No Sistema Único de Saúde (SUS), um profissional pode ter dois vínculos públicos se os horários forem "compatíveis". Parece razoável, não é? Mas na prática, virou uma bagunça institucional. Médicos, enfermeiros, técnicos — todos podem ter dois cargos públicos e ainda atuar no setor privado, desde que consigam encaixar tudo no papel. Na vida real, isso se transforma em jornadas intermináveis, profissionais exaustos e usuários mal atendidos.
Trabalhei por anos na gestão de hospitais e serviços de saúde. Já vi de tudo: servidor que sai de um plantão noturno em um hospital municipal direto para uma unidade básica em outro município. Chega atrasado, cansado, disperso — e ainda tem mais um turno à noite. Você confiaria sua saúde a alguém que está há 18 horas sem descansar? Pois é. Isso acontece todos os dias.
O discurso é bonito: "o profissional está se desdobrando para atender a população". Mas o que vemos é o contrário. A qualidade do atendimento despenca, os erros aumentam, a paciência acaba. O paciente espera mais, o profissional erra mais, e a saúde pública afunda aos poucos.
A verdade é que o duplo vínculo virou um câncer legalizado que corrói o SUS por dentro. E o sistema ainda finge que não vê. Muitos gestores não fiscalizam, não cruzam informações, não perguntam nem exigem nada. Basta o profissional assinar uma declaração dizendo que os horários não se chocam e pronto: está liberado para viver de plantão em plantão como se fosse um super-herói. Só que herói também cansa — e erra.
Esse modelo de acúmulo virou uma cultura dentro do SUS. É conveniente para o trabalhador que quer melhorar sua renda, e mais ainda para o gestor que não quer abrir concurso nem melhorar o salário. Só que quem paga o preço é o cidadão, que precisa de atendimento com qualidade, atenção e segurança. E isso não combina com plantões em sequência, muito menos com ausência de controle.
A conta não fecha. O profissional fica sobrecarregado, a produtividade cai, e o número de atestados e afastamentos cresce. O sistema perde força, o clima nas unidades piora, e o serviço que chega ao paciente é apenas uma sombra do que deveria ser.
A solução não é simples, mas é possível — e urgente. Precisamos criar uma carreira única no SUS, com salário digno, jornada justa e dedicação exclusiva. O profissional deve escolher: ou serve ao sistema público com foco total, ou busca alternativas fora dele — mas não os dois ao mesmo tempo. E o Estado precisa fazer a sua parte: criar um controle nacional de vínculos por CPF, para saber exatamente quem está trabalhando onde, por quantas horas, e se está entregando o que deve.
Ou encaramos esse problema agora, com seriedade e coragem, ou vamos continuar fingindo que tudo vai bem, enquanto a saúde pública afunda de exaustão, omissão e hipocrisia.
O duplo vínculo, da forma como é praticado hoje, não é solução. É sintoma de um sistema doente.
Luiz Fernando Rogério é gestor de Hospitais e Serviços de Saúde.
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