Cuiabá, Domingo, 2 de Novembro de 2025
VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
02.11.2025 | 08h00 Tamanho do texto A- A+

"Minha filha pode morrer”: Lei do Parto em MT nasce da dor de mães

Norma garante às mulheres o direito de escolher o tipo de parto no Sistema Único de Saúde (SUS)

Victor Ostetti/MidiaNews

Luana Becker está na 38ª semana de gestação e deseja fazer cesárea

Luana Becker está na 38ª semana de gestação e deseja fazer cesárea

LARISSA AZEVEDO
DA REDAÇÃO

“A minha filha pode morrer a qualquer momento. [...] Eu vivo um pesadelo todo dia”. A declaração é da dona de casa Marilei Silva Santos, que relatou ter sido vítima de violência obstétrica durante o parto da filha Bella Yorana Silva Santos, em julho deste ano, em Cuiabá.  Ela foi submetida ao parto normal mesmo após implorar pela cesárea, o que resultou em sequelas permanentes na pequena. 

 

Eu não sei mais o que fazer. Já não tenho vida. Vivo dentro do hospital, não consigo ficar com meus outros filhos.

Casos como o de Marilei inspiraram a criação da Lei do Parto Adequado (nº 13.010/2025), em Mato Grosso. A norma, proposta pela deputada estadual Janaina Riva (MDB) e promulgada pela Assembleia Legislativa em agosto, garante às mulheres o direito de escolher o tipo de parto no Sistema Único de Saúde (SUS).

 

A formulação da lei envolve discussões complexas sobre direitos das mulheres, decisões médicas e investimentos na saúde pública.

 

Em entrevista ao MidiaNews, Marilei contou a batalha que enfrenta desde o parto, em 30 de julho, quando foi submetida ao parto normal mesmo após dias de sangramento e sofrimento.

 

Ela relatou que, com cerca de 37 semanas de gestação, começou a eliminar grandes coágulos de sangue, mas não apresentava dilatação suficiente. Na Rede Cegonha, pediu uma cesariana, dizendo sentir que a filha não estava bem.

 

“Eu falei: ‘por favor, tira a minha filha. Eu estou sentindo dores, mas não estou conseguindo dilatar’. Ela [a médica] fez o toque e disse que eu estava com dois centímetros. Falou: ‘vai para casa, amanhã você volta’”, contou.

 

Marilei retornou à unidade médica por vários dias, ainda com sangramento e passando mal, mas sem receber o atendimento que pedia. No quinto dia, percebeu que a filha parava de se mexer.

 

“Perguntei por que o coração da minha filha estava batendo fraco, e ela [médica]respondeu: ‘é normal, você deve estar ansiosa para conhecê-la’. Eu falei: ‘não, não é ansiedade, eu sei que a minha filha não está bem’". 

 

Ao medir novamente os batimentos, a médica percebeu que o coração de Bella estava parando. Marilei foi encaminhada ao Hospital Geral, onde teve o parto normal, mesmo após novos pedidos pela cesárea.

 

O parto teve complicações. A equipe médica precisou estourar a bolsa e, com o esforço feito pela mãe, uma veia se rompeu na cabeça de Bella, que nasceu com sequelas, embora todos os exames anteriores apontassem uma gestação saudável.

 

“Eles não deviam ter me feito forçar. Agora minha filha tem uma sequela no cérebro. Ela vive no oxigênio. Todo dia eu tiro o oxigênio para tentar fazer ela se adaptar ao ar, mas ela não consegue”, disse.

 

Após dias internada, Bella recebeu alta, mas precisou retornar ao hospital três dias depois. Atualmente, está internada na UTI do Centro Médico Infantil, passando por cirurgias e correndo risco de ficar cega ou morrer.

 

Victor Ostetti/MidiaNews

Marilei Silva Santos

Marilei Silva Santos está há mais de 80 dias com a filha internada por sequelas do parto normal

“Eu vivo um pesadelo todo dia” 

“Agora minha filha está internada, e não vai ser uma criança normal. A médica me disse que ela pode morrer a qualquer momento, que pode viver por pouco tempo. Eu vivo um pesadelo todo dia”, desabafou.

Marilei luta na Justiça para garantir o direito ao home care, permitindo que Bella saia do hospital, ambiente que, segundo ela, traz mais riscos à saúde da filha.

“Ontem ela pegou uma infecção hospitalar. Agora precisa do home care, mas eu não sei como está o andamento. Moro numa casa simples. Esperava minha filha saudável, não assim. Nenhuma mãe quer ver um filho sofrer como eu vejo a minha filha sofrer todo dia”, relatou.

Bella precisa de uma bomba de infusão para ser alimentada em casa, mas a família não tem condições de comprar o equipamento, que custa cerca de R$ 5 mil.

“Eu não sei mais o que fazer. Já não tenho vida. Vivo dentro do hospital, não consigo ficar com meus outros filhos. Acabou com a vida de toda a minha família”, lamentou.

“Ele deu risada na minha cara”

 

Outra mulher que afirmou ter sido desrespeitada é Luana Becker, grávida de 38 semanas. Ela vai ter o segundo filho e pretende fazer a laqueadura durante o parto, motivo pelo qual opta pela cesariana.

 

No entanto, ao informar sua decisão a um médico do Hospital Santa Helena, pelo SUS, foi ridicularizada.

 

“Ele disse que não havia opção de escolha entre parto normal e cesárea. Deu risada na minha cara e falou que lá não é assim”, contou.

 

Luana afirmou ter saído abalada do consultório. “Fiquei muito preocupada e chorei. Só queria tranquilidade e o direito de escolher. Se tivesse condições, já teria marcado o parto particular, mas não tenho”, disse.

 

Além de querer evitar o duplo sofrimento de dois procedimentos separados, Luana também traz traumas do primeiro parto, quando precisou de uma cesárea após complicações.

 

Victor Ostetti/MidiaNews

Luana Becker

Luana Becker está grávida de 38 semanas

“Eu não tive dilatação e o bebê estava com o cordão na cabeça”, explicou. Agora, ela vive dias de tensão, sem saber se seu desejo será respeitado.

 

Consequências psicológicas

 

A psicóloga perinatal Fabiane Espíndola atua com gestantes e puérperas, e explicou que a violência obstétrica pode ocorrer desde comentários desrespeitosos até procedimentos sem autorização.

 

Tanto o período gestacional quanto o pós-parto são considerados momentos de crise

Segundo ela, a gravidez é um período de extrema vulnerabilidade emocional, e experiências traumáticas podem causar impactos duradouros.

 

“Tanto o período gestacional quanto o pós-parto são considerados momentos de crise. A mulher está fragilizada, com mudanças físicas, hormonais e sociais, o que exige cuidado para evitar complicações psicológicas”, destacou.

 

A forma mais comum de violência obstétrica, segundo Fabiane, é o desrespeito verbal e a negação do poder de escolha da mulher.

 

“Ela sente medo, impotência e falta de controle. Isso pode afetar até o vínculo com o bebê”, explicou.

 

Quando o parto causa sequelas físicas no recém-nascido, as consequências são ainda mais graves, podendo levar ao Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT).

 

“A mãe pode se afastar emocionalmente, especialmente se o bebê estiver internado. Isso gera sobrecarga e estresse intensos”, completou.

 

O que diz  a Lei do Parto Adequado 

 

A Lei do Parto Adequado, de autoria de Janaina Riva, com coautoria dos deputados Marildes Ferreira (PSB) e Thiago Silva (MDB), assegura às mulheres o direito de escolher o tipo de parto no SUS, desde que não haja contraindicação médica.

 

A norma também prevê o direito à analgesia de parto (anestesia em doses menores, que alivia a dor sem impedir a movimentação), procedimento ainda pouco acessível na rede pública de Mato Grosso.

 

O texto estabelece que a cesariana só pode ser realizada a partir da 39ª semana, mediante informação clara sobre riscos e benefícios.

 

“A cesariana somente será permitida a partir da trigésima nona semana, desde que a gestante seja previamente esclarecida dos benefícios do parto normal e dos riscos do procedimento”, diz a lei.

 

Janaina afirmou que a proposta nasceu de relatos de mulheres que perderam filhos ou a própria vida após serem obrigadas a fazer parto normal sem condições físicas.

 

“Muitas foram forçadas a ter parto natural sem dilatação. Em alguns casos, mãe e bebê morreram. São inúmeros relatos de violência obstétrica em hospitais do SUS”, disse a deputada.

 

Victor Ostetti/MidiaNews

Janaina Riva

A deputada estadual Janaína Riva é a criadora da Lei do Parto Adequado em Mato Grosso

Posicionamento obstétrico 

 

Caso a gestante tome essa decisão sem plena compreensão das implicações, como riscos de complicações, tempo de recuperação ou impacto em futuras gestações, a suposta ‘autonomia’ pode se tornar ilusória

As médicas obstetras Ana Flavia Santos do Nascimento Silva e Caroline Paccola concordam com o direito de escolha da gestante, desde que haja uma forma efetiva de transmitir a informação sobre os tipos e riscos de cada parto. 

 

“A gente fala de direito de escolha de respeitar a autonomia da mulher, mas se essa autonomia não for baseada em informação de qualidade, isso traz um risco, e isso também é uma forma de violência”, afirmou Caroline Paccola. 

 

“Caso a gestante tome essa decisão sem plena compreensão das implicações, como riscos de complicações, tempo de recuperação ou impacto em futuras gestações, a suposta ‘autonomia’ pode se tornar ilusória”, complementou Ana Flavia. 

 

Além disso, elas informaram que apenas dar essa escolha às mulheres não basta, é necessário possibilitar a realização do parto, que exige equipe, sala cirúrgica e materiais específicos.

 

“Se a escolha pela cesariana for liberada sem que essa infraestrutura esteja assegurada, há risco de aumento nas complicações e na desigualdade no acesso ao parto seguro”, afirmou Ana Flavia. 

 

Janaina Riva reforçou que a lei prevê divulgação de informações e oferta de analgesia, e que será necessário orçamento específico para sua implementação nos municípios.

 

“É importante dizer isso, que o médico não vai perder o poder de instruir a mulher com o parto que é mais adequado para o caso dela, mas ele vai dar a ela o direito a escolher entre as duas opções. Isso é o mais importante”, ressaltou a deputada. 

 

 

A esperança do parto humanizado 

 

Segundo Fabiane Espíndola, um parto humanizado ocorre quando a mulher é ouvida, acolhida e respeitada, e a lei pode ser uma forma de garantir isso. “Vai poder trazer para essa mulher que vive no contexto público, viver toda a gestação, o seu momento de parto, de uma forma muito mais respeitosa, com informação e cuidado”, afirmou a psicóloga. 

Eu fico feliz de estar surgindo essa lei, porque pode salvar, pode ser que não repita a mesma história da minha Bella

 

Marilei e Luana também veem na lei uma esperança para que outras mulheres não passem pelo que viveram.

 

“Essa lei vai salvar vidas, da mãe e do filho. Se o bebê nasce com problema, acaba com a vida da mãe. Eu fico feliz, porque pode evitar que outras passem pela história da minha Bella”, disse Marilei.

 

Janaina Riva completou que a norma é também uma homenagem às mulheres e crianças vítimas de partos traumáticos.

 

“É uma homenagem a todos eles. Muitas famílias se indignam com o método ainda usado no estado e no país”, afirmou.

 

Ajude Bella 

 

A fim de conseguir comprar a bomba de infusão necessária para a alimentação de Bella, Marilei está organizando uma rifa. A premiação terá primeiro e segundo lugar e deve ocorrer no dia 29 de novembro.

 

Para adquirir uma numeração, os interessados podem entrar em contato pelos números (65) 999488333 ou (65) 996363414.

 

 

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