Em um palco, a escuridão total é apenas uma pausa entre uma música e outra. Na vida do DJ mineiro Luis Otávio Muniz, de 30 anos, conhecido como Ota Blind, a escuridão durou dois anos, dois meses e dois dias. Um período de ausência completa da visão, causado por um raro descolamento de retina agravado por uma dermatite atópica severa.

Hoje, com 80% da visão recuperada apenas no olho esquerdo após uma cirurgia custeada por doações, ele não só voltou aos palcos, como transformou sua tragédia pessoal em um projeto cultural pioneiro em Mato Grosso: o Festival Pega Visão, que será realizado no dia 13 de dezembro, na Univag, e terá 100% do lucro destinado à Associação Mato-Grossense dos Cegos.
A saga começou em 2022, quando sua visão, já fragilizada por cirurgias de catarata feitas na adolescência, começou a escurecer subitamente.
O diagnóstico foi cruel: descolamento de retina no olho direito, seguido pelo mesmo problema no esquerdo, o único que ainda enxergava. Entre a perda, a adaptação e a visão parcial que depois voltou, Ota relatou ao MidiaNews uma montanha-russa emocional marcada por profunda introspecção.
“Foi difícil, né, no início. Na verdade, todo o processo foi bem difícil. Mas como eu perdi a visão por conta de uma cirurgia que deveria resolver meu problema, e aí precisei reoperar e reoperar de novo, eu tinha que manter a esperança de que, no pós-operatório, a visão ia voltar”, contou o DJ sobre o ciclo de intervenções frustradas.
Ele explicou que sua condição autoimune transformou a cicatrização em um obstáculo adicional.
“Eu tenho dermatite atópica, uma doença autoimune, e minha cicatrização funcionou forte demais. Quando a retina estava cicatrizando, formava uma queloide, ela saltava e descolava de novo".
A incerteza era o maior fardo. A cada procedimento, uma nova esperança de voltar a ver o mundo.
“Eu tive que refazer o processo várias vezes, e isso foi o mais difícil: a incerteza do futuro e manter a esperança viva”, relatou. “Chegou um momento em que os médicos já não queriam mais mexer, por ser uma parte muito delicada. A retina é o tecido que recebe a luz e transforma em informação para o cérebro. É um tecido neural".
O período de escuridão total, porém, trouxe um autoconhecimento inesperado.
“Foi um mergulho em mim mesmo, porque eu não tinha mais como me distrair com o mundo visual. Tive que lidar com várias questões que talvez estivessem embaixo do tapete durante a minha vida inteira. Por mais doloroso que tenha sido, eu me conheci bastante nesse momento”, afirmou.
O início do problema
A origem do problema remonta à infância, quando Ota tratava alergias severas com corticoides. O uso prolongado causou catarata precoce, que o levou a duas cirurgias ainda jovem, agravadas pelas constantes crises que o faziam coçar os olhos.
Em 2022, no entanto, a situação se agravou de forma repentina. “Meu olho começou a embaçar muito, a visão ficou escura”, lembra. Ao buscar atendimento, descobriu que o olho direito já não podia ser salvo e que o esquerdo, seu único funcional, também entrava em descolamento. Ele foi levado imediatamente para uma cirurgia de emergência.
Hoje, convive com a perda total da visão do olho direito e com limitações no esquerdo, que precisou receber uma nova lente após sucessivas cirurgias.
“Eu enxergo cerca de 80% do que enxergava antes, mas tenho muita sensibilidade à luz, dificuldade com contraste e ambientes escuros”, explica. Enxergar com apenas um olho exige atenção constante. “Às vezes sinto claustrofobia em festas ou no trabalho. Vou para os cantos, busco um lugar seguro. Tenho que ficar sempre alerta para não trombar em algo fora do meu campo de visão. Ainda estou nesse processo de adaptação".
As barreiras físicas e sociais

O retorno da luz, há um ano e dois meses, também trouxe uma sobrecarga sensorial.
“Quando eu voltei a enxergar um ano e dois meses atrás, voltou o mundo visual, então meu cérebro ficou meio bagunçado, assim, com tanta informação. Tive algumas crises de pânico, às vezes ainda tenho".
A experiência radical fez com que ele enxergasse, pela primeira vez, as barreiras enfrentadas por pessoas com deficiência visual.
“Talvez, se isso não tivesse acontecido comigo, eu não teria aberto meus olhos para essa causa”, refletiu.
DJ Ota Blind
“Porque a gente vive tanto no automático, focado no mundo visual… Para você parar e olhar para essa questão, acredito que precisa ter alguém próximo que passou por algo assim ou você mesmo passar".
Durante a cegueira total, Ota insistiu em continuar trabalhando como DJ, enfrentando o julgamento alheio.
“Eu me desafiei a continuar exercendo meu trabalho, tocando em eventos de entretenimento, cultura e música. Senti na pele a dor de ser julgado, porque as pessoas não entendiam que eu não estava enxergando. Achavam que eu estava doido, ou que era sem educação por não cumprimentar. Mas eu só não estava vendo, sabe? Eu reconhecia as pessoas pela voz, pelo tamanho, pelo toque".
Da escuridão, nasceu um novo propósito e a vontade de ajudar quem enfrenta os mesmos desafios.
“Depois de toda essa reviravolta, entendi que minha missão era transformar as dificuldades que vivi na cegueira em soluções. Quando voltei a enxergar, senti que tinha encontrado um novo propósito".
Como artista, a perda da visão exigiu uma recalibração completa de sua arte.
“Mudou bastante, porque eu sempre fui muito visual. Eu confiava olhando no olho, lia a pista pelas microexpressões faciais. Era minha maior habilidade como DJ”, explicou. “Quando perdi a visão, perdi também essa ferramenta".
O medo inicial deu lugar a uma audição extremamente aguçada, uma adaptação que se tornou parte de sua performance.
“Eu tive que me preparar de um jeito diferente. Sempre fui muito familiarizado com os equipamentos, mas a abordagem com as pessoas mudou. Chegar guiado até o palco fazia alguns acharem que eu era doido. Aí eu subia e tocava, e eles entendiam. Fiquei muito mais atento à audição, tanto na música quanto na pista, ouvindo os mínimos sons, os gritinhos. Isso é neuroplasticidade. Quando perdemos um sentido, o cérebro trabalha para compensar. Ganhei um superpoder de audição".
Falta de acessibilidade

Questionado sobre as maiores barreiras enfrentadas por pessoas cegas, Ota respondeu de imediato e de forma abrangente.
“Eu enxergo a acessibilidade e a falta de acessibilidade em tudo agora. Porque aprendi a prestar atenção nisso”, afirmou.
“Quantas pessoas cegas você viu na última semana? Quantas pessoas com deficiência auditiva, de fala ou motora você viu nos lugares por onde passou? É algo para se refletir, né?”
O DJ relatou situações concretas de risco causadas pela falta de planejamento urbano e conta um incidente grave que sofreu por causa da ausência de infraestrutura adequada.
“Às vezes tem um piso tátil e, no final dele, uma árvore. Eu já bati o rosto numa placa de ‘pare’ que estava na minha frente. Quebrei o nariz e fiquei três dias internado".
Para ele, a falta de políticas públicas eficazes cria uma espécie de universo paralelo.
“Não existe acessibilidade de fato sendo colocada pelo Estado ou por grandes instituições. Falta muito. E isso gera medo nas pessoas com deficiência visual de saírem de casa. Parece que cada um vive no seu próprio mundo: quem enxerga vive o mundo visual; quem não enxerga vive outro".
Essa sensação de risco físico ainda se soma ao desconforto do julgamento social. Ele critica a reação frequente das pessoas à sua condição.
“As pessoas tinham dó de mim quando eu falava que tinha perdido a visão. Eu não queria isso. Por isso eu brincava, dizia ‘pegou a visão?’ para quebrar o gelo. Não sou um coitado. Somos seres humanos com habilidades, inteligência, talentos, dores. Todos temos nossas questões. As pessoas com deficiência são tão capazes quanto qualquer outra, apenas têm limitações específicas".
Ao falar sobre inclusão verdadeira, ele defende uma mudança de mentalidade coletiva.
“A inclusão precisa ser plantada como uma semente na mente das pessoas”, afirmoi. “Assim como, nos últimos 10 anos, tivemos pautas importantes sobre racismo, diversidade LGBTQIA+ e desigualdade social".
“Isso é inclusão: o coletivo trabalhando pelo coletivo, por todos, independentemente de raça, cor, deficiência ou classe social".
Festival Pega Visão
A ideia do Festival Pega Visão surgiu, segundo ele, da reação inesperada das pessoas quando expôs sua vulnerabilidade.
“Nasceu de dentro. Fiquei surpreso com a reação das pessoas quando falei da minha fragilidade. Esse foi o ato, a virada de chave que trouxe minha visão de volta. Entendi que juntos somos muito mais fortes”, afirmou, emocionado.
O festival começou como uma promessa feita ainda na fase mais incerta do tratamento.
“Antes da cirurgia, eu dizia que faria uma grande festa para comemorar, caso voltasse a enxergar. Era tudo na base da esperança, não havia certeza de nada".

A primeira edição, realizada no ano passado, confirmou que o caminho estava certo.
“O festival foi no Malcom e destinamos toda a portaria para a Associação Mato-Grossense dos Cegos: sete mil e quinhentos reais. Reunimos dezoito artistas, fizemos uma roda de conversa. Mas, quando voltei pra Minas, senti que só fazer um Pix não mudava muita coisa, na verdade, não mudava nada".
Foi então que decidiu profissionalizar o projeto, movido por uma estatística que o inquieta profundamente.
“Em Mato Grosso a gente tem 110 mil pessoas com algum tipo de deficiência visual. Na Associação Mato-Grossense dos Cegos, só 1.600 associados. É menos de 1%. Eu estive na escuridão e me pergunto: será que essas outras 109 mil pessoas estão bem?”.
A edição deste ano materializa essa inquietação. Ota explicou a estrutura filantrópica.
“Cem por cento dos lucros do festival serão destinados à Associação Mato-Grossense dos Cegos. Essa semana recebemos o apoio da Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer, que possibilitou a gratuidade do ingresso. Então a entrada é gratuita".
O ingresso, no entanto, é solidário: um quilo de alimento para o Instituto Ubuntu, que atende crianças em situação de vulnerabilidade.
A curadoria do evento foi pensada para valorizar a diversidade musical.
MC Vale e DJ Ota Blind
“No ano passado tivemos 18 artistas. Este ano entendi que, para ser um festival, precisava de mais variedade de estilos. A curadoria local foi escolhida a dedo para dar visibilidade a cada gênero”.
O símbolo máximo do evento é a jovem Valle MC, de 15 anos — Valentina Cardoso Kauf, de Curitiba —, que também enfrenta problemas de visão.
“A Vale é baixa visão e tem 15 anos. Ela transforma a dificuldade em arte, em rap. Viralizou na Batalha da Aldeia. Ela é a cara do Pega Visão".
Outro nome de destaque na line-up, com forte significado emocional para Ota, é o artista Síntese.
“Nas músicas dele encontrei cura. Quando não tinha mais o mundo visual, aplicava as letras na minha vida. É muito simbólico ter o Síntese no evento".
A programação inclui ainda Gabriel Boni, Adnan Sharif, Sam Sieck, Chris Chaves, Carol Roche, Saz Menina, a Batalha da Alencastro e uma apresentação especial da banda da própria Associação dos Cegos.
A acessibilidade é o eixo central do festival, com diversas adaptações físicas e tecnológicas.
“O evento será no anexo da Univag, a única faculdade de Mato Grosso com acessibilidade integral, desde o ponto de ônibus até a entrada”.
“Teremos voluntários de acessibilidade, pessoal da Associação dos Cegos, intérpretes de Libras e audiodescrição no palco e no atendimento".
Inovação e tecnologia

Outra grande novidade é a adoção de uma tecnologia usada em megaeventos.
“Estamos trazendo para Cuiabá o aplicativo Viver, que usa inteligência artificial para microlocalização, navegação e audiodescrição. Em 2019, virou o app oficial de acessibilidade do Rock in Rio e do The Town".
A experiência sensorial se completa com arte tátil de artistas locais.
“O Luiz Badaró, que fez nossa identidade visual, está produzindo uma obra tátil. Teremos também versões táteis de obras de artistas mato-grossenses".
Para Ota Blind, a presença de artistas com deficiência em grandes line-ups esbarra na falta de sensibilidade da cadeia cultural.
“Falta suporte e protagonismo. Preparar um espaço para receber o artista, ter alguém para acompanhá-lo, falta sensibilidade de produtores culturais, donos de clubes e casas noturnas".
Ele reforçou sua luta com dados do IBGE: “Somente 20% dessa população vai a eventos culturais, seja por falta de acessibilidade, de comunicação adequada ou de abordagem".
A mensagem que deseja deixar com o festival é simples e poderosa.
“Quero que as pessoas olhem com outros olhos. Que enxerguem isso como algo natural, um abraço coletivo, e levem isso para casa".
Serviço:
Para saber mais informações e conhecer melhor sobre o festival Pega a Visão clique AQUI. Para conhecer o DJ Ota Blind clique AQUI.
Confira as atrações do festival e os horários:
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