Cuiabá, Domingo, 6 de Julho de 2025
FERNANDO HENRIQUE LEITÃO
11.02.2018 | 23h00 Tamanho do texto A- A+

Beauvoir além da máscara

Vendo o mito desmoronar perante os fatos não restou nada aos “especialistas” a não ser a relativização

Simone de Beauvoir traz consigo uma aura sagrada do ponto de vista de seus seguidores e admiradores. Mesmo àqueles que só “ouviram dizem” é impingida essa conotação de ares mitológicos. Questionar certos pontos da biografia e do pensamento da francesa torna-se quase perigoso: “quem ousa não ceder à cartilha do politicamente correto?”; se for homem o questionador então, ai dele!

 

A propósito do tema, vale recordar que após o nome de Simone de Beauvoir aparecer na prova do Enem no ano de 2015, a BBC Brasil veiculou uma matéria de autoria de Rafael Barifouse que trazia o seguinte título: "Após Enem, filósofa francesa ganha acusações de nazista e pedófila na Wikipédia".

 

Como se sabe, a Wikipédia é uma plataforma virtual em que os próprios usuários inserem as informações e é muito usada hoje em dia como “fonte”, sobretudo pelos mais jovens ou pelos despreocupados com a veracidade do que consta nos verbetes.

 

Quanto à matéria da estatal inglesa, o tom da chamada é o mesmo de todo o texto: desabrida defesa de Beauvoir contra fatos incontroversos e, até mesmo, contra as próprias posições manifestadas pela autora. Logo de cara traz na manchete o termo "acusações" para se referir às adjetivações que se fundam nos escritos e ações de Simone, tentando dar a impressão de que seriam meras ilações levianas e conjecturas infundadas o que dela dizem.

 

As grandes “acusações” davam conta de que Beauvoir: i) colaborou espontaneamente com o estado fantoche nazista de Vichy na Segunda Grande Guerra, ii) era a favor da pedofilia (sexo “consensual” de adultos com jovens e crianças independentemente da idade), iii) foi acusada de assédio por alunas suas e, por fim, iv) julgava mulheres limitadas quanto às suas escolhas entre vida profissional fora de casa ou dentro do lar.

 

Verdades ou mentiras? A grande ironia é que a matéria em defesa da autora trazia em si a confirmação acerca destas acusações, mas com viés de que os entrevistados estariam negando admitir o que estavam expressamente admitindo. Malgrado a clara tentativa de “defesa” de Beauvoir, o tiro saiu pela culatra, pois o texto reconhece que os fatos a ela imputados são, sim, verdadeiros e fazem parte de sua biografia:

 

1. Trabalhou espontaneamente como colaboracionista na radio estatal Radiodiffusion Nationale durante a ocupação nazista da França, sendo diretora de sonoplastia da comunicação oficial do Régime de Vichy, estado fantoche de Hitler. A rádio era porta-voz de facto da Alemanha nazista.

 

2. Era expressamente favorável à pedofilia (ou qualquer outro nome que se queira dar a alguém que é contra qualquer limite de idade para relações sexuais de adultos com jovens e crianças), tendo assinado um manifesto no ano de 1977 e defendido que não houvesse qualquer limite de idade para relações sexuais entre adultos com jovens e crianças (!).

 

3. Há, ainda, severos apontamentos de que ela mesma praticou sexo e ou assédio de suas alunas e outras adolescentes; sua aluna Bianca Lamblin escreveu um livro contando como se deram os abusos praticados por Beauvoir (Mémoires d'une Jeune Fille Dérangée); outra aluna, Natalie Sorokine, de 17 anos, a acusou de tentá-la seduzir, razão pela qual Simone foi suspensa de suas atividades docentes por um período de tempo.

 

Quanto à quarta “acusação”, a de que abertamente escreveu que as mulheres não devem ter opção de trabalhar em casa porque muitas escolheriam, e até mesmo prefeririam, essa opção (o que implica que para ela isso demonstraria as limitações intelectuais femininas), eis o que escreveu a própria Simone:

 

“Enquanto a família e o mito da família e do mito da maternidade e do instinto maternal não são destruídas, as mulheres ainda serão oprimidas …. Nenhuma mulher deve ser autorizada a ficar em casa e criar os filhos. A sociedade deve ser totalmente diferente. As mulheres não devem ter essa escolha, precisamente porque se existe uma escolha, muitas mulheres vão fazer isso. É uma maneira de forçar as mulheres em uma determinada direção.“ (Sexo, Sociedade e o Dilema Feminino, “Saturday Review”, 14 de junho de 1975).

 

Por se tratarem de pontos incontroversos da sua biografia e posições assumidas expressamente por Simone, os entrevistados pela BBC admitem os fatos, mas que por si só – com as devidas aspas – “não justificariam” a sua inclusão no verbete da Wikipédia. Tecendo elogios como “mulher de posições fortes” e “à frente de seu tempo”, tais especialistas crêem que não faz sentido citar esta parte da vida e obra de Beauvoir. Fazer isso seria algo “extremamente inconseqüente” “sem que isso venha junto com fatos e reflexões”! Sim, você leu certo!

 

Não seria significativo o bastante que as pessoas soubessem quem foi a verdadeira Simone de Beauvoir por trás da máscara de mito e sumidade que os intelectualmente cambaleantes meios acadêmicos brasileiros – mas não só – atribuíram à sua figura quase “mitológica”. Afirmam, outrossim, que as (tidas como) acusações decorreriam “da resistência às idéias de Beauvoir contra a dominação masculina e os direitos da mulher”.  Sim, novamente você leu corretamente!

 

Para alguns, demonstrar que ela colaborou espontaneamente com o nazismo, defendia a pedofilia, assediou suas alunas e outras adolescentes e que considerava as mulheres limitadas intelectualmente para fazer certas escolhas é uma variante de machismo e vai contra os direitos da mulher. Vendo o mito desmoronar perante os fatos deveras demeritórios não restou nada aos “especialistas” a não ser relativizar questões tão sérias e não passíveis de relativização.

 

Hoje em que se acompanha o desenrolar das graves acusações de assédio contra Harvey Weinstein e todo o empenho feminista no caso, não é sintomático que uma das mais famosas feministas da História ainda seja poupada pelas suas admiradoras apesar de a mesma acusação pesar severamente contra ela?

 

Há quem pense que qualquer um que “ouse” não render loas à Simone de Beauvoir é machista. A quem pensa assim, uma pergunta: as piores condutas de um indivíduo expoente de uma ideologia podem ser ignoradas devido à sua importância para tal ideologia? Creio que não.

 

FERNANDO HENRIQUE LEITÃO é advogado em Cuiabá

*Os artigos são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do MidiaNews. 

 

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ZECA   11.02.18 10h36
Talvez se tivesse sua própria biografia; talvez tivesse influenciado várias gerações, talvez tivesse a coragem para enfrentar as relações de poder e as vias de opressão...talvez pudesse julgar Beauvoir. Essa nem precisa estar viva pra se defender da tirania machista, pois seu legado o faz: Que ninguém nos defina. Que ninguém nos limite. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja nossa própria substancia(Simone De Beauvoir)
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