cuiabá é o cuiabano. É a capacidade da cidade, que é uma capacidade fenomenal, de magicamente ser um centro de gravidade. Talvez por que seja o Centro Geodésico da América do Sul. Eu não sei exatamente o que é, mas nós temos registros históricos de, além de paulistas, fluxos migratórios da Itália, da França, do Líbano, da Síria, do Sul... E as pessoas não vão embora. Por quê? O que é que tem aqui? Cuiabá é uma cidade bonita? Não. Esteticamente falando não. O que é que tem em Cuiabá? Oportunidade de emprego? Mas tem em outros lugares também.
Aliás, Cuiabá cresceu muito na década de 80, depois parou. Agora estamos vivendo uma crise. Crise é crise em qualquer lugar. Mas por que as pessoas ficam aqui? Cuiabá não tem grandes opções de lazer. Eu tenho três filhos, não há uma grande opção. Eu vou levar meus filhos aonde? Pro Sesc e pro Manso. Teatro existe em Cuiabá? Existe, mas está caminhando agora, com a Escola de Teatro. Música tem em Cuiabá toda a semana? Não. Shows nacionais e etc. Isso aqui não é roteiro, não compensa vir pra cá, por causa do público e por causa do custo de deslocamento da produção. Então Cuiabá, aparentemente, é uma cidade sem grandes atrativos. E eu fico me perguntando “por quê Cuiabá?”. A única coisa a se comemorar nos 300 anos da cidade é o cuiabano.
MidiaNews – Entra ano, sai ano, os problemas parecem que são os mesmos. A gente está falando de falta de infraestrutura, esgoto a céu aberto, saúde pública deficitária. Especificamente nessas áreas, qual a leitura que o senhor faz?
Eduardo Mahon – A leitura é que não há nada de novo sob o Sol. Se você parar para pensar, Cuiabá foi fundada em 1719, e quando foi 1735 acabou o ouro. Acabou o ouro! Não tinha comida porque não havia grandes plantações, havia uma crise de água potável. Então Cuiabá ficou desertificada. Foram necessários outros atrativos econômicos para que as pessoas voltassem a vir para Cuiabá. O século XIX foi interessante porque foi um período de relativo isolamento da cidade.
Agora, qual é a novidade? Na educação pública, a crise é desde [Augusto] Leverger. Não sei se você sabe, mas Leverger foi quem instituiu a educação básica em Mato Grosso. Não havia educação básica, não havia professor de ensino básico em Mato Grosso. Nós estamos falando de 1880, depois da Guerra do Paraguai.
E saúde? Antes da Santa Casa, não havia nada em Cuiabá. Cuiabá nunca foi uma cidade extraordinária, com serviços extraordinários. É romantismo dizer que o passado de Cuiabá era melhor. Isso é uma tendência comum. Sempre esteve em crise, claro fazendo uma leitura muito fria, muito panorâmica a respeito da história.
MidiaNews – Por que não melhora então?
Eduardo Mahon – Aí é a pergunta! Nos últimos anos, o gestor tem saído do Parlamento. Esse gestor perde, tem um déficit de sensibilidade na saída do Parlamento para o Executivo. No Parlamento ele é supersensível, atende todo mundo, fala com todo mundo, está pensando em tudo, propõe todas as leis, debate tudo, dá entrevistas. Quando ele faz a migração para o Executivo, primeiro se isola na patota. Isso aconteceu com Dante [de Oliveira], aconteceu com Silval [Barbosa], aconteceu com [Blairo] Maggi e isso está acontecendo com Mauro Mendes, Emanuel Pinheiro e todos os outros prefeitos. Porque eu acho que a administração consome muito. Ele se isola, se encastela entre os apoiadores, os amigos que aplaudem: “Nossa, você é fenomenal”. “Não, fulano não vale nada, etc”. O crítico sempre está errado e o apoiador sempre está certo. Há um déficit de sensibilidade.
Ademais, você tem que parar para pensar o seguinte. Vamos falar francamente? A manobra para o administrador público é de cerca de 1% a 3% do orçamento. Ou seja, o que não está comprometido em verbas vinculadas na Constituição Estadual e Federal, está comprometido com funcionalismo e aposentadoria. Então, de tudo que se arrecada, o administrador precisa ser criativo e propor soluções com 1% a 3% do orçamento. Três por cento quando o Estado está absolutamente desafogado.
MidiaNews – Há uma certa incompetência por parte do setor público ou uma negligência, uma falta de priorização em relação a essas questões mais relevantes da esfera pública. Porque entra prefeito, sai prefeito e não se consegue avançar. O senhor acha que falta capacidade ou, com o advento da reeleição, chega no meio do mandato o gestor já começa a pensar na próxima eleição?
Eduardo Mahon – Não, não é isso. Eu acho que o Emanuel Pinheiro não está pensando em reeleição porque ele não experimentou o impacto do vídeo do Silval. Quem experimentou o impacto do vídeo do Silval não se elegeu, concorda? Nenhum! Ele está chegando aos bairros. Por exemplo, o Vanderlúcio [Rodrigues da Silva, de Obras Públicas] é um excelente secretário. Mas o Emanuel sabe que, na hora da eleição, o impacto daquele vídeo, que é um vídeo que não precisa de legenda, vai desmontá-lo eleitoralmente. Ele não está pensando em reeleição.
A questão é o seguinte: o "patinho feio" do sistema federativo é mesmo a prefeitura. Eles dizem isso, a gente não acredita, mas é verdade. A prefeitura, se ela não tiver o repasse de verbas às quais tem direito, de Saúde, Educação, etc, não trabalha. Até que ponto isso é culpa do gestor? Para ser sincero, nós podemos dizer que grande parte da falta de iniciativa ou, digamos, da falta de capacidade de investimento da Prefeitura, se deve à situação da estrutura constitucional federativa. Nada mais que isso.
Agora, o que você pergunta é muito relevante pelo seguinte: o que eu não vejo não é capacidade, o que eu não vejo é o espírito público - aí já é outra história. O espírito público. Independente de quem será o próximo, eu não posso pensar só no meu mandato. O que acontece geralmente é que os governantes, inclusive prefeitos, montam armadilhas, como Silval fez. E diria como Taques fez para os seus sucessores. Aí sim eu acho que é um déficit moral.
MidiaNews – Como o senhor analisa a atuação da Câmara de Vereadores?
Eduardo Mahon – Péssima! Se você pegar os seis últimos gestores da Câmara, ou foram afastados ou são processados, ou foram condenados. É uma tragédia o nível que nós temos de representação municipal. É uma tragédia. Por que isso acontece? Essa é a questão. Cuiabá cresceu muito – agora eu vou dar um chute –, não acompanhou o nível educacional e, no final das contas, o que o vereador pode dar é rua asfaltada, é a gestão de uma praça no bairro, é a gestão junto da Prefeitura com o Executivo de algum tipo de migalha para aquele eleitorado. Elege-se então o pior dos piores dos piores. É difícil competir em baixo nível com a Câmara de Cuiabá. É muito difícil.
MidiaNews – O senhor imagina uma maneira de se quebrar esse ciclo?
Eduardo Mahon – Não. A única maneira de se quebrar esse ciclo é ter paciência. Nós estamos vivendo uma democracia. Então, é ter paciência e investir em educação. É um investimento horrível porque é demoradíssimo, oneroso. O ciclo da educação só fecha em 13 a 15 anos. O sujeito começa com 6 anos e ele vai estar pronto para votar com 16, 18 anos. Se não começar a fazer uma boa educação aqui, em três mandatos você ainda você não vai ter a percepção de melhoria. Então, não tem nenhuma expectativa de melhora. Eu sou pessimista, mas sou muito realista.
MidiaNews – O senhor foi presidente da Academia Mato-Grossense de Letras, que fica no Centro Histórico, e conviveu muito com a decadência daquele lugar, inclusive tendo sido vítima da criminalidade, com a invasão de bandidos à sede. Por que ninguém consegue resolver aquele problema?
Eduardo Mahon – Na minha gestão na Academia eu fui, não diria obrigado, mas para aquilo ali funcionar, eu botei muito dinheiro do bolso, porque eu apostei que aquilo ali pudesse virar um centro. E nós, junto com a Praça da Mandioca, nós pudéssemos dar um 'up' ali para o quadrilátero histórico. Se você parar para pensar, Cuiabá histórica é um quadrilátero, da Rua do Campo, que é a Barão de Melgaço, até a Rua de Baixo. É muito pequeno.
Então, o que a gente fez? Show de 100 anos de samba: 600 pessoas. Cartola: 250 pessoas. Dez posses: cada posse com 300 pessoas. Praça da Mandioca. Aqui tem que ter povo, Carnaval tem que ser aqui. Isso aqui vai virar uma grande Lapa. Qual é o apoio que o poder público dá? Zero. Cadê o policiamento? Não tem. Então eu, pai de três filhos, não posso levar os meninos, porque o vidro do meu carro vai estar quebrado se eu parar duas ruas acima. Iluminação? A Prefeitura não ilumina. O que é que eu vou fazer lá dez horas da noite, onze horas da noite?
A Prefeitura não faz calçadão, nem providencia estacionamento, nem deixa que os bares tomem conta da rua. Ou seja, no português claro, não trepa nem sai de cima.
MidiaNews – A Secretaria dos 300 anos alugou um imóvel na Avenida Getúlio Vargas e em um ano não o utilizou. Há uma simbologia em torno da data. Houve uma tentativa de se fazer um marketing por parte da Prefeitura, mas o senhor vê algo efetivo nesse sentido?
Eduardo Mahon – O que eu acho é o seguinte: vamos nos socorrer de história como sempre. Quando Cuiabá fez 100 anos, não houve festa. Mandaram fazer umas bandeirinhas na Praça Alencastro, que nem se chamava Praça Alencastro. E só. Houve uma comemoração muito rápida, mas não houve festa,. Nos 200 anos, nós tivemos uma sorte de ter o governador Dom Aquino. Você nem se lembra do nome do prefeito, mas o governador era o Dom Aquino em 1919. Ele fundou o Instituto Histórico e deixou para aquele grupo de intelectuais, sobretudo Estevão de Mendonça: “Façam uma festa”. Aí teve publicação, teve medalha comemorativa, teve festa na rua, teve festa na praça, teve missa, teve cavalgada. Uma cidade pequenininha como Cuiabá comemorou pela primeira vez seu aniversário.
Em 1969 teve um responsável pela festa, que não precisou ganhar nenhum centavo, que não precisou mobilizar rigorosamente nenhum centavo público, um sujeito chamado Rabello Leite, pai da Carlina Rabello Leite. Ele, sozinho, do escritório dele, organizou os 250 anos de Cuiabá. Festa, baile da cidade, bolo, miss, gente de outros lugares do País. Cuiabá também era uma cidade pequena, então onde se comemorava? No Centro.
Veio José Pedro Taques, cuiabano com aquelas histórias que eram romantizadas, que uma vez ele subiu na árvore e viu passando salgadinhos para posse do Frederico Campos e disse: “Poxa, algum dia eu vou ser governador”. Bom, então vem um cuiabano aí e vai preparar a festa dos 300 anos, independente se for reeleito ou não. Zero! Fizemos várias reuniões com ele, colocamos uma pauta por escrito, fez a maior propaganda. Zero.
Emanuel Pinheiro, outro cuiabano. O que aconteceu agora? Em razão da incapacidade de escolha das pessoas certas, essa é a verdade, o Emanuel Pinheiro agora está migrando para a comemoração, porque ele acha que é um evento. É de uma limitação, de uma obtusidade à toda prova. Ele acha que é um evento. Ele está migrando do evento, como não vai ter mais, para pequenos eventos descentralizados, que aliás deveria ter sido assim, e entrega de obras. Então, ele está migrando a comunicação dele. Ele errou absolutamente. Ele precisa convocar a sociedade. Agora acabou. Agora a sociedade está pensando: “como é que eu vou comemorar sozinho?”.
MidiaNews – Como o senhor acha que deveria ter sido?
Eduardo Mahon – Assumiu, o que nós ainda temos de cuiabania? Temos muito. A cuiabania decidiu a eleição entre Wilson Santos e Alexandre César. Temos muito de cuiabania. Se você puxar o fio do novelo de alguém, você vai ver primo em toda cidade. Nós temos muito ainda. Agora é preciso saber costurar esse pessoal. Ele não fez isso. Ele acreditou francamente que quem nunca teve o menor contato com a cuiabania, iria ter "'know how" para fazer as comemorações dos 300 anos da cidade.
Então, quando você resume a comemoração ao evento talvez seja ele a pessoa adequada. Porque o [ex-secretário da Sec 300] Junior Leite sabe fazer evento. Ele é um profissional de evento, organização, segurança, mas isso não é a comemoração dos 300 anos da cidade. Não é Anitta, não é Chitãozinho e Xororó. Pensar assim é você se divorciar completamente da história da própria cidade.
Eu vou só fazer um último comentário para não dizer que a minha critica é desonesta. Quando o Junior Leite assumiu, ele pediu a uma amiga nossa em comum que o levasse para jantar na minha casa. A pessoa insistiu e eu recebi. Fizemos um jantar e eu fiz a pergunta que você está me fazendo. “E aí? O que temos?”. Aí ele me respondeu: “Vamos entregar o Pronto Socorro, vamos entregar uma trincheira, vamos entregar isso, vamos tentar aterrar dos fios, etc”. Eu falei :“Poxa, legal, mas isso é a gestão. O que eu quero saber é o que nós temos para os 300 anos. Isso são atos de gestão. Qual o resgate que você vai fazer? Com quem você vai dialogar?". Ele me disse: “Nós vamos fazer uma modernização na cidade”.
Minha mulher nunca dá opinião. Ela é uma pessoa "low profile". Você nunca vai falar com ela, você não vai vê-la em lugar nenhum. Ela parou de comer, olhou para ele e falou: “Modernização? Então deixa eu entender uma coisa: você vai comemorar 1.200 anos de Veneza colocando outdoor eletrônico na cidade?”. Quer dizer, a questão conceitual é o problema. Eu falei: “Junior, deixa eu te falar uma coisa: você sabe o que é o Senadinho, do lado da Prefeitura, onde ficava o Oriente Tenuta? Você sabe onde ficava a Dona Maria de Arruda Müller? Sabe onde ficava a casa do Estevão de Mendonça, José de Mesquita?" “Não”. Falei: “Irmão, você vai ter que fazer um curso intensivo de cuiabanês aqui”. No outro dia, para dizer que não sou um cara que fica criticando, peguei cinco ou seis livros só de cultura cuiabana, quase todos esgotados, mandei para ele. "Leia, aprenda a gostar da cidade".
MidiaNews – O senhor falou em cuiabania. Qual é a cara e onde está a cuiabania? O senhor não acha que a cuiabania deveria tentar se impor um pouco mais?
Eduardo Mahon – As pessoas hoje se organizam de uma maneira diferente de há 30, 40 anos atrás. Com o surgimento da internet e das redes sociais, a antiga organização presencial das pessoas acabou. Então, não espere que a cuiabania vá para o meio da rua pontificar em algum tipo de evento coletivo de natureza bairrista. Não vai acontecer mais isso. Mas não tem apelo essa cuiabania, como Silva Freire falava? Tem. O grupo Cuiabá de Antigamente [no Facebook] está chegando a 100 mil pessoas. Se nós não temos nem 1 milhão de pessoas aqui, como é que pode um grupo chegar a 100 mil pessoas? A maneira de se organizar hoje é diferente. A coisa mais difícil do mundo é tirar você de casa e colocar no meu evento. É muito difícil isso acontecer. Então, o que eu tenho que fazer? Tenho que levar de alguma maneira o meu evento, a minha informação, até você que está aqui trabalhando, que está na sua casa.
A Prefeitura é tão incapaz que eles não foram zelosos, eles não tiveram tirocínio de fazer um site interativo. “Deixe aqui sua foto, a foto da sua família. Vamos construir um álbum coletivo da cidade”. Família Biancardini, família Mamede, família Scaff. Um cuiabano com uma equipe não teve o tirocínio de fazer um site que custa R$ 10 mil, R$ 15 mil. Nós estamos vivendo em um mundo digital e a pessoa não teve a capacidade de contratar alguém, fazer um site, fazer um grande álbum coletivo. Na Wikipedia você mesmo escreve o verbete e você pode interferir no verbete do outro para acrescentar. Vamos fazer uma Wikipedia cuiabana. Precisa ser muito inteligente para fazer isso?
Mas existem representantes da cuiabania. Como você encontra? Eles não moram mais no Centro. O Centro ficou desertificado, houve um êxodo. Eles moram agora nos prédios e nas cercanias da cidade. Como você convoca, como você encontra? Fale a língua deles. Se eu gravar um áudio e colocar nos grupos de discussão, quem se emociona vai responder. Se eu colocar uma fotografia do obelisco na Praça do Porto, quem viveu aquilo vai te responder.
Então, é uma incompetência brutal de comunicação social. Eu fico absolutamente estarrecido como vocês da mídia fazem todo dia o que eles não fazem. “Vou disparar para 500 pessoas no grupo de WhatsApp as notícias do dia”. Na lista de transmissão, você vai jogar cinco mensagens, atingiu mil pessoas. Mas nem isso o gestor público faz.
MidiaNews – Então dá para dizer que a Prefeitura de Cuiabá, nos 300 anos, esqueceu o principal componente da cidade?
Eduardo Mahon – O cuiabano. Esqueceu. Não é só a Prefeitura. O Governo José Pedro Taques é responsável pela falta de suporte e diálogo com o gestor público municipal. E o cuiabano Emanuel Pinheiro foi responsável pela falta de criatividade na comemoração da cidade. Veja: comemorar o aniversário da cidade não precisa ter muito dinheiro. Precisa ter inteligência e estratégia, mas isso não tem.
MidiaNews – O senhor acha que exista uma identidade genuinamente cuiabana? Tirando essa questão de cuiabania, que às vezes também restringe, mas o que senhor vê como identidade?
Eduardo Mahon – Quando você fala restringe, vem aí uma impressão errada, que era minha. Eu esculhambei muito Cuiabá porque olhava e sentia que a cuiabania era a aristocracia cuiabana. Em outras palavras: gente rica que morava nos casarões. Esse é um erro de percepção.
A cuiabania a que estou me referindo não é das grandes e maiores famílias de Cuiabá. A grande maioria dos cuiabanos eram pessoas absolutamente simples. Era o sapateiro, o açougueiro, o costureiro. Mas essas pessoas antigamente, até a década de 70, ainda que fossem pobres, tinham uma posição social estratégica. Então a costureira era superinfluente. A banqueteira, dona Elza Biancardini, era superinfluente. O radialista José Rabelo Leite, que fez a festa dos 200 anos, era superinfluente. O sujeito da farmácia era o grão-mestre da Maçonaria. Quem cuidava da bilheteria do Clube Feminino era superimportante.
Então, o significado da cuiabania, ao contrário do que parece e era a minha visão como carioca, é que ela não está fincada nos Campos. A cuiabania é simplesmente da pessoa que nasceu aqui e entendia a lógica da cidade. Nós não vivíamos numa sociedade, nós vivíamos numa tribo. Viver em sociedade pressupõe que ela é muito grande. Você mora em um prédio e você não quer saber da vida do seu vizinho, não te interessa, não é da sua conta. Viver numa tribo, viver em comunidade que era Cuiabá, é se interessar pela vida do outro, do vizinho. “Me empresta uma panela? Vou fazer doce, não tenho uma panela grande”. Essa vida voyeur de Cuiabá, na janela, na calçada, é uma vida essencialmente comunitária, é uma vida de relações de ajuda. Quem é que está ajudando o Jejé? O Jejé está falando bem de quem? Então vou alavancar você para você levantar a bola para mim. Isso é uma vida comunitária de cidade pequena.
MidiaNews – Qual o traço mais nítido da identidade atualmente?
Eduardo Mahon – Cuiabá sofreu um fluxo migratório em 1960, o segundo grande fluxo migratório em 1970 e o terceiro e último fluxo enorme em 1980. O cuiabano se equivocou em algumas coisas inicialmente. O primeiro equívoco do cuiabano foi hostilizar as pessoas de fora. “Pau rodado” e o “cu branco” como se falava. Essa hostilidade não era generalizada, mas era bem presente, inclusive na literatura. "Você está aqui para quê? Para trabalhar? Seja bem-vindo, deixa eu explicar para você o que é Cuiabá". O cuiabano não fez isso. Diante do choque de migração, é claro que eu, do Rio de Janeiro, chego na minha escola de Ensino Médio e ouço “tchá tchá tchá, tché tché tché”. Evidentemente eu não estou acostumado com isso.
O cuiabano não soube se comunicar e hostilizou. O segundo é o contrário. Na hora do vamos ver, que deveria falar “não, espera aí, isso aqui é uma reserva nossa”, que é a representação política, do poder, o cuiabano abriu. Então, é muito engraçado, porque ele se fechou no aspecto de reação cultural, interpessoal e se abriu na relação de poder. Cuiabano nunca foi um financista, o cuiabano quebrou. Politicamente, ele perdeu os espaços hegemônicos. Financeiramente, o cuiabano nunca soube fazer investimento. Cuiabano não gostava do interior, nunca passou na cabeça do cuiabano sair de Cuiabá e abrir uma terra em Sorriso. Nunca!
O cuiabano médio queria estar no Banco do Brasil, no Tribunal de Justiça, no Tribunal de Contas, queria ter estabilidade. Quando esse pessoal fez isso e voltou para Cuiabá 20 anos depois, rico - e o plano do agronegócio foi: agora que já nos estruturamos como segmento econômico, financeiro, agora nós vamos tomar o poder -, o cuiabano não teve armas para se proteger. Foi isso que aconteceu em Cuiabá.
MidiaNews – O senhor vê uma interação entre Cuiabá e o agronegócio?
Eduardo Mahon – “Cuiabá, Capital do agronegócio”. Nada mais enganoso. O cuiabano não suporta esse papo. Agora, isso é uma coisa que temos que massificar porque vende, não interessa o que se pensa. O cuiabano, a cuiabania, não suporta isso. Cuiabano é uma pessoa que está ligada à própria cidade e às redondezas da cidade, ou seja, a vida da chácara, a vida ribeirinha no Coxipó do Ouro.
O cuiabano não está pensando no dividendo do agronegócio. Dê uma olhada em Primavera [do Leste], como é linda. Mas o cuiabano fala: “Eu prefiro a minha cidade velha, porque nela me identifico. Quero Cuiabá deste jeito aqui, não quero mudar Cuiabá”. Então o cuiabano - e eu me sinto hoje mais cuiabano que a grande maioria dos cuiabanos - não quer mudança. O cuiabano quer que melhore as coisas que há, mas o cuiabano não quer um arranha-céu no Centro da cidade. O cuiabano não quer uma casa, como existe no interior agora, de muro de vidro. É tanto dinheiro que está correndo no interior que as casas de lá estão sendo feitas como em Brasília: o muro agora é de vidro.
MidiaNews – Uma constatação que se faz é que Cuiabá está de costas para o rio. Existem capitais no Mundo inteiro que abraçam seus rios, que tornam o lugar ponto de referência, de passeio, cultural. Houve essa questão de revitalização da Orla do Porto. Mas de fato, na sua opinião, o rio precisaria ser abraçado por Cuiabá?
Eduardo Mahon – Na minha primeira visita ao Recife, terra do meu pai, às margens do rio que corta a cidade, há vários depósitos abandonados. Da mesma maneira que havia em Lisboa o cais do porto, que há 20 anos era uma zona de prostituição, de drogas. Com a Expo, eles fizeram uma nova cidade ali. Por que não é assim em Recife? Meu pai falava “Ah, porque ninguém vê”. Mas eu falava: “Gente, isso aqui é um rio lindo, podia fazer um boteco aqui, como se faz em Amsterdã”. Porque a gente vai ficando fresco quando viaja. “Podia ser uma Amsterdã, podia ser uma Paris e tal”. Mas nós não temos essa tradição. Sobre essa história de estar de costas para o rio Cuiabá, eu quero perguntar o seguinte: quando é que esteve de frente?
As pessoas romantizam o passado. O Porto não era parte da cidade, era o Porto! "De onde que você é?" As pessoas falavam: “Eu sou do Porto”. As pessoas não falavam: “Eu sou de Cuiabá”. Você quer achar um cuiabano? “De onde é que você é?”, “Ah sou lá do Porto”. “Você morava do lado de quem?”. “Morava do lado de Loló”. “Ah, na frente da praça!?”. Nunca esteve de frente para o rio. Talvez na chegada das chatas, com a família Miguês, com a família Scaff, que faziam esse grande comércio até Corumbá, Montevidéu, Rio de Janeiro. Depois do hidroavião, que era chiquérrimo. Talvez sejam esses os dois últimos momentos em que o cais, que era do final da XV de Novembro, tenha ganhado um significado especial em Cuiabá. Agora, além do mais, quando é que aquela região foi grandemente enxergada pelos governantes? Nunca.
MidiaNews – Essa tentativa de se revitalizar a Orla do Porto funcionou?
Eduardo Mahon – Acho que foi interessante, muito embora infeliz no aspecto estético. Revitalizar a Orla é muito interessante porque nós ganhamos um local para passear, levar turista, levar família, fazer um show, eventos, food truck... Bacana, ganhamos um local. Ocorre que, como sempre – aí eu não sei se é cacoete meu mas faço a crítica – o que aconteceu foi uma caricatura de Cuiabá, foi uma tristeza. Quer dizer: enquanto a Casa de Bem-Bem cai, se faz uma maquete com a Casa de Bem-Bem. Enquanto a Casa Orlando está para cair, se faz uma maquete da Casa Orlando. Enquanto a Papelaria Pêpe caiu, se faz uma maquete da Papelaria Pêpe.
Ali Mauro Mendes passou um recibo de que não fez no Centro o que fez em maquete. A ideia central é fenomenal. Apoio, acho que deve ter um alargamento, uma continuação para a Beira Rio, em direção à Unic, ao UniRondon, para requalificar, fazer quiosque... Eu quero passear na Orla como eu faço no Parque Mãe Bonifácia, que era a menina dos olhos do Dante de Oliveira. Vou deixar meu carro, vou tomar uma água de côco daqui a 2,5 km. Chique! É digno. É legal a ideia, mas fazer aquela maquete é um deboche com a cuiabania tradicional do Centro.
MidiaNews – O senhor citou o Parque Mãe Bonifácia, que é um lugar onde as famílias têm a oportunidade de confraternizar, como outros parques criados recentemente. Vemos no Parque das Águas famílias fazendo piquenique, tirando fotos de noivado, comemorando aniversário... Acha que a criação dos parques foi uma boa sacada?
Eduardo Mahon – Quem é que se lembra que o Dante de Oliveira resolveu o problema de energia do Estado? Quem é que se lembra que o Dante fez uma centena de pontes? Ninguém. Quem é que fez o Parque Mãe Bonifácia? O Dante. Aí é a genialidade da coisa. É claro que o sujeito não previu, mas o que ele fez na prática, de uma maneira intuitiva? Simples. Ele falou: “Nós gostamos de nos encontrar”. Essa que é a verdade. Não é que a gente gosta de andar no parque, fazer exercício. Nós gostamos do convívio. É impossível o convívio no Centro. É um sucesso em Cuiabá um parque, as pessoas gostam de se ver. Foi feito o Parque Massairo [Okamura], não deu tão certo porque não tem tanta estrutura. Depois o Parque das Águas, embora falte muita árvore, a gente passe muito calor ali dentro. Mas não importa, aquilo ali é um sucesso porque propicia o convívio. Do que que o cuiabano gosta? Do convívio.
MidiaNews – Para a gente concluir, o que o senhor espera para a nossa Capital nos próximos anos?
Eduardo Mahon – É uma boa pergunta, porque eu não espero nada esse ano. Gostaria que a profecia do Silva Freire fosse concretizada. O que é a cuiabania? O que é Cuiabá? Ele dizia, e era genial mesmo, “piçarra filtro da civilização”. O que é isso? A pedra piçarra é extremamente porosa. Filtro da civilização. Então, o que ele estava falando? Pode vir quem for aqui para Cuiabá. Nós, a nossa cultura, sabemos filtrar. No final, só vai ficar quem se integrar, porque as pessoas não aguentam o calor. Então se essa profecia for confirmada, se a nossa comunidade souber filtrar valores, misturar o novo com o velho, etc, e filtrar isso para a gente obter uma coisa nova, já está ótimo. Não quero saber do factual. Estou pensando em será que teremos cuidado com a cidade? Como é que você tem cuidado? Como você se incomoda com o buraco da sua rua? Quando você tem carinho por aquilo ali.
MidiaNews – E como o senhor definiria Cuiabá?
Eduardo Mahon – Como Silva Freire. Cuiabá é um filtro. Quem sobrevive e se integra, passa, fica e talvez melhore. Quem não passa e não se integra, é grosso o suficiente para não ser coado nessa piçarra-filtro, nessa peneira. Não finca raízes, não entende a cidade, e acaba indo embora na primeira ou na segunda geração.
MidiaNews – O que segura é o cuiabano?
Eduardo Mahon – Cuiabano é o que Darcy Ribeiro falava de uma nova civilização. Porque é uma mistura e é tão forte por ser mistura. Cuiabá já resistiu à peste. Já resistiu à fome, resiste ao calor todos os dias. Cuiabá já resistiu a tudo, só à guerra que ainda não, se bem que houve guerra civil em Cuiabá. Rusga, Totó Paes de Barros, Caetanada, etc. Cuiabá só não resiste a quem não gosta dela. Aí é impossível, porque quando o sujeito não gosta do cuiabano, perde o significado. Eu digo aos cuiabanos: se eu tivesse um nome, Figueiredo, Paes de Barros, um nome “trezentão”, eu timbrava o meu papel com "desde 1719", como o comércio faz. Mas parece que aqui não há essa nobreza.
A simplicidade é tanta que o cuiabano não se impõe. Faz isso com os Mayrink Veiga, faz isso com os Guingle, faz isso com os Tamborindeguy no Rio de Janeiro. Ou em São Paulo com os Matarazzo. A Dilma, que era presidente da República, não era recebida pela sociedade carioca. Ela teve que pedir uma gentileza para a Lili Marinho fazer um chá para que a alta sociedade carioca a recebesse. Eu acho que cuiabano se dá muito pouco valor.
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12 Comentário(s).
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jasper ottoni 12.04.19 09h24 | ||||
Discordo da opinião deste Sr. uma vez que Cuiabá não é cidade velha e não é feia como pensam . Cuiabá, era bem melhor como cidade antes dos "paus rodados" chegarem aqui. Vivem procurando defeitos na cidade mas esquecem que as cidades deles talvez sejam piores, não geram emprego. e não têm tanta disponibilidade de habitação moderna quanto Cuiabá. Opinião equivocada. | ||||
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moreira 11.04.19 20h00 | ||||
Foi umas das maiores besteiras que ouvi um cara dizer sobre Cuiabá. | ||||
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DINIZ JOSÉ DE OLIVEIRA MIRANDA 11.04.19 08h40 | ||||
Bela entrevista, de fato nós cuiabano se dá muito pouco valor, precisamos sim resgatar as tradições cuiabanas. Cuiabá precisava sim de uma grande festa de 300 anos, para mostrar para o Brasil e o mundo nossa cultura,gastronomia e principalmente nossos atrativos turísticos em torno da nossa capital. | ||||
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Carlos Eduardo Cuiabano 10.04.19 21h58 | ||||
Pau rodado, na origem, jamais foi agressão. Foi defesa! | ||||
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Dos Santos 10.04.19 01h46 | ||||
Sobre a cuiabania, apenas uma opinião de quem nem aqui nasceu, tem apenas 42 anos e leu alguns livros da cultura cuiabana. Prefiro mais relatos e opiniões de pessoas de mais idade com 70, 80 ou 90 anos e que vivenciaram, de fato, tudo isso. "...aparentemente, é uma cidade sem grandes atrativos" o que seria grandes atrativo? talvez, as praias do Rio de janeiro ou Floripa, quem sabe...."Cuiabano nunca soube se comunicar, nem fazer investimento" as falas tem um tom um tanto preconceituosos...Falar e criticar da organização de uma festa de uma capital tricentenária é muito simples e fácil. | ||||
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