04.08.2016 | 08h:56


Temer e a “Síndrome de Pollyanna”

Fiquei estarrecido com Temer. Na esteira de seus antecessores, como diz tolices também. Jamais o câncer é uma coisa maléfica que vem para o bem

A quem possa desconhecer, a “Síndrome de Pollyanna” baseia-se na história da personagem Pollyanna, do romance homônimo de Eleanor H. Porter. Já no parto, a garota fica órfã de mãe. Aos 11 anos, de pai. Daí em diante, passa a ser “cuidada” por uma tia tão rica quanto megera, que lhe impõe castigos e humilhações, a começar pelo quarto, que ficava no sótão da mansão.

 

Pouco antes de morrer, o pai pede que a filha exercite sempre o “Jogo do Contente”: procurar extrair algo de bom e positivo em tudo, mesmo nas coisas mais desagradáveis.

Pois bem. Não para si, como ocorre na síndrome em pauta, mas para o outro, Michel Temer, no último dia 30/07, no Rio, durante uma inauguração de linha do metrô, querendo elogiar a recuperação de um câncer por parte do governador daquele estado, Luiz Fernando Pezão, disse o seguinte:

“Quero registrar a alegria de reencontrar o Pezão. Eu até dizia a ele: que interessante Pezão, há coisas que parecem maléficas e que vêm para o bem. Porque vou até tomar a liberdade de um comentário pessoal. Você está melhor do que antes, está mais bonito. Então eu acho que (o câncer) acabou sendo uma coisa útil para o Pezão”.

Para um grupo seleto de brasileiros, cerca 30% da população, os planos de saúde reinam. Todos ficam à mercê de seus tempos para liberações de tudo; e nem tudo é liberado


Em momentos tais, a “seleta” plateia – sempre paga para aplaudir a idiotice que for dita – aplaudiu e achou graça da observação infeliz de Temer. Infeliz porque com doença não se brinca. Com o câncer, menos ainda.

 

Ele é traiçoeiro. Depois da constatação de um, a pessoa se torna autovigilante ininterrupta. A qualquer sinal estranho em seu corpo, um novo temor de um novo tumor aflora; e apavora.

Fiquei estarrecido com Temer. Na esteira de seus antecessores, como diz tolices também. Jamais o câncer é uma coisa maléfica que vem para o bem. Jamais é útil, a quem quer que seja. Falo como um aprendiz – não na carne, mas no sangue – desse novo conhecimento que eu não queria. Também luto para controlar um linfoma, ainda que de zona marginal esplênico. Mas é câncer. Era melhor não lhe ter.

Ao tê-lo, minha rotina foi modificada: consultórios; secretárias; médicos; laboratórios; exames; hospitais; clínicas; enfermeiros; psicólogos; nutricionistas; farmacêuticos; remédios na hora certa; infusões; efeitos colaterais, dos previsíveis aos imprevisíveis. Sem falar do susto e da angústia dos familiares e dos que te querem bem.

Além disso tudo, a consciência de que uma indústria faminta se apodera de todos os que vivenciam a doença. Para um grupo seleto de brasileiros, cerca 30% da população, os planos de saúde reinam. Todos ficam à mercê de seus tempos para liberações de tudo; e nem tudo é liberado. Em muitos casos, até porque nem precisaria mesmo.

 

Particularmente, no desespero, paguei – e tinha de ser à vista – dois mil e quinhentos reais por um procedimento tão dolorido quanto desnecessário. Vivi essa triste experiência com a primeira médica que me atendeu. Por insistência dos familiares e amigos, livrei-me de outros e novos “erros” seus.

Mas pior do que isso é saber que, de nosso povo, 70% dependem do atendimento do SUS, a cada dia mais sucateado, em prol do setor privado da saúde, ou da caridade alheia, que financia bons hospitais especializados. O resultado é previsível: para um doente de câncer nas brenhas dos sertões ou nas abandonadas periferias das grandes cidades, a morte da maioria, sem a menor assistência, é sentença anunciada.

Para essas cruzes anônimas, Temer jamais poderá dizer o que disse a Pezão. Aos desvalidos, o “Jogo do Contente” não tem a menor graça. Não lhes é útil.

ROBERTO BOAVENTURA DA SILVA SÁ é professor de Literatura/UFMT e dr. em Jornalismo/US.


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