No comando da DRCI (Delegacia Especializada de Repressão a Crimes Informáticos) há dez meses, a delegada Juliana Chiquito Palhares tem lidado com o que há pior no ser humano: a pedofilia. Entre outros casos, ela investiga pessoas que se aproveitam das profundezas da internet para satisfazer desejos doentios por crianças.

“No início da minha carreira trabalhei na Delegacia da Mulher, Criança e Idoso. Então lidei muito com crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes. Mas nada me chocou tanto quanto ver essas imagens que são comercializadas e compartilhadas. São horríveis, tenebrosas”, disse em entrevista ao MidiaNews.
“Pensa o que vai ser a consequência disso para aquela criança. Então isso me impactou bastante. E por ter me impactado, é um dos focos que eu mais me dedico, mais me envolvo com os policiais”.
Há 17 anos como delegada da Polícia Civil de Mato Grosso, Juliana já comandou também a DRE (Delegacia Especializada de Repressão a Entorpecentes). Na entrevista, ela falou ainda sobre golpes, cyberbullying e o desafio de ser mulher em um ambiente predominantemente masculino.
Confira os principais trechos da entrevista:
MidiaNews - Nos últimos anos, grande parte dos bandidos migrou das ruas para o ambiente virtual. Não acha que o aparato de segurança ainda está aquém deste avanço da criminalidade?
Juliana Chiquito - Bom, de fato, houve essa migração, é perceptível para nós da Segurança Pública e para todos os cidadãos. Todo mundo hoje sabe de alguém caiu num golpe. É muito mais factível esse tipo de crime do que se falar tanto num crime de roubo, num crime de furto.
O aparato de Segurança Pública vem se moldando a essa evolução social também. Seja em entender esse fenômeno nas metodologias ou [criando] ferramentas de investigação. A Polícia Civil de Mato Grosso é uma das líderes em desenvolvimento de ferramentas, de metodologias e de êxitos, não só na apuração dos crimes informáticos ou cibernéticos, mas também na resolutividade de crimes de homicídio, por exemplo, onde somos campeões do Brasil.
Mas é preciso sempre pontuar que a tecnologia hoje que é de ponta, semana que vem já está defasada. Então há que se ter uma atenção sobre isso e qualificação constante, porque é um universo novo. Muitas pessoas têm dificuldade de se adaptar a novas metodologias e formas de investigação e nesse ponto a Polícia Civil já se antecipa com vários cursos presenciais ou EAD (Ensino à Distância). Nós da DRCI participamos ativamente disso junto com a Acadepol (Academia de Polícia Judiciária Civil de Mato Grosso).
O criminoso está sempre um passinho à frente. Por quê? Porque ele não tem regramentos, não tem uma legislação, não tem que se preocupar com preservação de dados, não tem que se preocupar com a legalidade, com cadeia de custódia, com rito... Mas a gente se esforça, se dedica e se qualifica constantemente seja em tecnologias, seja em conhecimentos específicos.
MidiaNews - Estamos em um período de campanha eleitoral, propícia para crimes na internet. É um período onde costuma surgir muitas fake news, muitos ataques à honra das pessoas e até divulgação de materiais ilegais. Como a delegacia tem atuado para evitar esses crimes nesta eleição?
Juliana Chiquito – Especificamente no pleito eleitoral é uma atribuição federal, então a Polícia Federal é a responsável por apurar, a Justiça Eleitoral é responsável, mas a Polícia Civil também se prepara para recepcionar, produzir os elementos de informação que precisam ser feitos, preservação de registros, captar, ‘eternizar’ aquele momento.
Nós recepcionamos essas demandas, damos um tratamento no sentido de preservar aquelas evidências digitais, especialmente quando esses crimes são cometidos através da internet, no meio digital, e aí encaminhamos para a PF. A Polícia Civil toda está mobilizada para no dia do pleito também colaborar com a votação.
Temos todas as ferramentas que desejamos? Não, não temos. Mas nós fazemos o nosso melhor com aquilo que é uma realidade para a gente hoje. Hoje há uma estrutura sim, para recepcionar esse tipo de demanda, que aliás não tem nada de anormal, é tal qual um crime que é perpetrado pela rede, pela internet, fora do pleito eleitoral.
Um crime contra honra, um crime de difamação, de calúnia, de injúria, perseguição, exposição indevida de fotografias, vídeos, tudo isso, seja no pleito eleitoral, ou fora dele, a Polícia Civil está preparada para recepcionar, fazer a prova disso e fazer a preservação dessa evidência digital para que a pessoa leve às raias da justiça criminal àquele fato e nas raias da justiça cível as reparações devidas.
MidiaNews - A senhora disse que vocês trabalham com o melhor que vocês têm hoje. A delegacia demanda de equipamentos muito caros, há falta de pessoas técnicas para trabalhar ou uma falta de estrutura?
Juliana Chiquito - Efetivo é sempre um gargalo. A nossa unidade ela tem servidores públicos dedicados, qualificados, aptos e dispostos a atender a demanda, mas não é fácil. Nós desenvolvemos metodologias, procedimentos operacionais padrão, testamos ferramentas, pois temos diversas, inclusive gratuitas, que são homologadas por grandes empresas, para as investigações, e temos as pagas, que são caras sim. Algumas nós temos licenças e aí nós temos as renovações de licenças para também formalizar.
E um processo de aquisição de ferramentas tecnológicas pela inteligência da Polícia Civil ou pela Secretaria de Segurança Pública tem que ser pensado e pesado. Quantos casos essa ferramenta de R$ 1 milhão vai solucionar? Quem vai ser alcançado por esse investimento do governo? Então, por isso que a gente também tem que criar indicadores desses crimes.
MidiaNews - O que deve fazer uma pessoa que caiu no golpe do Pix?
Juliana Chiquito - Hoje se você cai num golpe e você faz um PIX pro golpista, a primeira providência é fazer um MED (Mecanismo Especial de Devolução) no seu banco, que é uma plataforma que você vai avisar o seu banco que você caiu num golpe.
E aí esse seu banco vai se comunicar com os outros bancos para informar, para tentar preservar algum valor.
Só que vamos dizer que você não fez o MED, não sabia, vai fazer o BO depois de dois dias lá na delegacia. O que eu tenho para fazer? Porque afinal de contas você perdeu, quer saber do seu dinheiro, eu entendo isso. Mas a Polícia Civil investiga o quê? Crime, a materialidade do crime e a autoria. Esse ressarcimento não está na nossa esfera.
Mas óbvio que a gente sabe que a vítima deseja isso. E quais são os instrumentos que hoje a legislação tem para eu atender essa vítima? Afastamentos de sigilos bancários e telemáticos, o que é bastante moroso ainda. Então nós, como sistema de Justiça, precisamos pensar em ferramentas ágeis que consigam bloquear essa pulverização desses valores. A gente tenta, mas há uma resistência bastante significativa em aceitar esse poder na mão de um delegado de Polícia.
MidiaNews - Falando de ferramentas, uma lançada recentemente foi o Chatbot. Isso é uma inteligência artificial que já tinha em outros estados ou foi desenvolvida aqui?
Juliana Chiquito - Nesse formato eu não conheço [que tenha em outros estados], mas por exemplo, você com certeza já entrou em contato no WhatsApp de alguma empresa e você foi atendido por um chatbot.
O que a gente mais atendia ali na DRCI? Pessoas que tinham suas contas em redes sociais hackeadas, que perdiam o acesso ao Instagram, ao WhatsApp, ao Facebook... E a gente pensou: ‘Poxa vida, não é possível que a pessoa tenha que vir à delegacia pra gente ensinar ela a fazer esse passo a passo’.
Aí o nosso delegado Gustavo [Godoy] teve um insight quando foi atendido por um chatbot de uma vidraçaria. Ele falou: ‘Meu Deus do céu, a vidraçaria tem um mecanismo eficiente e por que não a nossa unidade?’
Então nós fomos atrás e criamos o nosso chatbot, que é uma inteligência artificial que a pessoa chama a gente no WhatsApp, fala qual é o seu problema dentre uma lista de problemas e aí tem respostas automáticas de passo a passo para que o cidadão possa, por si só, tentar resolver aquele problema também.
Ah, mas ele daí não faz B.O.? Faça o B.O., comunique que isso está acontecendo. O dono da conta não vai ter um maior prejuízo, mas um amigo dele que acreditou que ele estava vendendo uma mesa porque ele ia se mudar de cidade, teve um prejuízo financeiro, que é um crime de estelionato. Então aí o amigo deve fazer um boletim de ocorrência de estelionato.
Só que a recuperação da conta a própria pessoa pode fazer. Quando acontece um golpe, você fica sem saber o que fazer, então nada melhor do que um passo a passo. Essa ideia, que foi simples, ajudou bastante e as pessoas demandam bastante o nosso WhatsApp, com esses atendimentos automáticos que são 24 horas por dia, sete dias por semana.
MidiaNews - Os estudos para adquirir ferramentas, são os servidores que fazem?
Juliana Chiquito - Não, nós temos outros setores que também testam ferramentas, seja no âmbito macro como a Secretaria de Segurança Pública, seja no âmbito da Diretoria de Inteligência da Polícia Civil, o ‘Cyber Lab’.
Hoje nós trabalhamos com muitos dados, bancários, telefônicos, telemáticos, de registros e o que eu faço com esse mundo de dados? Eu tenho uma solução tecnológica que analisa e que me dá um layout, que me dá uma hipótese.
Então isso é a tecnologia ao nosso alcance e cada vez que eu tenho uma investigação complexa eu reúno muitos dados. Redes sociais têm muitos dados, o Google, emails, nuvem também tem. Então ter uma autorização judicial e obter isso é fácil, mas o que eu faço com esses dados depois? Nós temos que ter ferramentas que otimizam isso para a investigação ser célere.
MidiaNews - Falando mais especificamente de algumas operações. A Operação Código Seguro, que investigou um grupo acusado de invasão nos sistemas da polícia. Duas coisas: essa organização criminosa estava atrás de que tipo de informação e há servidores envolvidos, que tinham ligação com essa organização criminosa?
Juliana Chiquito - Hoje todo mundo fala que informação é poder e é mesmo! Existe um submundo de negociação e venda de dados e de informações para [prática de] fraudes. Então, quanto mais dados eu tenho, como um cybercriminoso, mais posso utilizá-los em fraudes.
Então qual é o objetivo dessas invasões de sistemas? É obtenção de dados. Dados que eles não teriam acesso, normalmente. Para quê? Para fraudes.
Por isso que há um investimento significativo, hoje, de proteção de dados, de ferramentas que possam detectar tentativas de invasão e uma vez tendo a invasão, cercear aquele ataque.
O que aconteceu na Código Seguro não foi uma invasão, foi uma tentativa. Todo o sistema que garante uma integridade desses dados da segurança pública, em especial o da Polícia Civil, ele é repleto de camadas de segurança. E foi detectada uma tentativa de acessar através de um bot de inteligência artificial, com alguma senha de usuário vazada.
Ah, então quer dizer que algum servidor teve sua senha vazada? Sim. De que forma? Phishing, malware, wi-fi público [etc.].
MidiaNews - Então não foi identificado nenhum servidor?
Juliana Chiquito - Não. É um vazamento de credenciais, o usuário, login e senha de 'N' servidores estão vazados.
Por quê? Phishing, acessar em uma lan house ou acessar de um wi-fi gratuito, por exemplo. Só que o sistema de proteção vai identificar que aquele acesso está vindo de um endereço IP distinto e não conhecido e já obsta esse acesso.
Então essa investigação, a Código Seguro, repleta de dados, exigiu da nossa unidade um esforço dedicado. A gente chegou na primeira fase, que foi a deflagração dessa operação lá no Paraná e estamos avançando em novas vertentes relacionadas ao que descobrimos do material arrecadado nessa primeira fase, que foi lá em julho.
MidiaNews - Recentemente a DRCI deflagrou uma operação para combater o cyberbullying. Há um perfil de quem comete esse tipo de crime? As pessoas mais jovens que cometem o cyberbullying têm noção da gravidade e que isso é um crime?
Juliana Chiquito - Essa operação foi um pouco assustadora pra gente. Por mais que na literatura e na troca de percepções com colegas ouvimos falar de grupos que obrigam a automutilação, instigação a tirar a própria vida aos adolescentes vulneráveis [ver é mais difícil].
Sempre existiu bullying. Agora, eu saía da escola e voltava para casa o bullying cessava, certo? Porque aquilo não ia para dentro da minha casa. Hoje com a internet e redes sociais isso vem para dentro da casa da pessoa.
Então, uma pessoa que é vítima de um bullying na escola, isso não cessa na escola, vem pra dentro da rede social dela, dos e-mails, dos grupinhos de que ela é excluída. Então isso é muito perigoso pra nós como sociedade.
MidiaNews - Já se deparou com casos de induzimento ao suicídio pela internet aqui em Mato Grosso?
Juliana Chiquito - Sim. É muito difícil, né? É por isso que a atenção deve ser redobrada com o que seu filho consome nas redes e nos jogos eletrônicos.
E não pense que nesses jogos eletrônicos, que falam assim ‘ah, é só joguinho’. Não, tem os chats de conversa. E nesses chats de conversa, dentro desses jogos online, pode ter uma pessoa ali com outras intenções.
Muitos pedófilos permeiam esse mundo também. E a DRCI também atua nessa área.
MidiaNews - A DRCI também atua nessas no combate à pedofilia e à apologia ao nazismo. Esses tipos de crime acontecem com frequência no estado?
Juliana Chiquito - É muito frequente, sim. Infelizmente, essas pessoas que se unem para atacar uma escola, elas têm ídolos que você não nem acredita. Tem Hitler como um ídolo, como uma figura [a ser] seguida, como um segregador que é positivo, como se alguma segregação fosse positiva.
MidiaNews - Eles agem na dark web?
Juliana Chiquito - Sim, eles têm esses canais onde eles conversam, seja na dark web, seja no Telegram, no Discord, nos jogos.
Esses jogos, por exemplo, Roblox, que às vezes você fala ‘eu não vejo nada de mal’, mas existem os chats de conversas online e nesses chats você acha que o seu filho está teclando com outra criança da escola dele e não é.
É aí que eles começam a cooptar esses jovens para este mundo e vão para outros canais privados de conversa, de criptografia, ou na dark web. E aí existe um monitoramento constante disso [na DRCI].
MidiaNews - A pedofilia é um tipo de crime muito pesado, difícil. Como que é ter que lidar com isso no seu trabalho? Como isso te afeta?
Juliana Chiquito - É difícil. No início da minha carreira trabalhei na Delegacia da Mulher, Criança e Idoso, então lidei muito com crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes. Mas nada me chocou tanto quanto ver essas imagens.
Essas imagens que são comercializadas e compartilhadas são horríveis, tenebrosas. Então isso me impactou bastante. De como que um ser humano pode fazer isso com uma figura tão pueril, tão angelical que é uma criança. E deturpar né!?
Pensa o que vai ser a consequência disso para aquela criança. Então isso me impactou bastante. E por ter me impactado, é um dos focos que eu mais me dedico, mais me envolvo com os policiais.
Isso mexe muito conosco. Nós temos lá policiais que são pais, que são mães, e realmente é muito impactante. Para aquela foto ou vídeo acontecer, mesmo que tenha sido há muito tempo atrás, uma criança foi abusada, teve sua dignidade sexual violada.
É um esforço global e eu conclamo sempre a sociedade a tomar cuidado com as fotos de seus filhos. Às vezes aquela coisa inocente, que você tira foto do seu bebê andando peladinho pela casa pode parar em mãos horrorosas. Nudez infantil não se filma ou se fotografa.
MidiaNews – A Polícia ainda é um ambiente muito masculino. A senhora está em uma posição de destaque, à frente de uma delegacia. Ao longo da sua carreira, você já enfrentou situações de machismo, de alguém desafiar a sua autoridade por ser uma mulher?
Juliana Chiquito - Olha, frontalmente, nunca fui ou nunca me senti discriminada ou desautorizada pelo fato de ser mulher, especialmente pelos meus policiais. Velado, com certeza [já houve].
Certamente, em um dado momento, eu devo ter sido desprestigiada para que um homem, talvez um amigo, fosse [prestigiado]. Estou com 17 anos aqui, hoje nós temos a nossa primeira delegada geral da Polícia Civil, a doutora Daniela Maidel, o que em toda a existência [da PJC] nunca tivemos.
Ainda somos poucas mulheres na gestão maior da instituição, seja da Polícia Civil, da Militar, da Penal, da Politec ou da Polícia Federal. Hoje nós temos uma mulher como superintendente aqui, a Defensoria Pública também é uma mulher no comando e o Tribunal de Justiça também.
Mas que caminho essas mulheres percorreram para estarem ali, nesse cenário de quantas competências as mulheres já não demonstraram ao longo da sua carreira? Parece que a gente sempre tem que mostrar duas, três vezes mais. Mas eu agradeço a todas as mulheres que chegaram antes de mim na polícia. Se eu hoje consigo estar à frente de uma unidade como a DRCI, estive à frente da DRE, e posso estar à frente de outras frentes dentro da Polícia Civil, foi porque mulheres desbravaram esse caminho.
Respondendo diretamente à sua pergunta, eu nunca fui frontalmente impactada por um ato discriminatório porque eu sou uma delegada mulher. Isso não significa que outras não sofreram isso e que não exista esse preconceito velado dentro da instituição. Mas nós estamos evoluindo e vamos evoluir cada vez mais. Ninguém aqui quer ser melhor que homem. A gente quer ter a mesma oportunidade e demonstrar a nossa competência.
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