04.12.2010 | 18h:04

CHACINA EM MATUPÁ


Linchamento leva 7 miltares a Júri, 20 anos depois

População ateou fogo em três assaltantes ainda vivos; militares são apontados como coniventes

Um dos casos de violência mais bárbaros ocorridos de Mato Grosso, com grande repercussão nacional e internacional, a "Chacina de Matupá", em que três assaltantes foram linchados por populares da cidade (695 km ao Norte de Cuiabá) e queimados vivos, em novembro de 1990, está, até hoje, sem punição. Somente agora os acusados sentarão no banco dos réus para enfrentar o júri popular.

Os sete policiais militares denunciados pelo Ministério Público Estadual - Edyr Bispo Santos, Lúcio da Silva, Juraci Messias dos Santos, Valter Benedito Soares, Lucir Ramos da Silva, Ciro Lopes e Jacles George de Melo - foram pronunciados pelo juiz da Comarca de Matupá, Tiago Souza Nogueira de Abreu.

O pedido de pronúncia, juntamente com as alegações finais, foi formulado pela Promotoria de Justiça, em 17 de dezembro de 2009.

O grupo de militares foi acusado de entregar para população os assaltantes Ivanir Garcia dos Santos, Osvaldo José Buchaman e Arei Garcia dos Santos. O linchamento aconteceu após o desfecho de um assalto com reféns - duas mulheres e quatro crianças -, cuja negociação, segundo informações da época, passou de 15 horas - inclusive, com cerco militar da casa. Os ladrões deixaram a casa sob ameaça de linchamento.

Gasolina e fogo

O crime foi filmado pelo cinegrafista amador Lenon José Durrewald, que documentou um trecho da negociação entre a Polícia Militar e os assaltantes e todo o linchamento.

As imagens foram mostradas em várias televisões da rede nacional e, até mesmo, transmissoras internacionais. A fita VHS passou também a ser a principal prova do crime, que mostra os populares jogando gasolina nos ladrões e ateando fogo neles ainda com vida.

"As cenas são deprimentes e mostram os três feridos e amontoados num descampado, com a população em volta. Um dos moradores joga gasolina e fogo. Osvaldo, mesmo depois de ter tido o corpo queimado por 15 minutos, permanece lúcido e pede perdão a Deus. A população em volta ironiza, perguntando: ‘Está quente aí?', detalhou reportagem da jornalista Joanice Pierini Loureiro (falecida em 2005), publicada pelo Diário de Cuiabá, em 23 novembro de 2000.

Os policiais militares foram denunciados pela prática de crimes como emprego de fogo e tortura e utilização de recurso que tornou impossível a defesa do ofendido.

Registro da barbárie

Dez anos após o crime, Joanice Pierini buscou alguns personagens da época e fez uma matéria especial sobre o caso, publicada pelo Diário. Em uma reportagem detalhada, a jornalista mostra parte da agonia e sofrimento dos três assaltantes que foram queimados pela população de Matupá.

Confira a íntegra da reportagem de 26 novembro de 2000:

Dez anos depois, Matupá tenta esquecer chacina

JOANICE PIERINI LOUREIRO
DIÁRIO DE CUIABÁ

É curto o tempo que separa a vida de um homem da morte. Você vai levar aproximadamente 15 minutos para ler esta matéria. Este foi o tempo que Osvaldo Bachinan, 32 anos, agonizou sendo queimado vivo em Matupá (686 quilômetros ao norte de Cuiabá), no dia 23 de novembro de 1990, há 10 anos. Você lê esta matéria com tranqüilidade, e não é capaz de sentir o que ele passou. Quem assistiu as cenas da morte - gravadas em parte numa fita de VHS - também estava tranqüilo antes de ver as imagens de Osvaldo pedindo perdão. Será que as pessoas que atearam o fogo e não o socorreram estão tranqüilas agora?

Os 15 minutos finais da vida de Osvaldo e dos irmãos Ivacir Garcia dos Santos, 31 anos, e Arci Garcia dos Santos, 28 anos - que também foram queimados vivos - são o início de um episódio jurídico que continua esperando por solução. A "Chacina de Matupá", como ficou conhecida a tragédia, completou 10 anos essa semana sem que ninguém tenha sido punido até agora. Na cidade de Matupá é coletivo o sentimento da população que não fala sobre o linchamento e prefere enterrar, como cinzas, este episódio que chocou o país.

"Deste assunto a gente não gosta de falar. A cidade já sofreu demais e agora está superando. Seria muito bom se vocês (jornalistas) ignorassem esse assunto", disse Heleni Mazzonetto, por telefone, essa semana. Heleni, juntamente com outra mulher que estava grávida e mais quatro crianças, ficaram sob a mira dos revólveres dos assaltantes cerca de 15 horas. Jornais da época descrevem que Ivacir, Arci e Osvaldo entraram na casa da família Mazzonetto por volta das 18h do dia 22 de novembro, na tentativa de roubar ouro e jóias.

O caso até poderia ter caído no esquecimento não fosse uma fita de VHS gravada pelo cinegrafista amador Lenon José Durrewald, que registrou parte das negociações com os seqüestradores, e o linchamento. A fita correu o Brasil e o mundo em 1990. Parte das imagens foram veiculadas na Rede Globo. Cópias foram distribuídas para a Anistia Internacional e a rede americana CNN também as veiculou. O Diário teve acesso a uma cópia que faz parte do arquivo do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Henrique Trindade, de Cuiabá.

Um processo civil, na Comarca de Peixoto de Azevedo (692 quilômetros ao norte de Cuiabá) e outro militar, em Cuiabá, tratam do assunto. São três os denunciados no processo militar, e 18 no civil. Este número, considerado acima da média dos processos normais, acaba por tornar a tramitação lenta. Com mais de 10 volumes, o processo já conta com 2 mil páginas. Entre os denunciados está José Antônio Correa, atualmente vereador em Matupá. O Diário tentou contactá-lo por telefone, mas não conseguiu.

No dia 9 de fevereiro de 1998 a Justiça determinou que estes 18 denunciados devem ir a júri popular. Uma parte dos acusados protestou contra a decisão, impetrando recurso no Tribunal de Justiça. Outros aguardam que o Ministério Público arrole testemunhas, para que depois a defesa também o faça. Em seguida deve acontecer o julgamento.

Entre os denunciados do processo militar, que tramita no Fórum Criminal de Cuiabá, está o coronel Edyr Bispo dos Santos, principal negociador do seqüestro que antecedeu o linchamento. Edyr foi promovido três vezes nestes últimos 10 anos, e hoje é diretor de Ensino no Comando Geral da Polícia Militar. Essa semana, em entrevista ao Diário, Edyr disse que o linchamento aconteceu porque a polícia não tinha estrutura para conter a população.

"Já tínhamos entregue os assaltantes à Polícia Civil. Só estávamos fazendo a escolta", lembra. O coronel afirma ainda que o episódio acabou por sujar a sua imagem, assim como a da PM. "Também fomos vítimas. Foi um crime de multidão, e nesses casos não há um responsável", acredita.

Testemunhas - Testemunhas-chaves da chacina já morreram, ou não podem ser localizadas facilmente. O cinegrafista Lenon José Durrewald, que fez as imagens, já não mora mais de Matupá. O então prefeito, Adálio Martins - que foi trocado pelos reféns durante a negociação - já não mais na cidade. A irmã Adelis Schoan, uma alemã que veio participar de projetos missionários no Brasil e também negociou com os assaltantes, morreu há cerca de dois anos. O delegado titular do caso, Osvaldo Florentino Leite Ferreira, também morreu, há sete meses.

Imagens

A fita a que o Diário teve acesso tem aproximadamente 50 minutos de gravação, desde as negociações com os assaltantes, a libertação dos reféns, o momento em que um dos moradores joga fogo até os 15 minutos finais de agonia de Osvaldo Bachinan. As imagens são chocantes e nítidas, mas deixam algumas dúvidas: os policiais militares que aparecem junto aos três assaltantes deitados, lado a lado, num descampado, já não estão por perto num outro descampado perto de uma rodovia, quando o fogo é ateado.

O cinegrafista Lenon José Durrewald foi localizado pela reportagem, mas já não mora em Matupá desde a chacina. Na época do crime, ele filmava casamentos na cidade. Assim como outros moradores, Lenon preocupa-se com o fato da imprensa, agora, estar relembrando o assunto. "Fui ameaçado e ainda tenho medo, por causa da minha família. Quando mais a gente fala deste assunto, mais perigoso fica. Não quero mais voltar a este tormento", disse. Hoje Lenon trabalha viajando, muitas vezes para o exterior. Em fevereiro de 1991 - quatro meses depois da chacina - Lenon escreveu um artigo na revista Veja intitulado "Fiz uma reportagem" onde descreve os momentos da gravação.

"Filmei todas as cenas enquanto tive resistência de segurar a máquina sobre meu ombro (...) O que houve ali foi uma barbárie, algo que nunca tinha visto antes em minha vida (...) Muitas pessoas que estiveram na cidade queriam saber por que não larguei minha câmara e tentei impedir a tragédia. Na verdade, tentei sim, fui ajudado por uma senhora de 25 anos. Cheguei a gritar umas duas ou três vezes que eles já tinham sofrido demais e que não se podiam queimar pessoas vivas. Um dos bandidos até poderia ser levado para o hospital e, com sorte, ser salvo. Mas nem sequer fomos ouvidos. A maioria das pessoas observava apenas, enquanto dois ou três homens pegaram a gasolina, jogaram sobre os assaltantes e atearam fogo"(...)

"Senti medo de ser agredido se tomasse uma atitude mais dura. Acho que foi um comportamento inconsciente, como se todo mundo tivesse perdido, por alguns momentos, a noção da gravidade do que estava acontecendo ali (...) Já de volta do transe, conscientes do que haviam feito, as pessoas nada disseram. Foram embora caladas. Conversei depois com o rapaz que botou fogo nos três e ele estava muito mal, arrependido. Na primeira missa de domingo, o padre fez um sermão condenando o crime, dizendo que ninguém tem o direito de tirar a vida de outra pessoa. Mas não chegou a ser um sermão indignado, de quem está com o chicote na mão. Ele conhece a realidade local, é ele quem enterra pais e mães de famílias vítimas dos assaltos e estupros"(...).

"Agi como jornalista que desde os 8 anos de idade sonhei ser (...) Firmei a câmera com o sacrifício de quem se sente obrigado a documentar uma barbaridade que, certamente, o Brasil não conheceria se eu tivesse simplesmente ido embora (...) Sofri, em decorrência do filme, muitas ameaças - uma delas de um dos envolvidos diretamente na execução - e, por isso, tenho hoje (1991) a companhia de três agentes da Polícia Federal me garantindo a segurança.(...) Antes da tragédia o governo não tomava conhecimento dos problemas de Matupá, embora a violência imperasse na cidade sem punição (...) A maioria da população condena a chacina, mas o governo não nos deu nada para ter o direito de agora de cobrar alguma coisa".


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