Alguém escreveu que, antes de BB, a mulher que tinha um amante era uma sem-vergonha. Depois de BB, é uma mulher liberada. A frase pode não ser de todo correta, mas não está longe da verdade. Brigitte Bardot, morta aos 91 anos, encarnou, desde os anos 1950, a imagem da mulher leve, moderna, de porte altivo, atrevida e tímida ao mesmo tempo, insinuante e de uma beleza sem afetações —mas sobretudo mulher livre para ser e fazer o que bem quisesse.
Sua morte foi confirmada neste domingo pela fundação que leva o nome da atriz.
Essa imagem se torna famosa em todo o mundo, paradoxalmente, não por causa da França, mas pelos Estados Unidos, já que "E Deus Criou a Mulher", de 1956, fracassou em seu lançamento na França e foi massacrado pela crítica. Quem se salvou foram os cineastas Claude Chabrol, François Truffaut e Jean-Luc Godard, que de imediato viram no filme o surgimento de uma França moderna e, em Bardot, o símbolo da nova mulher francesa do pós-Guerra.
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Resultado —Roger Vadim, autor do filme e então marido de Bardot, relançou a obra nos Estados Unidos, onde o sucesso foi grande o bastante para reverter o fracasso original, se espalhar pelo mundo, fazer dela um "sex symbol" absoluto de sua era e, de quebra, consagrar a frase publicitária "Deus criou a mulher, e o diabo inventou BB". Com efeito, o filme hoje está um tanto ultrapassado —ainda assim, a cena em que Bardot dança em cima de uma mesa ainda é memorável.
Na verdade, sua vida na arte começa pelo balé. Filha de um industrial de família tradicional e católica de Paris, nascida em setembro de 1934, começou a dançar aos oito anos. Aos 15 anos se tornou capa da revista Elle e foi convidada pelo diretor Marc Allegret.
Duas coisas ocorreram nesse momento, no entanto. A primeira foi cruzar com Roger Vadim, então com 21 anos, encontro em que ambos se apaixonaram de imediato. A segunda foi o drama familiar que viveu, já que o pai não queria ver a filha de modo algum no cinema. Bardot foi salva pelos argumentos do avô que a defendeu —"se tiver de ser puta, essa menina vai ser com cinema ou sem, se ela não tiver de ser puta, não é o cinema que a vai mudar".
E lá foi ela. Em dezembro de 1952, chegando aos 18 anos, Bardot se casou com Vadim, então com 24. O convite de Allegret primeiro não deu em nada, mas Bardot começou a conseguir papéis numa série de filmes, por vezes significativos, como "Se Versalhes Falasse", de Sacha Guitry, de 1954, "As Grandes Manobras", de 1955, de René Clair —e ainda aquele com o título sugestivo de "Desfolhando a Margarida".
A celebridade que chegou com "E Deus Criou a Mulher" foi instantânea e basicamente mundial. Ainda nos anos 1950, Kirk Douglas, fascinado por ela, queria levar a atriz para os Estados Unidos —sua mulher não deixou. Um Bob Dylan ainda adolescente dedicou uma canção a ela.
Em 1960, Jorge Veiga lançou a marchinha de Carnaval, escrita por Miguel Gustavo, que começava assim —"Brigitte Bardot, Bardot/ Brigitte beijou, beijou./ Lá dentro do cinema todo mundo se afobou". E seguia indagando "BB, BB, BB/ Por que é que todo mundo/ Olha tanto pra você?".
Nem sempre foi um mar de alegria. Na comédia "Babette Vai à Guerra", de 1959, obra de Christian Jaque, ela passa de sedutora fatal a garota inocente, o que, francamente, não chega a ser uma grande mudança. Ela era sedutora de um modo ou de outro.
Em "A Verdade", de 1960, ela se embrenha pelo drama penitenciário. Pior —foi dirigida pelo brutal Henri-Georges Clouzot, que por alguma razão obscura o establishment cinematográfico francês da época tinha como o melhor diretor do mundo.
O mais sádico, talvez. Antes de rodar uma cena dramática, BB teve a má ideia de sorrir. Furioso, Clouzot se levantou e pisou no pé da atriz com o salto de seu sapato. Ela chorou de dor, enquanto o diretor berrava "eu não preciso de amadores no meu set". Daí por diante, ele passou a motivar o choro na atriz dizendo a ela, baixinho, as piores coisas a propósito de sua vida pessoal.
O método pode ter sido estúpido, mas, por uma vez, trouxe a crítica para o lado da atriz. O filme foi para o Festival de Veneza, na Itália. As multidões se aglomeravam para ver Bardot. Um avião desenhou no céu as iniciais BB.
Com Louis Malle, faz "Vida Privada", de 1961, com ela como atriz e personagem. Vida privada era o que BB menos tinha a essa altura dos acontecimentos. Quando rodava uma cena na Suíça, com Marcello Mastroianni, foi recebida a ovos, tomatadas e insultos vários, por suíços que ordenavam a ela de fazer suas sujeiras lá onde nasceu.
Malle gostou da ideia e incluiu uma cena em que uma "concierge" —na França, com frequência, um misto de zeladora, delatora e fiscal de costumes— ou faxineira a agride com palavras nada gentis. "Estou cheia de ver sua cara em toda parte. Você não vai deixar em paz esses pobres rapazes? Mas quem é você, afinal? Uma cadela? Ganha milhões para se mostrar pelada." Por aí vai.
Como nem só de ser ofendida BB vivia, em 1960 mesmo ingeriu barbitúricos e cortou os pulsos no dia do seu aniversário. Estava na Côte d’Azur e foi encontrada perto de uma propriedade rural em Menton. A sua fama dificultava até mesmo a chegada aos hospitais, já que a ambulância em que se encontrava era constantemente impedida de prosseguir pelos fotógrafos que a cercavam.
A mesma fama, o mesmo carisma permitiam certas liberdades a ela. À pergunta "o que você usa para dormir?", que Marilyn Monroe respondeu dizendo "Chanel Nº 5", Bardot responderia de modo mais atrevido —"os braços do meu amante". A resposta de Marilyn Monroe de certa forma continha a solidão que a frequentava. Outro era o caminho de BB, o amor a todo preço.
Nessa altura, sua vida pessoal já era uma bagunça. Ainda no set de "E Deus Criou a Mulher", ela se apaixonou por Jean-Louis Trintignant, que por sua vez largou a mulher, Stéphane Audran —que futuramente se casaria com Claude Chabrol.
Tempos depois, quando ela engatou um romance com o cantor Gilbert Bécaud, Trintignant a abandonou. Ela trocaria ainda Bécaud por Sacha Distel, outro cantor da época, antes de casar com o ator Jacques Charrier, em 1959, de quem engravidou. Ela não queria o filho. Disse que os nove meses de espera foram massacrantes.
Para o parto, feito em seu apartamento, foi montado uma espécie de bunker, para que a imprensa não tivesse acesso ao evento. Com tudo isso, Bardot detestou ter o filho, Nicolas-Jacques, que foi criado pela família de Charrier. Discreto, hoje ele vive na Noruega, casado com a modelo Anne-Line Bjerkan, com que teve as filhas Thea Charrier e Anna Charrier. Sobre as bisnetas, Bardot chegou a dizer que o contato era difícil, já que elas não falavam francês.
Em 1962, ela se separou do depressivo Charrier e se ligou a outro ator, Samy Frey. Em 1964, veio passar o verão no Brasil, já em companhia do namorado Bob Zagury, basicamente um playboy, que a levou até Búzios, no Rio de Janeiro, onde ela ganharia uma estátua em tamanho natural.
Já havia aí confusão para mais de uma vida, mas ela logo se casou com outro ricaço, Gunther Sachs, também fotógrafo, em 1966, o que não a impediu de ter um tórrido caso com Serge Gainsbourg, que compôs para ela a célebre canção "Je T’Aime Moi non Plus". Eles a gravam em conjunto, mas, por respeito a Sachs, BB pediu a Gainsbourg que não divulgue a gravação. A música só vai aparecer em 1969, com Jane Birkin como parceira de Gainsbourg —no mesmo ano, aliás, em que o casamento de BB com Sachs chegou ao fim.
Louis Malle, que com "Vida Privada" desvendaria uma existência devassada por todos os lados, parecia se dar bem com ela, tanto que a chamou para o faroeste-paródia "Viva Maria!", em companhia de Jeanne Moreau —encontro do mito "sex symbol" com o mito Moreau, então a principal atriz francesa. Depois veio o belo "William Wilson", episódio das "Histórias Extraordinárias", baseadas em contos de Edgar Allan Poe.
Se algo ficará para sempre, no entanto, é a parceria com Jean-Luc Godard. Ela não era a preferência de Godard para "O Desprezo". Foi imposta pelo produtor americano do filme, Joseph Levine. Também não a queria filmar nua. Foi imposição de outro produtor, Carlo Ponti, para quem, se estava pagando para ter BB, ela devia aparecer nua em algum momento.
Sabemos como Godard resolveu o problema —pondo Bardot nua na cama junto de Michel Piccoli, de bruços, em plano médio, enquanto pergunta ao parceiro sobre as partes do seu corpo de que ele gosta —de todas.
O que há de mais célebre no filme não é nenhuma cena. É a aposta que fez com Godard. Ele não suportava a altura do penteado da atriz. Ela adorava. Ele então propôs que andaria de ponta-cabeça, com as mãos no chão. E a cada passo que avançasse sem parar ela abaixaria um centímetro da célebre cabeleira. Ele conseguiu dar 11 passos. Ela pagou a aposta.
O resultado é magnífico, mas BB percebeu todo o tempo que seu papel não era outro senão o de Anna Karina, e que Godard estava, a rigor, filmando o fim de seu casamento com sua então mulher. Não reclamou, ao contrário. Tentou fazer como Karina faria, não se queixou nem mesmo da peruca de cabelos escuros que Godard destinou a ela.
Não foi nem o início nem o final de sua carreira. Mas é preciso reconhecer que daí por diante ela foi quase sempre mais célebre pelos filmes que rejeitou do que pelos que fez. Recusou, por exemplo, estar em "007 - A Serviço Secreto de Sua Majestade", de 1969, dizendo "adoro os filmes de James Bond, desde que sem mim".
Recusou também "O Estrangeiro", de 1967, dizendo que Luchino Visconti mais Albert Camus era "intelectual demais" para ela. Mas também preferiu ficar fora dos dois musicais de Jacques Demy para os quais foi convidada, "Os Guarda-Chuvas do Amor", de 1964, e "Duas Garotas Românticas", de 1967. Não era por nada que se dizia que BB sabotava a própria carreira. Também não quis fazer "Crown, O Magnífico", de 1968, grande sucesso de Norman Jewison com Steve McQueen e Faye Dunnaway, que ficou com o seu papel.
Com efeito, fez o frouxo "As Petroleiras", de 1971, de Christian-Jaque, apenas pelo prazer de fazer dupla com Claudia Cardinale; topou o faroeste "Shalako", de 1968, filme de Edward Dmytryk, nulidade em que trabalhava com Sean Connery.
Em contrapartida, quis ardorosamente filmar "A Sereia do Mississipi", desde que François Truffaut anunciou o projeto. Mas Truffaut a preteriu em favor de Catherine Deneuve. Bardot ficou furiosa e festejou quando soube que o filme era um fracasso.
Estrela maior não só cinema francês como da França propriamente dita, em 1970 ela se tornou a primeira atriz a servir de modelo para um busto de Marianne, a figura feminina símbolo da Revolução Francesa.
Em 1973, decidiu encerrar sua carreira no cinema, com 45 filmes rodados. Prosseguiu com a música até os anos 1980, tendo gravado cerca de 70 canções, inclusive o "Je T’Aime Moi non Plus", que autorizou o autor a divulgar também nos anos 1980, quando já era sucesso na parceria dele com Jane Birkin.
Bardot então já se dedicava havia muito tempo à proteção da vida animal e se dispôs a escrever à Organização das Nações Unidos em defesa do vegetarianismo. Ela depois intensificaria seus esforços nessa direção. Mais de uma vez disse que prezava os animais muito mais do que os homens.
Só em 1992, já bem longe do cinema e até da musica, ela se casou novamente, agora com o industrial Bernard d’Ormale, conselheiro político de Jean-Marie Le Pen. A adesão à extrema direita que se seguiu detonou outra e não menos escandalosa existência para BB. Conservadora, ela sempre foi e disse que era. Agora, no entanto, dizia se opor ao islamismo devido à maneira como sacrificavam animais.
Mais polêmica —seu voto em Marine Le Pen para a presidência da França. E mais um pouco —cinco condenações por ódio racial. Ela nunca as aceitou, disse que jamais incitou alguém a odiar em especial muçulmanos. No entanto, estão longe de ser gentis certas declarações contra a população muçulmana, como as de que "nos destrói, destrói nosso país, impondo seus hábitos a nós".
Também não foi propriamente gentil com os imigrantes ilegais na Europa —"clandestinos ou mendigos profanam e tomam de assalto nossas igrejas para as transformar em chiqueiros humanos".
Em setembro deste ano, ela lançou o livro "Mon BBcédaire", no qual ela dá sua opinião, muitas vezes incisiva, sobre o mundo. "A liberdade é ser você mesmo, mesmo quando incomoda", escreveu já no prólogo.
Da "A" de abandono ao "Z" de zoológico, a atriz declara seu amor por Jean-Paul Belmondo, um "cara formidável, ator genial, engraçado e corajoso", mas opina que Alain Delon "carrega em si o melhor e o pior". Também menciona a famosa cidade de Saint-Tropez, onde comprou uma casa, "La Madrague", e lamenta que este "lindo pequeno vilarejo de pescadores" tenha se tornado "uma cidade de milionários onde já não se reconhece nem um pouco seu charme".
O distanciamento também dos franceses não foi tão menos radical. Não por acaso escreveu em seu livro "Larmes de Combat", de 2018, que não fazia parte da espécie humana. "Não quero fazer parte. Eu me sinto diferente, quase anormal." E talvez por se sentir diferente, achou, quando tratou um câncer no seio, que o melhor seria não dar importância à doença. Ideia que Jane Birkin conseguiu tirar a tempo de sua cabeça.
Nesse seu livro-testamento, ela credita à luta pelos direitos dos animais a força para ter se livrado das luzes da ribalta. Verdade seja dita, de um modo ou de outro, essas luzes nunca a abandonaram —BB pode ter tido seus defeitos, mas foi uma estrela do começo ao fim.
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