Cuiabá, Domingo, 7 de Setembro de 2025
"O CAUSO DA AFRODITE"
23.06.2019 | 08h05 Tamanho do texto A- A+

Caminhoneiro de MT se assume trans aos 67 anos: "Estou livre"

História de Afrodite tornou-se conhecida em todo o País após ela protagonizar um comercial no mês da diversidade

Alair Ribeiro/BBC Brasil

Afrodite viaja pelo Brasil em seu caminhão e já é conhecida por onde passa

Afrodite viaja pelo Brasil em seu caminhão e já é conhecida por onde passa

VITÓRIA GOMES
DA REDAÇÃO

Quem hoje vê o sorriso da caminhoneira Afrodite Almeida Araújo, de 70 anos, pode não enxergar a luta que ela travou durante seis décadas até se ver livre para assumir a sua verdadeira identidade. 

 

A transexual, nascida Heraldo Almeida Araújo, conta que desde criança, nunca se identificou como homem. Ao reviver suas memórias de infância, ela fala da dificuldade que tinha para entender como podia ter nascido em um corpo masculino e, ao mesmo tempo, se sentir como uma mulher.

 

“[...] Eu perguntava para minha mãe: 'por que meus seios não estão desenvolvendo'? Ela me respondia que homem não tinha seios e aquilo não entrava na minha cabeça. Ao longo da vida, eu briguei e não me conformava, até mesmo questionava Deus do porquê de não ter vindo como mulher”, contou Afrodite, em entrevista ao MidiaNews.

 

Ela conta que o nome Afrodite foi escolhido por ela ainda na adolescência. Apesar do nome remeter à deusa da beleza e do amor, para o jovem Heraldo, de 15 anos, Afrodite carregava um significado diferente.

 

Ao longo da vida, eu briguei e não me conformava, até mesmo questionava Deus do porquê de não ter vindo como mulher

Ela relata ter se encantado pela história da deusa, que nasceu nos mares - o mesmo mar que ela desejava explorar. Seu sonho, conta, era trabalhar na marinha, mas não se realizou. Ela, então, decidiu desbravar as estradas.

 

No final, foi como uma deusa das estradas brasileiras que Afrodite pode contar sua história, descoberta por um jornalista da BBC Brasil.

 

A história de Afrodite - e de como ela se firmou em uma profissão majoritariamente masculina - acabou lhe rendendo o papel de protagonista em um comercial da empresa multinacional Shell no início deste mês - considerado o mês da diversidade.

 

“O causo da Afrodite”

 

Esse é o título da comercial em que ela foi garota propaganda. Na imagem, Afrodite aparece arrumada com seu vestido vermelho, que combina com a cor do batom e do seu esmalte, mostrando sua Carteira Nacional de Habilitação (CNH), onde ainda consta seu nome de batismo. (Veja o vídeo abaixo)

  

Ela narra sua trajetória profissional, mostrando que Afrodite já atuou como eletricista e empresária, antes de ser caminhoneira. 

 

A repercussão do comercial mudou a vida dela. À reportagem, ela relata que o vídeo a ajuda a ultrapassar as barreiras do preconceito e que se sente livre para ser feliz no corpo que sempre desejou e na profissão pela qual se apaixonou.

 

“Nesse momento eu senti que era isso que eu queria: estar livre, sem ninguém estar me olhando atravessado”, afirmou.

 

Veja o comercial:

 

 

Um guarda-roupa diferente

 

Desde pequena, a caminhoneira se vestia com as roupas das primas como uma forma de dar vazão ao seu desejo de ser igual a elas. Com o passar dos anos e a chegada da adolescência, Afrodite conta que já não podia mais se vestir da mesma forma porque não mais seria interpretado como uma brincadeira de criança.

 

A partir de então, ela passou a realizar o seu desejo às escondidas, situação que se tornou um dos dramas da vida dela..

 

Ela contou que a situação voltou a mudar quando ela e a família se mudaram para São Paulo e passaram a trabalhar em um fábrica de malharia. No turno da noite, quando a fábrica estava quase vazia, a jovem pegava os tecidos e criava suas próprias roupas.

 

Alair Ribeiro/BBC Brasil

Afrodite

Afrodite conta que venceu muitos preconceitos antes de conseguir se assumir

Afrodite conta que aqueles momentos eram como um sonho para ela. Mais velha, o gosto por roupas femininas não a abandonou e, nos tempos em que foi cabo do Exército, ela conta que usava lingerie por baixo da farda - o que, apesar de a fazer se sentir bem, também lhe dava medo.

 

“Minha preocupação era unicamente era ser ferida, porque eu teria que ser levada para a enfermaria e, obviamente, iriam me despir, e eles veriam que eu tinha uma roupa diferente por baixo”, relembra.

 

Quando começou a dirigir caminhões, ela encontrou outro lugar em que poderia ser ela mesma. Afrodite relata que, durante o período que estava na estrada, dirigia usando lingerie e saias. O sentimento que as roupas traziam era de libertação, ainda que se preocupasse com o que  os outros poderiam pensar.

 

“Usava saia e colocava calça jeans por cima, usava sutiã enquanto dirigia o caminhão. Algumas vezes, os outros caminhoneiros ficavam olhando, perguntavam se eu era ‘viado’. Quando me questionavam sobre a unha pintada, dizia que era uma aposta”, explica.

 

Hoje, ela afirma que nunca mais pretende usar roupas masculinas. 

 

Vencendo preconceitos

 

Ao falar de preconceito, Afrodite tem histórias de superação. De bullying na escola até tentativa de agressão física, ela sempre sofreu por ser quem é, mas conta que nunca cansou de lutar para derrubar todas as barreiras.

 

Sempre alegre, Afrodite apenas perde o sorriso ao falar sobre a reação da família. Na infância, apenas sua mãe sabia da angústia que ela sentia por não viver no corpo que desejava. Ela conta que, mesmo após o nascimento dos dois irmãos e da irmã, o restante da família nunca desconfiou de como ela realmente se sentia por dentro.

 

“Eu os criei, praticamente, e eles me conheceram no caminhão, como o dono da empresa, então eles tinham um certo respeito. Mas dentro de mim sempre fui assim, então quando eu comecei a extravasar tudo que sou para eles, foi um choque”, explica.

 

Alair Ribeiro/BBC Brasil

Afrodite

Afrodite mostra foto de quando ainda era Heraldo: "Libertação"

Os irmãos nunca aceitaram a revelação, conta a caminhoneira. Ela diz que foi alvo constante de ofensas ao aparecer como mulher e chegou a ser perseguida pelos irmãos, que tentavam impedi-la de entrar na empresa em que trabalhava com as unhas pintadas.

 

Segundo Afrodite, em uma ocasião, ela quase foi agredida pelos parentes, momento em que decidiu passar por um tratamento psicológico.

 

“Os profissionais disseram que eu estava em sã consciência, que estava perfeita. Meus irmãos nunca foram na psicóloga, mesmo eu pedindo, mas com o tempo pararam de me perseguir”, afirma.

 

Sua irmã mais nova voltou a falar com ela após a publicação da primeira reportagem que fizeram. Agora, ela diz que consegue entender como Afrodite sempre se sentiu.

 

Já os outros dois irmãos não tiveram a mesma atitude. A caminhoneira relata que eles raramente conversam e que, quando isso acontece, as mensagens são quase sempre monossilábicas.

 

Apesar das dificuldades, Afrodite diz enxergar todas as situações pelo lado bom. Para ela, já não importa mais o que os outros pensam porque ela  é quem deseja ser, sem medo das consequências.

 

"O Heraldo morreu. O homem que vivia em mim já está sepultado. De vez em quando até me visto de preto, em luto pela lembrança dele”, diz.

 

Entre no grupo do MidiaNews no WhatsApp e receba notícias em tempo real (CLIQUE AQUI).

GALERIA DE FOTOS
Foto: Alair Ribeiro

Afrodite

Foto: Alair Ribeiro

Afrodite

Foto: Alair Ribeiro

Afrodite

Foto: Alair Ribeiro

Afrodite

Foto: Alair Ribeiro

Afrodite

Foto: Alair Ribeiro

Afrodite

Foto: Alair Ribeiro

Afrodite

Foto: Alair Ribeiro

Afrodite

Foto: Alair Ribeiro

Afrodite

Foto: Alair Ribeiro

Afrodite

Foto: Alair Ribeiro

Afrodite

Foto: Alair Ribeiro

Afrodite

Foto: Alair Ribeiro

Afrodite

Foto: Alair Ribeiro

Afrodite

Foto: Alair Ribeiro

Afrodite

afrodite




Clique aqui e faça seu comentário


COMENTÁRIOS
2 Comentário(s).

COMENTE
Nome:
E-Mail:
Dados opcionais:
Comentário:
Marque "Não sou um robô:"
ATENÇÃO: Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do MidiaNews. Comentários ofensivos, que violem a lei ou o direito de terceiros, serão vetados pelo moderador.

FECHAR

Ellen  23.06.19 11h35
Matéria responsável e importante. País que respeita seus cidadãos, é um país evoluído.
30
7
Denise  23.06.19 09h48
Seja muito feliz,se vc trabalha honestamente,paga suas contas e respeita as pessoas e as leis vc tem direito de ser o que vc quiser.Tudo de bom pra vc.O mundo nao é sobre ser,se todos se respeitassem não haveria divisões de classes e preconceitos.Respeito é a base de um mundo melhor pra todos. Saúde e vida longa Afrondite
32
3