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A escritora Luciene Carvalho, primeira negra a presidir a AML
Da declamação à poesia, dos versos à Academia, Luciene Carvalho tornou-se a primeira mulher negra a ocupar o cargo de presidente da Academia Mato-grossense de Letras. A posse, realizada neste sábado (30), marca um novo momento para a Instituição que tem 102 anos de história.
Nascida em Corumbá, região pantaneira do Mato Grosso do Sul, Luciene fez de Cuiabá a sua morada. Residente do Município desde 1974, ela acumula vivências e paixões pela vida cotidiana que transcendem em seus versos ritmados.
Luciene tem 14 livros publicados, a maioria de poesias. Foi eleita e empossada na Academia Mato-grossense de Letras em 2015.
É também diretora de Teatro, formada pela MT Escola de Teatro (Unemat). Entre seus feitos, foi personagem de uma cinebiografia e gravou um CD de poesia declamada dialogando com o rap.
Autointitulada como mulher do ineditismo, ela, aos poucos, foi traçando seu caminho como poetisa. As declamações em jogral sempre estiveram presentes em suas memórias, mas a escrita só ganhou força após alguns anos de exílio em Ribeirão Preto (SP).
A saudade da vida cuiabana surgiu em forma de versos que a consagraram como uma imortal da AML.
De publicações coletivas, resultados de premiações ao longo de sua juventude, ela viu nascer no ano de 2001 o seu primeiro livro individual, intitulado “Teia”. A obra é fruto de um processo de desconstrução em torno do universo feminino.
“Foram 7 anos desde a primeira publicação coletiva até a minha primeira publicação individual. Neste processo eu já tinha desconstruído vida afetiva e vida pessoal de tal forma que em mim só cabia poesia. Eu não servia mais para nada. Não servia para ser mãe, esposa, funcionária, acadêmica. Nada. Me lembro de momentos de dor onde eu pensava: Só se eu for poeta, mesmo produzindo há anos, eu não conseguia acreditar”, relembra a poetisa.
Para a escritora, a falta de reconhecimento pessoal como poeta é o resultado do tratamento social que recebeu quando criança.
“A não crença pessoal está muito ligada a gênero, a racialidade e ao tratamento social que você recebe. Ninguém é validado na infância. Ninguém fala para você: quando crescer, você vai ser escritora, você vai ser poeta”, declara.
Desde sua primeira obra, Luciene chamou atenção. Com 16 dias de publicação, “Teia” foi indicado e vencedor de uma premiação regional na categoria “Melhor Obra Literária” de 2001.
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Livro Dona é leitura obrigatória no vestibular da Unemat
Atualmente Luciene Carvalho, com sua obra “Dona”, é leitura obrigatória para o vestibular da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat).
“Depois de todo o processo de aceitação, eu chamei a criança declamadora lá do Pantanal para me validar socialmente. A poesia me validou e eu passei a declamar. O Brasil tem uma tradição oral, ele foi alfabetizado maciçamente no jogral. O povo preto não lia, mas sabia declamar. Então fiquei me questionando: Será que eles não gostam de escutar poesia? E foi assim que eu passei a viver de poesia há 22 anos”, recorda Luciene.
Luciene é a primeira mulher a receber, em Mato Grosso, o cargo de presidente de outra mulher, Sueli Batista. Ela também se tornou a primeira escritora negra a presidir uma academia de letras no Brasil.
Desde do dia em que ocupou uma das cadeiras da Casa Barão de Melgaço, sede da AML, em 2015, Luciene viu a sua imagem tornar-se uma figura de representatividade para a juventude negra no Estado.
“Eu me lembro que no dia da posse [para a cadeira 31 da Academia] entraram umas meninas de black power que eu nunca vi na vida. Nesse momento eu disse para mim: “Olha lá, elas nunca se viram aqui”. Então, aprendi o que é a representatividade e que ela não é designada, pois é você que me escolhe para te representar”, afirma.
Luciene se diz ser uma “caixeira viajante”, dada a rodagem por inúmeras cidades para divulgar sua obra. Esta experiência, segundo ela, foi essencial para observar e compreender o contexto da produção literária no Estado.
“Meu processo de preparação foi longo e conversa com todas as minhas fases e faces. Estou emocionada pela representação, pela alegria e pela confiança atribuída a mim. Quero levar para a AML esta mulher que vive há 20 anos de poesia para fazer uma gestão inovadora, responsável e tradicional, no sentido de guardar memória, proteger saberes e instigar produções”, afirma.
A presidente enfatiza que sua gestão será focada na preservação da identidade cultural local.
Ela acredita que a Casa Barão de Melgaço deve ser responsável pela preservação das produções mato-grossenses, na mesma intensidade que abre espaço para novos autores.
De acordo com Luciene Carvalho, a AML manterá as portas abertas para estudantes e professores que buscam a troca de conhecimento e a construção de uma nova identidade de produção cultural no Estado.
“Não é porque estamos ancorados em Cuiabá, que não navegaremos pelas águas de Mato Grosso, por meio do fomento à escrita. Acho necessário fomentar a literatura no Estado. Mato Grosso é um canteiro, não só de grãos, mas de letras. Nós somos uma espécie de safrinha”.
Próxima obra
Em meio a nova fase de sua vida, Luciene Carvalho se prepara para lançar, em dezembro, sua próxima obra, intitulada "Saranzal".
Baseada nas trocas de afeto que vivenciou na infância e na vida adulta, ela busca mostrar, por meio da poesia, a influência do amor no desenvolvimento humano.
“É quase como se dissesse: eu sei amar porque fui amada. Estou falando desta doença social onde as pessoas são violentas porque foram violadas. Em um dos capítulos falo sobre o processo de ir ao mundo; eu falo de afetos e amores até chegar no último poema onde faço uma declaração de amor para a preta que mora em mim”, finaliza.
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