21.05.2017 | 08h:45

INTERAÇÕES & ABUSOS


Trotes na UFMT transitam entre o rito acolhedor e a violência

Recepção pode estar entre amparo e opressão; estudantes contam diferentes perspectivas

Alair Ribeiro/MídiaNews

Faculdade marca nova etapa na vida de centenas de estudantes

A Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) iniciou, na última semana, mais um ano letivo. Com este novo semestre, inicia-se também a concretização de sonhos e realizações de vestibulandos que, após passarem mais de 12 anos de suas vidas ou mais estudando, estão ansiosos por poderem finalmente entrar em uma universidade pública.

 

Uma maneira de acolher os calouros é o trote, considerado um “rito de passagem” tradicional nas universidades e de natureza controversa. Entretanto, ele pode estar entre a comemoração desse momento simbólico e a opressão.

 

Em sua maioria entre 17 e 18 anos, os jovens graduandos tem trajetórias diferentes e expectativas distintas para sua vivência acadêmica e até mesmo para os trotes. Enquanto alguns esperam ansiosamente pela recepção que os veteranos prepararam, outros temem por ela e não se sentem à vontade para participar.

 

No caso da estudante de Letras do 7º semestre, Mylene Moara, sua perspectiva de trote foi frustrante, já que esperava por uma recepção mais calorosa.

 

“A minha recepção foi legal, mas eu queria pedir dinheiro no sinal, queria mais atividades de interação, cantar por aí. Mas o pessoal do meu curso é meio parado. Senti falta disso, porque via em todos os outros cursos. Só nos pintaram e deram apelidos legais, caminhamos pela UFMT e almoçamos no RU [Restaurante Universitário]. Não queria nada pesado, mas queria mais interação”, lamentou.

 

Quando chegamos lá, eles tinham feito uma lavagem para jogar na gente. Tinha resto de peixe morto, vômito, urina, coisas fermentadas

Dada à euforia do momento, alguns calouros acabam se submetendo a trotes que podem ser abusivos. Uma estudante do curso de Agrárias (Faculdade de Agronomia, Medicina Veterinária e Zootecnia), por exemplo, recebeu o resultado positivo do vestibular e logo se mudou para a Capital.

 

Animada para conhecer o campus e novos colegas, a estudante aceitou participar do trote que os veteranos organizaram. Ela, que não quis se identificar por medo de represálias, descreveu o que passou.

 

“Nós fomos de ‘elefantinho’ daqui do bloco das faculdades para uma pracinha no Jardim Tropical, atrás da City Lar. Quando chegamos lá, eles tinham feito uma lavagem para jogar na gente. Tinha resto de peixe morto, vômito, urina, coisas fermentadas. Tinha de tudo. Eles deixaram ovos apodrecendo e acrescentaram na lavagem, isso foi o que nos contaram depois", disse.

 

"Na época, estava disposta a participar e foi uma experiência ok. Me diverti, porque foi aquela coisa de euforia da faculdade nova. Nos pintaram de jenipapo [fruto do jenipapeiro] e ficamos 15 dias azul. Depois, fizeram uma mistura de alho e óleo e bateram no liquidificador e jogaram na nossa cabeça. Fedeu por um mês, porque quando saíamos no sol, o líquido endurecia e ficava podre. Nos jogaram lavagem e íamos assim para o sinal pegar dinheiro”, contou a aluna, que chegou a ficar queimada de sol durante o tempo que ficou no sinal.

 

Atividade misógina

 

Contudo, o que mais chocou a estudante foi uma atividade misógina e de cunho sexual que os veteranos fizeram os calouros participar.

 

“A parte que achei mais pesada foi quando desenharam com giz de cera, no chão, o corpo de uma mulher e a chamavam de ‘batateira’, um apelido que dão para meninas de um curso. No lugar dos seios, colocavam gemas de ovos quebrados e outro na parte íntima da mulher", contou.

 

Alair Ribeiro/MidiaNews

Calouros apostam "corrida de saco"; curso de Agrárias já protagonizou trotes violentos

"Eles, então, faziam os calouros deitarem no chão e fingirem que estavam ‘comendo’ ela. Quando alguns calouros não queriam fazer isso, ou quem fazia rapidinho e saia por se sentir constrangido, era chamado de ‘viado, frouxo, virjão’ e outros xingamentos”, afirmou.

 

A aluna, que entrou na UFMT com 17 anos, disse que hoje em dia recusaria participar.

 

“À época, não me senti ofendida, porque tinha entrado na faculdade, estava morando sozinha, era tudo novidade. Mas teve muita gente da minha sala que não aplicou trote no semestre seguinte. O trote deveria ser mais um acolhimento. Eu já vi chamarem calouros para doar sangue, deveria ser algo assim, em prol do calouro e da população, não uma tortura, como a que participei", disse.

 

"Não deveria ser algo ‘vamos torturar o calouro, dar tapa na cabeça, chamar calouro de burro’. Existem outros meios de recepcioná-los, até porque eles tem idade numa faixa de 17 e 18 anos. Nessa idade, não temos noção das coisas, naquela época eu não tinha noção disso. Hoje em dia, tenho uma ideia bem formada em relação a isso”, afirmou.

 

Forçados a participar

 

Outros alunos, mesmo diante da novidade, não veem o trote como uma forma de comemorar a nova etapa de sua vida.

 

Uma caloura do primeiro semestre de Administração, que também não quis se identificar, não queria nem mesmo ser pintada.

 

“Eu já não queria fazer as pinturas, nem mesmo escrever o nome do curso na testa, mas eles [veteranos] insistiram muito. Diziam ‘não, é só para tirar uma foto em grupo’. Ai acabei topando. Mas eles fizeram uma rodinha e disseram que agora seria a apresentação e que nós deveríamos ir na frente e falar nosso nome, idade, orientação sexual e se éramos virgens, porque isso era muito importante para eles saberem", disse.

 

Nós podemos ver como violência tudo aquilo que é contrário a vontade do outro. Mesmo que não venha agredi-lo de fato

"Quando falaram isso, olhei para uma colega e disse que não queria falar essas coisas. Acho que é muito pessoal e invasivo. Fiquei pensando o motivo dessas perguntas serem importantes e nas brincadeiras que poderiam fazer, já que só tinha homens ali e eu era uma das únicas mulheres”, contou a caloura.

 

Flagras

 

Nas redes sociais, a reportagem flagrou uma série de trotes publicados pelos próprios estudantes.

 

Já no entorno da UFMT, nesta semana, no sol a pino de 14 horas da tarde, estudantes do primeiro semestre de Direito chamavam a atenção de uma fileira de carros, pedindo dinheiro, com seus corpos pintados e roupas íntimas sobrepostas às roupas. A quantia recebida, dizem, será revertida para a festa de comemoração do curso, conhecida como “calourada”.

 

Animadas, as estudantes calouras Camila, Mila e Marina falam e atropelam as falas uma das outras, descrevendo a experiência que passaram neste novo semestre.

 

“Estamos achando divertido, uma experiência única. Ninguém foi obrigado a participar, estamos aqui de boa vontade mesmo. Você se sente muito incluído e estávamos ansiosas pelo trote. Nós estudamos tanto e é tão difícil passar, que queremos ter esse rito de passagem e comemorar um pouco”, disse Camila.

 

Proibição e danos psicológicos

 

Segundo o psicólogo Douglas Amorim, forçar um estudante a participar do trote já é uma forma de violência.

 

“Quando há a obrigatoriedade da participação e o calouro não vê outra possibilidade e tem que participar, já é uma violência. Esses jovens podem ser mais contidos e precisam lidar com essa condição para poderem estar à disposição e à vontade. Nós podemos ver como violência tudo aquilo que é contrário a vontade do outro. Mesmo que não venha agredi-lo de fato”, disse.

 

Temos uma normativa que regulamenta a proibição do trote na UFMT, especialmente aquele que tem uma natureza de humilhação

Contudo, ele acredita que o trote pode ter uma função social importante, como inserir o jovem dentro de um novo universo, mas caso não tenha uma boa experiência, isso pode impactar, inclusive, sua produtividade na faculdade.

 

“O trote pode ser positivo no sentido de pertencimento a um novo ciclo dentro da vida daquele jovem, que pode ser tão importante quanto uma formatura. Como existe essa coisa de grupo, é importante que nesta fase ele sinta que pertence a este local, porque isso pode causar impacto até mesmo para produzir e estudar”, explicou o psicólogo.

 

Já a pró-reitora do Programa Assistência Estudantil da UFMT (Prae), Erivã Velasco, afirmou que a instituição é "veementemente contra" os trotes violentos e opressivos.

 

“Nós temos uma normativa que regulamenta a proibição do trote na UFMT, especialmente aquele que tem uma natureza de humilhação, de colocar estudantes em situação vexatória. A resolução é proibitiva e recomenda, obviamente, atividades ou ações de outra natureza e recomenda que a recepção de estudantes tenha um caráter mais educativo, cultural e acadêmico", explicou a reitora, com base no artigo 1º da resolução nº 18 de 2004.

 

"Mas nós temos, infelizmente, muitas situações em que alguns cursos, especificamente, acabam fazendo trotes que, em nossa opinião, acaba colocando os estudantes em situação vexatória. Isso é proibido”, afirmou.

 

Este semestre, o Programa de Assistência recebeu uma denúncia de que veteranos estariam dando bebidas alcoólicas a estudantes próximo a instituição. A punição pode ir desde uma advertência até suspensão. Além disso, a Universidade é responsável por tudo que acontecer com alunos, mesmo que fora do campus.

 

“Nós tivemos uma denúncia essa semana de que havia uma atividade na Rua 1 [no bairro Boa Esperança], que é nas imediações da Universidade e que estavam forçando os estudantes a tomarem bebida alcoólica, que é uma das ações que caracteriza o trote violento. Fiz uma abordagem e, de fato, vi que estavam próximos do sinal para fazer arrecadação e que alunos tinham sido forçados a beber. Conversei com eles e chamei a atenção para o risco que representa, mesmo fora da universidade”, contou.

 

Alair Ribeiro/MidiaNews

Curso de Comunicação Social realizou trote solidário

A Prae também é responsável por organizar atividades para recepcionar os calouros, em conjunto com as coordenações, Diretório Central do Estudante (DCE) e os centros acadêmicos. Palestras, debates com o Coletivo Negro e convidados fizeram parte da programação.

 

“Neste período letivo de 2017/1 fizemos uma programação intensa, que finalizou na sexta-feira, com apresentação da Orquestra Sinfônica no Teatro Universitário. Temos essa proibição e a perspectivas de um trabalho mais educativo, de investir e estabelecer uma relação mais próxima com os cursos e colegiados, além do centro acadêmico, porque é lá que o aluno está”, explicou.

 

Alternativas

 

Uma saída para um trote consciente e sem opressão seria o “trote solidário”. Vários cursos tomaram a iniciativa e passaram a realizar arrecadações de alimentos e doação de sangue entre os calouros.

 

O curso de Comunicação Social, por exemplo, organizou pela terceira vez uma arrecadação de alimentos para comunidades carentes da Capital, como contou a estudante do 5º semestre de Radialismo, Isabela Ferreira.

 

“Estamos arrecadando alimentos para algumas famílias periféricas aqui de Cuiabá. Também sujamos calouros, que é de recepção e comum do curso, como cantar o nosso hino e fazer um tour pela UFMT, para conhecer os locais. O trote é organizado junto com a coordenação, para conhecerem mais sobre o curso. Sou completamente contra trotes violentos. No ano que entrei teve uma matéria em que calouros eram obrigados a comer só com faca e acabaram se cortando. Mas na Comunicação, não é uma coisa habitual”, disse.

 


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