Cuiabá, Sábado, 9 de Agosto de 2025
VIOLÊNCIA SEXUAL
05.06.2016 | 08h55 Tamanho do texto A- A+

“Ele disse que eu iria gostar de ser estuprada”, diz jovem violentada

Vítima de abuso sexual relata sua história e defende mudança social

Marcus Mesquita/MidiaNews

Jovem diz ter sido estuprada aos 17 anos de idade

Jovem diz ter sido estuprada aos 17 anos de idade

AIRTON MARQUES
DA REDAÇÃO

Ela ainda esconde dos seus pais o que aconteceu naquela madrugada. Entre os amigos, apenas os mais íntimos têm conhecimento do que se passou. Mesmo sabendo que foi vítima de um crime, resolveu não procurar a Polícia. Teve medo. Culpou-se. Passou por um período de imensa tristeza. Chegou a mudar de cidade. Ela foi estuprada.

 

Este é um resumo da história de mais uma mulher vítima do estupro em Cuiabá. Um caso que não foi contabilizado pelo poder público, pois não foi levado até as autoridades policiais.

 

Ao MidiaNews, a vítima não quis se identificar, pois ainda teme pela sua família. Mesmo assim, teve a coragem de contar sua história, que embora o passar dos anos, ainda está impregnada em sua memória.

 

Quando estava deitada em um quarto, ele veio e se deitou em cima de mim, já insistindo em transar comigo. Mas eu neguei, disse que não queria. Ele fez sexo, mesmo assim. Fiquei muito tempo me debatendo contra ele

Hoje, aos 21 anos, ela conta que foi estuprada aos 17 e ouviu de seu estuprador que ela iria “gostar de ser estuprada”.

 

A jovem relata que entrou na faculdade muito cedo, aos 17 anos. Foi nessa época em que ela resolveu, como qualquer garota normal, ir até uma festa universitária com os amigos.

 

Só não sabia que na mesma noite iria conhecer alguém que marcaria sua trajetória de forma negativa. O estuprador se apresentou como amigo de seus amigos de faculdade.

 

“Esse rapaz, que cometeu a violência, começou aquelas conhecidas investidas. Tentando ficar durante a festa, que era universitária. Não tinha usado drogas. Era uma festa comum de universidade particular”, relata.

 

“Saímos da festa e fomos para a casa desse rapaz. No caminho, meu melhor amigo na época me falou muito bem dele. Dizendo para dar uma chance e conhecê-lo melhor”.

 

Na casa do agressor, ela relembra que chegou a trocar beijos com o recém-conhecido, mas como não estava se sentindo bem, resolveu deitar em alguns dos quartos da residência e, quando melhorasse, chamar um táxi e voltar para casa.

 

No entanto, quando os seus amigos foram embora, o dono da residência aproveitou o fato de estar sozinho com a vítima para estuprá-la.

 

“Quando estava deitada em um quarto, ele veio e se deitou em cima de mim, já insistindo em transar comigo. Mas eu neguei, disse que não queria. Ele fez sexo, mesmo assim. Fiquei muito tempo me debatendo contra ele. Falava que não queria. Pedia para ele sair de cima de mim. Comecei a chorar. Mesmo assim ele continuou”, diz.

 

“Falei que aquilo era um estupro, pois não queria. Ele chegou a falar que eu iria gostar de ser estuprada”, lembra.

 

Além de se debater, em uma tentativa frustrada de evitar o estupro, ela também ouviu do estuprador que ele ficava mais excitado com a sua recusa.

 

“Ele era mais forte do que eu. Ele nem chegou a tirar a minha roupa, pois eu estava de saia. Ele fez de qualquer forma”, afirma.

 

“Eu tentando evitar aquilo, tentava fechar as minhas pernas. Ele falava que era pra eu fechar as pernas mesmo, pois ‘quanto mais apertadinho era melhor’. A minha recusa chegava a excitá-lo”, diz.

 

Já sem forças, a vítima confessa que em certo momento desistiu de evitar que o estupro fosse consumado, pois, segundo ela, o desejo era apenas que aquele momento “acabasse logo” e ele saísse de cima.

 

“Eu lembro que minha irmã falava que estuprador tinha essa vontade de ver que a vítima não está gostando e, por isso, continuar. Então, naquele momento eu pensei que deveria fingir que estava tudo bem para ele parar logo. Essa era a minha cabeça de 17 anos. Queria que aquilo acabasse rápido”.

 

Eu lembro que minha irmã falava que estuprador tinha essa vontade de ver que a vítima não está gostando e, por isso, continuar

“Depois que isso aconteceu, ele simplesmente virou para o lado e dormiu. Fiquei por horas ali, paralisada. Por momentos, achei que tinha até desmaiado, esperando aquilo acabar. Tenho certeza que ele, em momento algum, enxergou isso como uma violência”, diz.

 

Sentimento de culpa

 

A vítima do estupro conta que passou muito tempo se culpando pelo estupro.

 

“Me culpei pelo o que aconteceu. Por ter ido até lá. Ainda que eu tivesse falado para ele, que era um estupro, tinha dificuldade de ver que aquilo era uma violência. Era como se tivesse feito alguma coisa. Mas eu tinha uma vida normal e não tinha feito nada para isso ocorrer”, afirmou.

 

Por conta disso, resolveu não procurar a Polícia, nem relatar o fato à sua família, que não sabe até hoje o que ela passou.

 

“Não procurei a Polícia, pois sabia que isso seria um desgaste. Vivemos uma cultura do estupro, que criminaliza a vítima, independente do que o agressor tenha feito. Sabia que era isso que iria escutar, pois tenho uma família conservadora, em que tudo isso fica mais difícil. E sabia que não teria o apoio”, relatou.

 

A vítima também ressalta que preferiu não contar a muitas pessoas o seu estupro, pois sabia que elas não entenderiam que, no caso, ela não teve culpa alguma sobre o que ocorreu.

 

“Na época eu só contei para uma amiga. Ela também não entendia como isso acontecia e falou que eu não deveria ter ido até a casa dele, com outros amigos. Aliás, esses amigos acharam que nós fizemos sexo casual e, por isso, também decidi não falar. Não queria ser culpada mais uma vez, pelo o que já tinha acontecido”, disse.

 

Ela também relembra que enfrentou um quadro de depressão profunda. Ao se isolar dos amigos, trancou a faculdade e pediu para que seus pais lhe enviassem para outra cidade.

 

“Na época entrei em um estado de depressão profunda. Me isolei. Tranquei a minha faculdade. Parei de sair e cheguei a me mudar de cidade, mesmo com a minha família não sabendo que o estupro foi o motivo para a minha mudança. Era uma tentativa de fuga”, declarou.

 

“Um dos resquícios deste estupro foi a perda de memoria. Hoje faço tratamento psiquiátrico e psicológico”, completou.

 

Cultura do estupro

 

A jovem ainda afirma que conseguiu se recuperar, após ver nas redes sociais o crescimento do movimento feminista, que aponta a cultura do estupro na sociedade brasileira, em que, segundo ela, trata com normalidade os casos de abuso contra as mulheres.

 

“Certo tempo após me convenci que o estupro não era minha culpa. A culpa não era minha de ter ido a uma festa e conhecido uma pessoa. E, sim, que a culpa era dele por ter cometido um estupro”, disse.

 

Certo tempo após me convenci que o estupro não era minha culpa. A culpa não era minha de ter ido a uma festa e conhecido uma pessoa

“Esses agressores têm o respaldo da sociedade. Seja do círculo de amigos, da Polícia que não tem preparo para receber a vítima, e o Estado, que não tem uma política pública voltada a garantir os direitos das mulheres”, declarou.

 

A jovem explica que a nossa sociedade, em casos de estupro, culpam as próprias vítimas pelo crime. Além disso, ela acredita que casos como o seu, em que o estuprador demonstra prazer com a recusa da vítima, são fruto da nossa sociedade.

 

“Isso é mais um resquício da cultura do estupro, em que a menina precisa se fazer de difícil. Não aceitar transar, mesmo querendo. Parecer uma pessoa recatada. Mas, tudo isso, invalida o não. Quando eu estava dizendo não, ele achou que eu estava me fazendo de difícil”, afirmou.

 

“Comecei a passar a entender essa forma de sociedade. Em que tem uma cultura de estupro, que culpabiliza as vítimas. Desqualifica os nãos. Em que a mulher tem que, obrigatoriamente, fazer sexo com seus parceiros, na hora que os homens querem”.

 

Ela também afirma que os casos de estupro de mulheres não são motivados pela roupa, comportamento, classe social, idade ou local frequentado pelas vítimas. Em sua opinião, tudo é uma questão estrutural, que se inicia na educação e sociabilidade.

 

“A gente vive em uma sociedade machista, sexista, misógina. Uma sociedade patriarcal e, principalmente, capitalista, que objetifica o corpo da mulher. Percebi que o estupro, era só um dos reflexos que essa sociedade doente pode gerar”, ressaltou.

 

“Na educação dos filhos, os pais batem muito na tecla de explicar para a filha o que ela não pode fazer, com o risco de que outras pessoas façam alguma coisa com ela. Mas esquecem de explicar para os meninos o que é consentimento. De que ele não pode pegar no corpo de uma mulher, sem ela permitir”, declarou.

 

Além disso, ela ressalta que nesta forma de sociedade, todo homem é visto como um estuprador em potencial, pois as mulheres acabam tendo temor por qualquer atitude que possa ser tomada pelos homens.

 

"Quando apontamos que todo homem é um estuprador em potencial, não estamos falando que todos os homems serão estupradores. Falamos que temos uma cultura em que vários homens cometem atos que não identificam como violência. Pois eles estão respaldados pela sociedade, na qual tornam certas atitudes, como aceitavel. As piadas machistas, abuso emocional e psicologica e outros tipos de agressões".

 

"O que nós, feministas, queremos é que as mulheres não precisem ter medo dos homens. Apenas pelo seu gênero. O que desejamos é não ter essa divisão, em que a mulher não pode fazer certos tipos de coisas ou ter certos tipos de comportamentos, apenas pelo fato do seu gênero", opinou.

 

A jovem aponta que a classe política também tem sua parcela de culpa nos casos de violência contra a mulher. Em sua opinião, há certa omissão na construção de políticas públicas que garantam os direitos femininos.

 

Não desejo uma coisa pontual contra ele. Pois eu sei que ele não é um doente. O que ele tem não é uma patologia que precisa ser curada

“Os representantes públicos não se importam com a vida da mulher estuprada. Pensam apenas na punição dos agressores. Se eles se importassem com isso, estaríamos discutindo gênero nas escolas. Estaríamos pensando em uma nova forma de se fazer estruturalmente”, afirma.

 

Diante deste momento em que o país passa, na qual os casos de estupros estão sendo cada vez mais debatidos, principalmente nas redes sociais, entre os jovens, ela acredita que a mobilização social irá melhorar nossa sociedade, tornando-a mais igualitária e sem preconceitos.

 

“Acho que nenhum homem entende o que nós, mulheres, passamos. Por isso, acredito que nós devemos nos organizar. Movimentar e lutar contra a retirada de direitos das mulheres. Lutar por uma nova forma de sociedade”.

 

O futuro

 

Quando perguntada sobre o que desejaria ao seu agressor, a jovem afirma que nada que seja feito contra o homem será suficiente para estancar casos como o seu.

 

“Não desejo uma coisa pontual contra ele. Pois eu sei que ele não é um doente. O que ele tem não é uma patologia que precisa ser curada. O que desejo é uma nova forma de sociedade e o fim da cultura do estupro. Isso nós só vamos começar de nós por nós”, disse.

 

Mesmo não estando totalmente recuperada diante do que passou, a jovem acredita em um futuro melhor, não só para ela.

 

“Espero que um dia esse trauma passe. Mas isso me deixou muitos resquícios. Uma parte de mim morreu naquele dia, para dar lugar a uma nova pessoa. Minha trajetória mudou a partir dali. Quando vi que era necessário fazer alguma coisa para que isso não aconteça com outras pessoas. Mesmo que não tenha este poder”, finalizou.

 

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COMENTÁRIOS
2 Comentário(s).

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Jose Carlos.  06.06.16 09h53
Muito boa a material mesmo, deveriam ter outras materias como essa para que a sociedade entenda mais sobre o assunto.
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Margarete  05.06.16 20h16
Parabéns Airton Marques, sua matéria ficou excelente.
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