“Teve um dia que gastei quase todo o meu salário, e eu tinha acabado de receber”. A declaração é de Maria*, de 39 anos, ao relembrar o período em que desenvolveu vício em jogos online.

*Maria é um nome fictício usado para preservar a identidade da vítima.
Atualmente em tratamento, ela recordou, em entrevista ao MidiaNews, a fase em que se tornou compulsiva pelos jogos. Tudo começou de forma aparentemente inofensiva: em meados de setembro de 2024, viu anúncios nas redes sociais prometendo ganhos fáceis e, em seguida, acessou a plataforma Fortune Tiger, o popular "Tigrinho".
No início, não ganhou nada e chegou a pensar em desistir. Mas, ao aprender com colegas como o jogo funcionava, passou a obter valores altos e, com isso, desenvolveu uma compulsividade crescente.
“Hoje em dia, tudo que você vai assistir tem recado de plataforma. No Kwai mesmo, todos os vídeos têm propaganda, tem lançamento de plataforma. Isso vai te estimulando a jogar com todas aquelas mentiras”, relatou.
Com o tempo, vieram as perdas. Primeiro, Maria teve o benefício assistencial suspenso após movimentações financeiras anormais em sua conta. Depois, começou a perder valores altos nas apostas.
Victor Ostetti/MidiaNews
Psiquiatra Vanessa Zafra, que aborda impacto dos jogos
A virada de chave veio quando perdeu quase todo o salário. Ela contou o caso à psicóloga, que identificou o comportamento compulsivo e iniciou um tratamento medicamentoso.
“Eu, na verdade, não estava bem psicologicamente. Eu estava bem abalada”, relembrou.
Segundo ela, o vício se desenvolveu em um período delicado de sua vida. Em depressão, sentindo-se sozinha e sobrecarregada, usava o jogo como forma de escape.
O vício em jogos
De acordo com a psiquiatra Vanessa Zafra, o vício em apostas geralmente começa como um hobby, uma forma de passar o tempo ou de fugir da realidade. A lógica do jogo, somada à liberação de dopamina, faz com que o desejo se torne constante e evolua para dependência.
“A dopamina controla a vontade e o impulso. A gente começa com uma experiência simples, jogando R$ 20 ou R$ 2, e isso vai ficando instigante. A mente passa a pensar: ‘eu preciso ganhar’. Essa instabilidade no sistema dopaminérgico gera o vício".
Ela acrescentou que pessoas emocionalmente vulneráveis ou que já possuem alguma dependência química ou transtorno aditivo são especialmente suscetíveis devido à predisposição biológica.
“Os pacientes que usam drogas têm de quatro a cinco vezes mais chances de desenvolver vício. Qualquer droga ilícita, álcool ou até tabaco já é fator de risco”, afirmou.
Essa foi a situação vivida por Maria ao iniciar nos jogos online. Tratando uma depressão, ela encontrou no jogo o escapismo descrito pela psiquiatra.
“A população que tem alguma dificuldade começa a buscar o que chamamos de escapismo: jogar para esquecer problemas, para buscar um suporte que não encontra em outro lugar".
O mecanismo de ganhos, aliado à adrenalina, cria um sistema de recompensa que fortalece o vício.
“Eu começo a jogar e aí eu perco. Então meu cérebro fala: ‘eu preciso jogar de novo para ganhar’. E, se eu ganhar, eu penso: ‘preciso jogar para ganhar mais’. A lógica é essa: eu sempre vou querer jogar. O jogo é feito para isso".
Mesmo após iniciar o tratamento, Maria ainda precisa lidar com o desejo de jogar e reorganizar seus hábitos para evitar recaídas.
“Então eu procuro não ter dinheiro disponível. Prefiro pedir para pagarem minhas contas adiantadas, para não estimular a jogar. Porque, senão, eu fico nervosa e quero descontar lá [no jogo]".
Influencers e divulgação
Presente em diversas plataformas de apostas, o "Tigrinho" se popularizou por meio da divulgação feita por influenciadores, que prometem dinheiro fácil em poucos cliques.
Victor Ostetti/MidiaNews
“Eles fazem propagandas milagrosas: se você jogar, vai conseguir. É uma forma muito fácil de ganhar dinheiro na lógica da propaganda".
“O marketing é a alma do negócio. A pessoa pensa: ‘estou com uma dívida… e se eu colocar 20 reais e ganhar 200?’. Mas e se perder e ficar devendo? Assim começa o ciclo vicioso”, explicou Vanessa.
Foi por meio dessas plataformas que Maria conheceu os jogos online.
“Figuras públicas acabam influenciando, porque hoje em dia somos movidos pelo mercado digital. Tudo que a gente acessa vira inspiração.
“Se aquela atriz ou ator está fazendo, a gente pensa: ‘será que também usa isso no dia a dia?’”.
Tratamento
Além do olhar crítico ao consumir conteúdos nas redes sociais, especialmente de influenciadores, Vanessa orienta buscar ajuda ao primeiro sinal problemático com jogos, antes que a situação se agrave.
“Vejo pacientes que vão ao consultório só para tirar dúvidas. Isso pode acontecer, o que não dá é se colocar em situação de risco e depois não conseguir sair. Nem tudo que o marketing divulga é de qualidade. É preciso questionar: de onde está vindo esse conteúdo?”.
Além das consultas particulares, centros de acolhimento como o CVV e os Caps oferecem atendimento e orientação. Foi assim que Maria conseguiu tratamento.
“Fui encaminhada de emergência para a psicóloga. Lá, ela me encaminhou para a psiquiatra. Foram alinhando, um trabalho em conjunto".
Segundo Vanessa, o número de apostadores no Brasil ainda é subnotificado devido ao estigma que envolve o vício. Apesar disso, ela reforça a importância de buscar ajuda:
“É essencial reconhecer os fatores de risco e procurar ajuda precoce. Não é falta de coragem pedir ajuda. Muita gente evita o psiquiatra por causa do estigma. Então leve a pessoa para qualquer outro médico, se for o caso. Mas não tenha vergonha. Isso sim é coragem".
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