Cuiabá, Domingo, 7 de Dezembro de 2025
MEMÓRIA; VÍDEOS
07.12.2025 | 10h02 Tamanho do texto A- A+

Culinária, fé e festas: Sucuri mantém viva a tradição cuiabana

União de moradores sustenta o distrito onde tradições nunca foram esquecidas

José Medeiros

Fotografia de José Medeiros do Rio Cuiabá, no trecho que passa pelo Distrito da Guia

Fotografia de José Medeiros do Rio Cuiabá, no trecho que passa pelo Distrito da Guia

ANGÉLICA CALLEJAS
DA REDAÇÃO

Na beira do Rio Cuiabá, onde o curso d’água faz um “S” que lembra o rastro de uma cobra, nasceu a Comunidade do Sucuri. E é nesse traço sinuoso que se desenrola a história de um dos territórios mais antigos e resistentes da Baixada Cuiabana.

 

“Aquela região sempre foi conhecida pelo traçado do rio. Não é invenção recente, faz parte da memória coletiva

O nome, segundo o historiador Francisco Chagas, não é metáfora. “O trecho do rio que passa ali faz mesmo a forma da sucuri”, afirmou ao MidiaNews.

 

Ele explicou que os moradores mais antigos já identificavam o desenho do rio desde o início do século 20, quando o lugar ainda era uma área de sítios espalhados.

 

“Aquela região sempre foi conhecida pelo traçado do rio. Não é invenção recente, faz parte da memória coletiva”, acrescentou.

 

Antes de virar distrito, reconhecimento que só veio em 20 de maio de 2011, o Sucuri era passagem obrigatória para quem seguia rumo a Acorizal, Rosário Oeste ou à Estrada da Guia. Uma espécie de corredor vivo, onde pescadores, olarias e pequenos produtores moviam a economia local.

 

Francisco lembrou que, até a década de 1940, esse fluxo era intenso. “Era a rota natural de quem vinha da Guia e seguia para o Rosário. Por ali passava tropeiro, passava pescador, passava gente que vinha comprar e vender. Era um ponto de encontro”.

 

Até 1921, quando foi construída a primeira escola, o ensino ainda era privilégio distante. E, em 1959, por indicação da então vereadora Maria Nazareth Honn, a comunidade ganhou o primeiro poço artesiano.

 

O tijolo era virado no chão. Não tinha maquinário. Era tudo no braço. Eles diziam que trabalhavam ‘de sol a sol’, e não era exagero

Segundo Francisco, esse período marcou o início das primeiras organizações comunitárias, ainda informais. “A escola é o primeiro equipamento público fixo do Sucuri. A partir dali, o povo começa a se enxergar como comunidade”, disse.

 

Nos anos 1980, o Sucuri já contava cerca de 2 mil moradores, mas permanecia em situação de extrema pobreza. A construção de uma escola em 1984, amparada pelo MEC, transformou o cotidiano e abriu novas possibilidades em meio a um cenário de ausência quase total do poder público.

 

O historiador destacou que essa transformação teve influência do método Paulo Freire. “Os professores foram capacitados pelo MEC. Aquilo mudou a relação do povo com a escola. As crianças passaram a estudar com regularidade”.

 

Segundo ele, praticamente dois eixos sustentavam a região, sendo eles a pesca e a olaria. Era a “rota do peixe”, e tudo ao redor dela funcionava. Ele ressaltou que a produção de tijolo era mais rústica do que se imagina hoje. “O tijolo era virado no chão. Não tinha maquinário. Era tudo no braço. Eles diziam que trabalhavam ‘de sol a sol’, e não era exagero”.

 

A venda de lenha, o leite transportado em garrafas na beira da estrada à espera de carona, o tijolo moldado e virado antes do sol nascer, e o óleo de piquira extraído após longas horas fervendo o peixe em tambores improvisados.Quase tudo era manual, e quase tudo era troca.

 

Francisco acrescentou que a prática do escambo era estruturante. “Era muito comum trocar uma lata de piquira por arroz, ou leite por farinha. Dinheiro circulava pouco”.

 

Victor Ostetti/MidiaNews

Marilene Calvancanti de Figueiredo

A dona do restaurante Maria Izabel, Marilene Cavalcanti de Figueiredo

A empresária Marilene Cavalcanti de Figueiredo, um dos nomes mais conhecidos e antigos do distrito, cresceu nesse ambiente. “Além da olaria e da pesca, eles tinham aquela renda bem baixa, que era cortar lenha e vender em Cuiabá”, relembrou. “Quem tinha charrete era melhor de situação".

 

O rio era sustento, mercado e fronteira simbólica. “Eles pegavam a piquira com peneira e punham no tambor. Aí cozinhava para tirar o óleo”, contou. E se não havia dinheiro, havia escambo. “Eles trocavam alimento com peixe, com óleo de piquira".

 

Marilene afirmou que, seguindo essas atividades, a identidade coletiva do lugar foi se moldando. “Eu digo que a Sucuri é uma família. Às vezes a gente até se desentende, mas se mexer com um, mexe com todos".

 

O Sucuri é considerado por pesquisadores um dos territórios onde mais se preservam as tradições da cultura cuiabana. O linguajar, a música, os saberes de roça, a culinária e a presença forte de famílias afrodescendentes.

 

Francisco lembrou que essa característica não é recente. “As famílias afrodescendentes se fixaram ali desde o começo do século 20. São linhagens antigas, com sobrenomes que se repetem há gerações".

 

As festas religiosas são um capítulo à parte, e resistem sem patrocínio, quase sempre movidas por fé e doações. São tradicionais as celebrações de São João Batista, Nossa Senhora Aparecida, São Sebastião, São Benedito e Santa Ana. Parte deles são gratuitas, mas tudo é comunitário.

 

“A festa não é só religiosa, ela organiza a comunidade. Reúne, distribui tarefa, distribui responsabilidade. É um mecanismo de pertencimento", afirmou Francisco, que acrescentou que os eventos são um dos pilares sociais da comunidade.

 

Tempero "raiz"

 

É nesse ambiente que Marilene, aos 70 anos, se tornou guardiã de memórias. Antes de abrir o restaurante Maria Izabel, ela estudou na Barão de Melgaço, trabalhou como secretária escolar e manteve por anos uma marmitaria, que foi fechada após o Plano Collor, que esmagou pequenos negócios em todo o país.

 

Ela ficou quase duas décadas afastada da cozinha profissional, até que, cinco anos atrás, decidiu assumir um ponto na própria comunidade e abrir o restaurante Maria Izabel, que hoje funciona de quarta a domingo, das 10h às 16h.

 

No sábado, o movimento passa fácil das 300 pessoas. Entre os clientes, estão figuras públicas como secretários do Estado, desembargadores e artistas.

 

As receitas ela aprendeu sozinha. E não apenas reproduz, mas ainda cria. O “gravatinha à la Mari” virou sensação em festas locais. E ela promete publicar em breve as receitas de fim de ano, como a costeleta de porco, o macarrão cuiabano e o bolo de queijo assado e frito, muito elogiado na comunidade online Cuiabá de Antigamente.

 

 

 

O restaurante é um ponto de resistência da culinária cuiabana “raiz”, como ela gosta de dizer, sem industrializados, sem atalhos. “Eu quero alho, cebola, limão. Só”, disse. “Antigamente não tinha shoyu. Aqui não entra shoyu", completou.

 

O pacu seco com arroz, um dos pratos mais pedidos, é preparado como se faz há gerações: o peixe é seco na própria comunidade. A mujica leva apenas alho, cebola, tomate, mugica, sal, coentro e cebolinha. Nada além. O revirado, seu prato preferido, é memória pura. “Sabor de infância”.

 

“Tirava a carne, cortava na faca, ia pra panela e mexia com farinha. Fritava muitos ovos.” No restaurante, os ovos viraram pochê, mas o ritual permanece.

 

E ela faz questão de manter viva a paçoca de peixe seco. “Minha mãe pegava o peixe, secava ele, o pintado, o jaú. Aí socava com farinha. É igual paçoca de carne, delicioso".

 

 

O Sucuri sempre se organizou sozinho. A associação de moradores, criada em 1984, foi um marco. Mas antes disso o povo já resolvia muita coisa na base da união

Sucuri, o distrito

 

A cerca de 20 km do Centro de Cuiabá, o Sucuri segue como território autônomo, mesmo com as velhas dificuldades da infraestrutura insuficiente, pouca atenção do poder público e quase nenhuma visibilidade institucional. Francisco apontou que essa autonomia é antiga.

 

“O Sucuri sempre se organizou sozinho. A associação de moradores, criada em 1984, foi um marco. Mas antes disso o povo já resolvia muita coisa na base da união".

 

Apesar de tudo, e talvez por causa disso, a comunidade não se descola do passado. Os saberes passam de geração em geração, seja nas festas de santo, nas hortas, no tijolo que ainda se faz artesanalmente, nos barcos de pesca ou nos restaurantes que crescem sem perder a essência.

 

Para Marilene, a responsabilidade de preservar a história é, ao mesmo tempo, um dever e um orgulho. “Se a gente não conta a nossa história, alguém conta por nós, e nem sempre do jeito certo”, afirmou.

 

Assim, o distrito segue vivo, protegido pela fé, pelo tempero, pelo trabalho e o coletivo.

 

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