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"UM TURBILHÃO"
10.03.2024 | 08h00 Tamanho do texto A- A+

Editora publica clássico e revive "gênio indecifrável" de MT

Quase vinte anos após a sua morte, Ricardo Guilherme Dicke segue sendo aclamado pela crítica

Délcio JB/A Gazeta

O escritor mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke, em foto de 2000

O escritor mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke, em foto de 2000

LIZ BRUNETTO
DA REDAÇÃO

O romancista chapadense que marcou a literatura nacional do século 20 com a genialidade da sua escrita é um autor aclamado pela crítica e até hoje publicado, mesmo quase duas décadas após a sua morte. 

 

Ele tinha toda aquela sabedoria represada na cabeça, aquilo saía em forma de romances

A nova edição de um dos romances mais famosos de Ricardo Guilherme Dicke, o “Madona dos Páramos”, e outros 14 contos inéditos, estão sendo publicados no Brasil pela editora Record. 

 

A obra conta a história de doze foragidos da justiça que cavalgaram ao interior do Estado em busca da terra da Figueira-Mãe - Lugar mítico onde conseguiriam “redenção”. Aventura, mistérios e reviravoltas escritas com maestria. 

 

A ação é em parceria com o pesquisador da Universidade de Princeton nos Estados Unidos, Rodrigo Simon de Moraes. A primeira publicação do clássico aconteceu em 1982. 

 

De personalidade marcante e tão singular quanto sua própria escrita, Dicke é descrito como um homem introvertido e de inteligência imensurável. 

 

Conhecedor de ao menos sete idiomas, ele tinha mestrado em filosofia e foi nomeado doutor honoris causa pela UFMT. O título é concedido a personalidades por sua contribuição à Cultura, Educação ou à Humanidade.

 

“Ele tinha toda aquela sabedoria represada na cabeça, aquilo saía em forma de romances. Mas a vazão era pequena para tudo que tinha lá dentro. Era um turbilhão. Um gênio”, diz o jornalista e escritor Lorenzo Falcão, de 66 anos, do site Tyrannus Melancholicus e o maior divulgador da obra de Dicke.

 

Lorenzo conta que conheceu Dicke em meados dos anos 80, em um bar nas proximidades da UFMT. Apresentados de forma rápida por um conhecido em comum, os dois se tornaram grandes amigos. 

 

“Eu já escrevia crônicas, poesias e trabalhava com teatro. Eu também era jornalista e atuava na área da cultura. Peguei o telefone dele com a história de fazer uma entrevista e acabamos nos tornando super amigos”, disse. 

 

A obra 

 

Dicke publicou 12 obras em vida e outras quatro são póstumas. A família do romancista encontrou vários manuscritos dele depois de sua morte, em 2008, aos 72 anos, e há textos inéditos. 

 

Lorenzo diz ter lido quase toda a bibliografia de Dicke e garante não ser fácil a empreitada. O romancista, segundo ele, usava de metafísica em suas produções, entendia de mitologia e não temia ser incompreendido. 

Para lê-lo a pessoa terá que se esforçar, porque a leitura dele não é fácil. Ele não escrevia para agradar ninguém. Sua obra é atemporal, um clássico

 

“Para lê-lo a pessoa terá que se esforçar, porque a leitura dele não é fácil. Ele não escrevia para agradar ninguém. Sua obra é atemporal, um clássico. Ninguém escreve como Dicke, e Dicke não escreve como ninguém”, afirmou.

 

Para Lorenzo, o processo criativo do romancista era algo quase que sobrenatural, um “fluxo de inconsciência”. 

 

“Ele sentava e ia escrevendo, assim, como se um espírito tivesse ‘baixado’ nele. Sem se preocupar muito em organizar aquilo como um roteiro claro e objetivo, ele ia descarregando aquele conhecimento todo”. 

 

“Os diálogos não são convencionais, não tem nada de coloquial na obra dele, mas é tudo muito interessante, muito plástico, tem uma agudeza psicológica incrível”, completa. 

 

Do esquecimento à honraria 

 

O primeiro prêmio ganho por Dicke foi o Nacional Walmap, em 1968. “Guimarães Rosa era um dos jurados e disse que Dicke era um grande escritor que chegou para balançar a literatura nacional”, relembra. 

 

A poetisa Hilda Hilst também ovacionou o romancista e chegou a considerá-lo um “gigante” da literatura nacional. 

 

No início dos anos 2000, Lorenzo, impactado com o tamanho de Dicke e o esquecimento ao qual ele havia caído à época, criou um projeto para publicar as obras e distribuíl-as pelo Brasil, de forma gratuita.

 

“O projeto foi aprovado e deu super certo. Dicke, que estava esquecido aqui, voltou ao cenário nacional de onde nunca mais saiu até morrer, e até hoje ele continua aparecendo, porque deixou coisas inéditas”, disse. 

 

Dicke não simpatizava muito com a imprensa, era reservado e nesse período Lorenzo assumiu o papel quase como o de um agente. 

Reprodução de Cena

Ricardo Guilherme Dicke

Trecho de filme "Cerimônias do Esquecimento"

 

“Era muito introvertido, tinha uma dificuldade na voz para falar porque tomava remédio tarja preta, tinha ansiedade e não gostava da imprensa”, recorda. 

 

“Depois que saiu uma matéria na Folha de São Paulo, onde tinha meu telefone, fiquei quase uma semana sem sair de casa só atendendo ligações que vinham de todo o Brasil. Acho que mandei uns 1.500 livros dele para todo o País”.

 

O projeto, segundo Lorenzo, era bancado pelo Governo do Estado e foi um grande sucesso. 

 

“Na época o governador era o Dante de Oliveira. Meu projeto foi selecionado como um dos três melhores, foi muito legal. Acho que foi uma das maiores coisas que eu fiz”, comemora. 

 

Quando morreu, em 9 de julho de 2008, Dicke foi velado no Museu de Arte e de Cultura Popular (MACP) e sepultado com toda a honraria do Estado. “Foi enterrado com o mesmo tipo de caixão que o Dante de Oliveira”. 

 

Para Lorenzo, apesar de ter passado por uma fase de esquecimento aqui, morreu sendo reconhecido por sua obra. 

 

Para todo o sempre 

 

Além de buscar referências em grandes escritores nacionais e internacionais, Dicke usava como cenário a sua própria terra e dava vida a personagens inusitados, muitas vezes inspirado em figuras do seu cotidiano. 

 

“Ele era uma pessoa atormentada pela própria inteligência, pelo próprio conhecimento, pela erudição”.  

 

Apesar de muito falado e reconhecido, Lorenzo diz que poucos conhecem de verdade sua obra.  

 

“Não é para multidões, não é best seller, mas é um sucesso absoluto de crítica, pelos prêmios, pelo estilo inusitado, pelas características singulares, pelo efeito que sua obra provoca”. 

 

Além das novas publicações do romancista há outras ainda inéditas para o público. Uma delas está com Lorenzo, mas ainda sem previsão para o início do processo de publicação. 

 

Dicke é inspiração para outros escritores e roteiristas de cinema, e também para outros setores das artes. Para Lorenzo, a importância das novas publicações está em manter viva a memória do romancista. 

 

“Ele está pontuando na grande imprensa e no meio acadêmico e isso é importante. Um escritor como ele precisa ser estudado, serem feitos testes de doutorado em cima da sua obra, destrinchar, investigar e pesquisar mais sobre ele”, disse. 

 

Confira um trecho do documentário com Dicke no projeto DOC TV:

 

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