Mantida em uma redoma de vidro ao fundo da Catedral Basílica (conhecida como Igreja Matriz), a imagem do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, padroeiro oficial do Município e do Estado, conserva mais de três séculos de história, fugas, fé e dificuldades.
A história da imagem despertou curiosidade desde que uma réplica caiu e quebrou quando saía em procissão no início do mês, na Capital.
Com o trajeto rumo às terras mato-grossenses marcado pelo medo do desconhecido, era a imagem de 1,65 metro de Jesus flagelado a quem os bandeirantes paulistas recorriam com pedidos de proteção ao longo de caminhos de matas, rios e comunidades de povos tradicionais a serem atravessadas.
Esculpida pelas mãos de uma artesã natural de Sorocaba (SP), a obra em madeira desembarcou em terras mato-grossenses em meados do século XVIII, quando chegou no pequeno porto localizado na região de São Gonçalo Beira Rio.
Com semblante marcado pela dor, rosto coberto de sangue e cabelos humanos doados por uma fiel como promessa de cura, a escultura carregava nas mãos um ramo de cana-de-açúcar.
O objeto fazia referência a práticas do catolicismo português. Mas na versão cuiabana, o ramo verde adquire novos significados e passa a simbolizar o sofrimento do povo vulnerável que trabalhava na produção de açúcar da capitania.
“Quando a imagem chega, recebe o nome do Bom Jesus de Cuiabá. Toda a história [da imagem] se encaixa muito bem com a história e realidade de Cuiabá”, diz o padre e historiador Felisberto Samuel da Cruz ao narrar a importância da imagem para a construção da fé cuiabana.
“Aqui era um grande centro produtor de açúcar. Rio abaixo, rio acima. O pessoal trabalhava nisso e era um sofrimento muito grande para poder cultivar e tirar a cana”, complementa o padre.
Mas com a mudança da economia local, veio também a mudança de representação da imagem, quando as primeiras pepitas de ouro começaram a ser reveladas na região da prainha.
Com essa nova descoberta, a imagem do Bom Jesus foi colocada sob uma cabana de palha. De receptáculo de promessas, a imagem ganhou uma nova tarefa ao ser considerada guardiã da propriedade do bandeirante Pascoal Moreira Cabral.
“Em meados de 1722, descobre-se o aluvião de ouro ali onde está a catedral. Aí, lembraram da imagem e a levaram lá para demarcar a área. A imagem passou a ser usada como marcador da propriedade de Pascoal Moreira Cabral e como guardiã da riqueza de sua descoberta”, declara o padre.
Segundo Felisberto, a utilização do Senhor Bom Jesus no passado não se difere muito da posição que ele é colocado no presente. Guardada em uma redoma de vidro no fundo da catedral, a imagem original, trazida pelos bandeirantes, apresenta pouco destaque na Catedral Basílica que recebe o nome do santo padroeiro, Senhor Bom Jesus.
“Se a gente for entrar por esse viés [comparativo], vai dizer que ainda hoje, na Catedral, ele [Senhor Bom Jesus] não se encontra em lugar de destaque. Está em uma redoma, escondida lá no canto, e assim o povo quase não chega nele, não tem conhecimento [da presença dele]” declara.
MidiaNews
Padre e historiador Felisberto Samuel da Cruz
O santo padroeiro
Com a presença de uma imagem protetora, a pequena porção de terra povoada por bandeirantes recebeu um novo nome. Referenciando sua nova fase, a pequena comunidade passou a ser chamada, em 1727, de Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá.
Diante da história de construção da fé local, o santo foi declarado padroeiro do povoado e sua presença e proteção perpetuam até os dias atuais na Capital.
Com cerca de 60,09% da população cuiabana denominando-se católica, segundo o Censo Demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), novos santos e benções ganham destaque na prática do catolicismo.
Com festas de São Benedito e Santo Antônio celebradas em julho e um feriado em dezembro, reservado a Imaculada Conceição, a celebração ao real padroeiro da cidade fica limitada à procissão realizada no primeiro dia de cada ano.
“70% ou 80% das pessoas não sabem que o Senhor Bom Jesus é o padroeiro da cidade. Já quiseram colocar São Benedito como o festeiro da cidade, mas ele não é o padroeiro”, declara.
Segundo o padre, um dos motivos que podem influenciar esta falta de reconhecimento é a ausência de festividades reservadas à imagem do santo.
“Em nível mundial, da Igreja Católica, o dia de Bom Jesus é celebrado em 1º de janeiro. Mas uma das características daqui é que o dia de Senhor Bom Jesus de Cuiabá é 8 de abril, pois é a data que ele chegou aqui. Mas no dia da cidade não se faz nada pelo padroeiro. Talvez também seja uma das coisas que podem impedir que as pessoas o reconheçam como padroeiro”, declara.
O santo fujão
Conhecido por inúmeras imagens, o Senhor Bom Jesus representa o momento da Paixão de Cristo, no qual Jesus foi humilhado e agredido. Podendo receber a denominação de Senhor Bom Jesus da Coluna, da Pedra Fria, entre outros, na cidade ele recebeu um nome peculiar: Santo Fujão.
Segundo Felisberto da Cruz, essa denominação relembra os momentos de desaparecimento da imagem no período provincial de Cuiabá.
“Aqui tem história das famílias dizendo que ele era o Santo Fujão. Uma vez ele era encontrado aqui na Cidade Alta, na casa de uma uma família; outra vez encontrado perdido no Porto, ou até mesmo na região que hoje é Mato Grosso do Sul”, afirma.
O último desaparecimento do santo ocorreu quando um comerciante paulista o levou junto com um carregamento de especiarias.
“Ele não tinha um lugar protegido. Então um comerciante que estava vindo de São Paulo viu a imagem lá e a roubou. A imagem foi encontrada em Camapuã, hoje Mato Grosso do Sul. Muitos historiadores têm controvérsias, mas a história que eu conto é essa” declara o padre.
Desde 1722 o santo recebeu um lar para o manter preservado e à disposição dos fiéis. Na ocasião o capitão-mor Jacinto Barbosa Lopes mandou construir a igreja catedral, demolida anos depois por Dom Orlando Chaves.
Reprodução
Réplica de Senhor Bom Jesus de Cuiabá danificada após queda
A procissão de 2024
Marcado por novas eras, o santo cuiabano vive mais uma iniciada no dia 1º de janeiro de 2024
Durante a saída para a procissão, um dos fieis acabou escorregando permitindo que a réplica caísse no chão e quebrasse, numa imagem que rodou o País.
“Considero um acidente de percurso. Agora, para os mais espiritualistas, a queda foi um sinal de Jesus de que precisamos melhorar. Realmente, é preciso melhorar muito pois vivemos em um mundo de divisão iniciada por briga de poder e ganância. E no final, quem sempre sofre é o povo”.
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