19.05.2024 | 08h:08

CLIMA


Especialistas: Cuiabá corre risco de reviver cheias como a de 1974

Estudiosos explicam fenômeno e falam sobre riscos, danos e medidas de segurança

O Estado de Mato Grosso

Registro histórico de cheia de 1974 em Cuiabá; população se locomovia de canoa

A tragédia que assolou o Rio Grande do Sul, com inundações em diversas cidades no final de abril de 2024, gerou comoção nacional e acendeu o alerta para possíveis desastres como esse também em outras regiões, como Mato Grosso. 

A tendência é que possa ocorrer evento similar ao de 74 ou ainda maior

 

A Capital mato-grossense já registrou mais de uma vez episódios de destruição e morte em decorrência das fortes chuvas e do aumento do nível do Rio Cuiabá, a exemplo da maior e mais famosa “cheia de 1974”. 

 

Segundo o presidente da Federação Brasileira de Geólogos (Febrageo), professor Caiubi Kuhn, não só é possível que tenhamos que enfrentar outra inundação como aquela, como isso deve acontecer em escala ainda maior, apesar da construção da Usina de Manso, tida como uma controladora de cheias. 

 

“É possível afirmar que novos eventos irão ocorrer, porque eles estão ligados a ciclos climáticos que existem e afetam a nossa região. Do mesmo jeito que o Rio Grande do Sul já enfrentou inundações em 1941, 1967, 2015 e 2023”, afirma. 

 

“Existe ainda um fator que precisa ser considerado - o aquecimento global. Ele tem levado à ocorrência de eventos ainda mais fortes. Então, a tendência é que possa ocorrer evento similar ao de 1974 ou ainda maior”. 

 

Nesse cenário, revisitar e aprender com o passado é mais do que um meio de preservar a memória e valorizar a identidade e cultura de um povo, pode ser a diferença entre vida e morte. 

 

Danos em uma década 

 

Um recente levantamento feito pela Casa Civil do Governo Federal apontou que  40 municípios de Mato Grosso, incluindo Cuiabá e Várzea Grande, estão na lista dos mais suscetíveis a ocorrências de deslizamentos, enxurradas e inundações. 

Reprodução

Capital de MT embaixo d'água em enchente de 1974

 

O número de municípios afetados na última década, no entanto, é bem maior, segundo o Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2ID). 

 

Entre janeiro de 2013 e maio de 2024, 136 municípios fizeram ao menos um registro dessas ocorrências.  Ao todo, foram 17 mortes, 568 feridos, 1985 desabrigados e 9719 desalojados nesse período. 

 

Água retida, água que escoa 

 

Segundo o engenheiro sanitarista e ambiental Rafael Pedrollo de Paes, professor e pesquisador de Hidráulica e Recursos Hídricos da Universidade Federal de Mato Grosso, nenhuma estrutura hidráulica é 100% segura. 

 

“Toda obra hidráulica está sujeita a falhas, Cuiabá não está segura, assim como nenhuma outra cidade. O que podemos fazer é criar oportunidades para aumentar essa segurança”, diz. 

 

A partir da década de 70, no Mundo, e de 90, no Brasil, as ideias são de retenção de água e de convivência com ela no meio urbano. “Temos pouca influência sobre a quantidade que chove, mas muita sobre a quantidade de água que escoa”, afirma. 

 

“Qualquer alteração no uso dessa terra vai mudar essas porcentagens. Se construirmos casas, prédios, condomínios, estacionamentos ou se plantarmos ou recuperarmos uma área degradada, por exemplo”, afirma.

 

Se hoje pensamos em técnicas para reter a água, na década de 50 a ideia era contrária e o objetivo era mandá-la para baixo o mais rápido possível. 

 

Conforme o pesquisador, se uma quantidade de água cai e leva, por exemplo, 60 minutos para sair de um ponto a outro em um córrego qualquer, essa mesma quantidade de água pode levar apenas 10 minutos em outros tipos de superfície. 

 

“O que causa estrago é a celeridade da água que vai levar tudo que estiver a frente. A energia cinética vai ser capaz de levar carros, pontes, seres humanos, o lixo que está depositado, tudo”, explica. 

 

Erro “perdoável” 

 

Um dos exemplos dessa mentalidade da metade do século passado é a canalização de córregos que cortam a cidade. A exemplo do Córrego do Barbado ou do Mané Pinto. 

Reprodução

Rafael Pedrollo de Paes é professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Recursos Hídricos (UFMT)

 

Segundo Rafael, hoje é comprovadamente um erro a canalização ou  impermeabilização desses afluentes.  “Era uma excelente tecnologia, mas da década de 50, 60 e 70. A canalização era comum para dar prioridade às vias, mas hoje, nos anos 2020, sabemos que foi um erro”. 

 

Segundo o especialista, no entanto, é um erro “perdoável” à medida em que essas obras foram feitas sem o conhecimento e estudos que se tem hoje. “Foram erros que aconteceram há 50 anos. Hoje temos problemas recorrentes de alagamentos e o que podemos fazer é minimizar essas questões”, afirma Rafael. 

 

Risco 

 

Um dos pontos críticos em Cuiabá é o Centro da cidade, uma vez que a bacia hidrográfica da Prainha é totalmente canalizada ou impermeabilizada. Salvo a área verde do Morro da Luz, até mesmo as praças são revestidas por concreto. 

 

Outra região preocupante é a do Praeirinho, segundo Rafael, localidade onde a população vulnerável ocupou as planícies de inundação, que são áreas que margeiam os cursos d'água e podem inundar em períodos de cheia. 

 

“Sempre usamos como referência eventos anteriores. Então vamos usar a enchente de 1974, em que mais de 20 mil pessoas ficaram desalojadas em bairros próximos à Beira Rio. Hoje, vários desses locais estão ocupados e se o rio subir até o nível que subiu em 74, vão ficar embaixo d'água”, explica Caiubi. 

 

Segundo o geólogo, a história demonstra que Cuiabá tem diversas áreas de risco, e a pergunta que fica é: o que tem sido feito para resolver a situação?

 

“Precisam ser feitos estudos técnicos, medidas e análises para a redução do risco nesses locais e que isso seja incorporado no planejamento. Não adianta esperar que um desastre aconteça”, afirma Caiubi. 

 

Na emoção

 

Para Rafael, infelizmente, a ação vem somente após uma tragédia. A exemplo da Usina do Manso, em que os estudos tiveram início na década de 60, motivada também por uma inundação na bacia do Cuiabá, mas ela só passou a ser operada no ano 2000. 

Reprodução

Presidente da Federação Brasileira de Geólogos (Febrageo), professor Caiubi Kuhn

 

Nesse tempo, duas grandes tragédias impulsionam o início das obras e a conclusão do projeto, as inundações de 1974 e a de 1995. Após a cheia de 74, segundo o especialista, foi também criada a Defesa Civil. 

 

“São sempre medidas paliativas: esperam que a tragédia aconteça para depois agir. O ser humano não está muito acostumado, ainda, a pensar em planejamento de longo prazo. Caminhamos em função dos impulsos”, afirma Rafael. 

 

A Usina do Manso pode diminuir o impacto de uma cheia em Cuiabá e VG, mas, a depender do nível de água, as comportas precisam ser abertas, por medida de segurança. Nesse cenário, já não se tem controle da água que passa por elas. 

 

No entanto, se as chuvas intensas forem na região de Nobres e Rosário, que fazem parte da bacia do Cuiabá, a Usina do Manso não tem influência alguma e a água do rio pode inundar a Capital. 

 

Diminuindo os riscos 

 

Segundo os especialistas, para mitigar os riscos a palavra-chave é “planejamento”. Implementar planos estruturantes como o Plano de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor de Drenagem Urbana, além de criar uma equipe técnica permanente na Defesa Civil do Estado de Mato Grosso. 

 

Segundo Caiubi, são muitas obras ou medidas a depender do tipo de desastre que queremos evitar. 

 

“Se falarmos em alagamentos, que estão relacionados com a chuva com volume elevado, falamos da capacidade de drenagem. Quando se fala de inundação, que é quando o rio transborda, deve-se evitar a ocupação das áreas que já foram inundadas, porque isso é um indicativo”, explica o geólogo. 

 

Rafael cita ainda “técnicas não convencionais”, que são tão importantes quanto as convencionais. Entre elas está o conceito desenvolvido na década de 90: as “cidades esponjas”. 

 

“Qual é a característica de uma esponja? É reter a água. De repente, você joga 50ml e não vai cair nada. Aí você joga mais 50 e, em 10 segundos, vai cair cerca de 10 ml. Então a esponja amorteceu e sugou essa água”, explica. 

 

“Esse conceito de cidade esponja é a noção de que a gente tem áreas que retêm água e, quando chove, por exemplo, 100 milímetros por hora, de repente escoa 20 milímetros por hora”, acrescenta. 

 

O especialista explica que, pensando nos centros urbanos, a construção de parques é uma boa alternativa. “Se chove 100ml e escoa 50, significa que 50ml ficou retido nas árvores. O melhor exemplo disso é o Parque Mãe Bonifácia”, afirma.  

 

É possível, também, que cada morador tenha sua pequena parcela de contribuição. Os chamados “tetos verdes” são um exemplo disso. 

 

“Ao invés de você ter um telhado de material cerâmico, você pensa em estruturas que retenham a água. Você diminui a temperatura do ambiente e ainda diminui o tempo de ação de uma chuva, além de poder conseguir um desconto no IPTU”. 

 

As inundações em Cuiabá são um desafio complexo que exige ação coordenada entre governo, especialistas e a comunidade, para evitar as tragédias ao invés de remediá-las.


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