O que você faria se descobrisse que a casa dos seus sonhos, prestes a ser comprada, foi cenário de uma tragédia?
Corretores experientes em Cuiabá afirmam que imóveis com um passado marcado por mortes, crimes ou acidentes podem ter deságio de até 50%, levar quase uma década para encontrar um comprador e, em muitos casos, serem evitados por profissionais da área, que não querem vincular seus nomes ao histórico da propriedade.

Enquanto muitos desistem da compra, outros enxergam na situação uma oportunidade de barganha, adquirindo imóveis por valores bem abaixo dos praticados no mercado.
O fenômeno tem nome no mercado internacional: stigmatized property, ou seja, “propriedades estigmatizadas”.
O efeito ocorre quando a avaliação de um imóvel é afetada no campo psicológico, mesmo sem que haja qualquer “defeito físico”.
Os eventos podem incluir desde mortes por assassinato, suicídio, acidentes ou causas naturais, até atividades criminosas e outras situações que geram estigma.
Ocorrências comuns
Com quase 16 anos de profissão, o corretor e avaliador de imóveis Marcos Biancardini afirmou que mortes naturais, especialmente em imóveis residenciais antigos, são o ocorrido mais comum, ainda que muitos casos sejam omitidos até mesmo dos próprios profissionais.
Segundo ele, o impacto nos preços varia de acordo com a gravidade do episódio e, principalmente, com a repercussão que ele teve na mídia.
“Impacta diretamente, dependendo da repercussão e do que aconteceu lá dentro, principalmente num futuro breve. Ao longo do tempo, outras tragédias, outras situações vão acontecendo, e as pessoas vão se esquecendo e, à medida que a página vai sendo virada, essa sombra, digamos assim, vai sendo apagada”, afirmou Biancardini.
“Existem estudos feitos a nível mundial. Num primeiro momento, dependendo do que aconteceu no imóvel, de cara 20% de deságio ou de desvalorização. Se foi uma coisa que teve uma repercussão muito grande na mídia, ele chega a 40%, 50%, ou até inviabiliza a venda em alguns casos”, completou.

A corretora Maria Helena Carvalho, há 14 anos no mercado, esteve recentemente com um desses casos emblemáticos e descobriu a situação por acaso, enquanto mostrava o imóvel a um cliente. No interior da propriedade, localizada na Avenida Fernando Corrêa, uma pessoa em situação de rua matou outra.
“De 2,8 milhões a propriedade passou a valer 1,8 milhão. Um milhão em desconto”, afirmou Maria Helena.
Ela relembrou também um caso pessoal: um apartamento que sofreu um grave incêndio e onde uma pessoa quase morreu. Ela apresentou o imóvel, que, de R$ 350 mil, estava sendo vendido por R$ 180 mil, para dezenas de clientes, mas foi rejeitado por todos. Ela mesma acabou comprando a propriedade por um preço ainda menor.
“Ninguém queria comprar, eu falei ‘esse apartamento deve ser pra mim’. Eu comprei, reformei e revendi. Comprei um apartamento de 107 metros por R$ 150 mil, ele ficou lindo”, afirmou.
Segundo Biancardini, tratam-se de objeções psicológicas. “Alguns clientes imaginam que o espírito do desencarnado vai permanecer ali de alguma maneira, ficar aprisionado ao imóvel. São crenças populares. Alguns desistem da compra, já aconteceu comigo. Outros voltaram atrás e ainda brincam dizendo que vão levar um padre pra benzer antes de entrar”, afirmou.
“O conselho que eu dou para o cliente é comprar. Primeiro por causa do preço e se estiver em boa localização. Se é uma oportunidade, eu compro. Pode ter morrido quem for lá dentro, oportunidade não passa duas vezes no mesmo lugar. Sou evangélica, não sou supersticiosa, eu oraria, jogaria óleo ungido no local e abençoaria”, afirmou Maria Helena.
De volta ao jogo
Um imóvel com preço de mercado apropriado em Cuiabá, segundo Biancardini, leva em média 180 dias para ser comercializado. “Esse é o prazo médio. Em uma situação como essa [de tragédia], ele pode chegar até 3 vezes mais. Tudo depende do impacto da veiculação da tragédia”, disse.
Entre as soluções encontradas pelos proprietários para “apagar” essa mancha do imaginário da população estão, por exemplo, mudar o imóvel de função — se ele é residencial, mudar para comercial —, reformar, alterar o layout e criar uma oferta capaz de despertar o interesse do público.
“Se você cria uma oferta irrecusável, as pessoas passam por cima de muitos princípios e das objeções. Se ela sentir que é um bom negócio, ela vai botar um padre, vai benzer, vai jogar água benta, mas vai comprar o imóvel”, disse.
O corretor citou ainda o caso de um prédio que sofreu um incêndio e mostrou o impacto da repercussão na venda dos imóveis. Apesar de a construtora ter prestado todo o suporte, recomprado as unidades e reformado completamente o edifício, houve forte resistência do mercado nos primeiros anos. “Hoje, 10 anos depois, o prédio está plenamente habitado, é muito bem cotado no mercado, passou essa fase”.
E há ainda, segundo ele, quem procure esses imóveis como forma de investimento, em especial para locação ou revenda. “Investidores adoram essas situações porque eles não vão morar ali, então compram muito barato, fazem algum investimento para transformá-lo e põem para vender, tendo uma rentabilidade muito interessante”.
O que a lei diz
Segundo Biancardini, não existe no Brasil uma lei que obrigue o corretor a contar o histórico da propriedade, mas há precedentes relacionados ao tema.
“Em São Paulo já estão nascendo jurisprudências a respeito disso, sobre a boa fé de avisar. Se ocorreu alguma coisa muito grave e o corretor não avisa e posteriormente o comprador descobre que isso vai afetar no valor de uma eventual revenda, ele pode rescindir a compra, desfazer o negócio, sob pena de ter um prejuízo financeiro por omissão do corretor”, afirmou.
Maria Helena explicou que, muitas vezes, como no caso dela, o corretor sequer fica sabendo desse histórico “mórbido” e que, a menos que o caso seja amplamente divulgado na mídia, o comprador não é comunicado desse passado.
A depender do tipo de tragédia, segundo Biancardini, o corretor se recusa até mesmo a trabalhar na venda da propriedade.
“Existe uma responsabilidade civil. Quando você tem receio, você não pega para vender. Normalmente essa é outra dificuldade que os proprietários de imóveis com essas características têm. Porque eu não quero ter meu nome atrelado a uma tragédia ou algum negócio mal feito que depois vai me prejudicar”, disse.
Contar ou não, segundo ele, “vai do juízo pessoal de cada um. Falando por mim, quando eu sei que tem algo muito trágico, eu prefiro não trabalhar a venda do imóvel. É uma decisão de foro íntimo de cada profissional”.
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