Bruno D’ Oliveira Marques

O juiz Bruno D’Oliveira Marques, da Vara Especializada em Ações Coletivas, afirmou que o Congresso Nacional desvirtuou completamente o projeto que previa a atualização da Lei de Improbidade Administrativa.
Segundo ele, a nova norma aprovada pelos parlamentares e sancionada em outubro do ano passado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), tem várias contradições.
Em entrevista ao MidiaNews, o magistrado afirmou que a nova Lei de Improbidade Administrativa excluiu a punibilidade no âmbito cível de crimes como assédio sexual de agentes públicos. Além disso, conforme ele, dificulta a condenação de políticos corruptos.
Bruno D'Oliveira prevê que essas contradições trarão discussões intermináveis no Poder Judiciário e deixarão de lado a questão da punibilidade.
“Se você quer clarear uma norma, você não faz isso trazendo contradições com outras normas existentes no ordenamento jurídico brasileiro”, disse.
Bruno D'Oliveira é reconhecido por condenar políticos corruptos a devolverem valores desviados ao erário público, a exemplo de deputados estaduais que foram flagrados recebendo maços de dinheiro na gestão do ex-governador Silval Barbosa.
Ele, que atua na magistratura em Mato Grosso desde 2004 e, atualmente, é titular da Vara Ações Coletivas, deu detalhes das contradições da nova lei entre outros assuntos.
Confira os principais trechos da entrevista:
MidiaNews - Como vê as mudanças feitas na Lei de Improbidade?
Bruno D’Oliveira – Vejo com preocupação. Em primeiro ponto, acho importante registrar que eu falo aqui não como juiz que preside processos de improbidade administrativa, mas como professor. E nessa qualidade tenho a liberdade constitucional de dar as minhas opiniões sobre o ordenamento jurídico como um todo.
A Lei de Improbidade é do ano de 1992. Passaram quase 30 anos de sua vigência e é evidente que, durante esse período, verificou-se que havia disposições que precisavam ser melhoradas. Isso é natural. Foi com esse enfoque que se criou uma comissão de juristas renomados, estudiosos no assunto da improbidade administrativa para que fizesse uma proposta de atualização da norma.
Foi encaminhado o projeto para a Câmara dos Deputados. Só que lá foram apresentados substitutivos e esse trabalho da equipe de juristas foi completamente desvirtuado. E esse desvirtuamento, no meu ponto de vista, causou grande retrocesso na Lei de Improbidade. A nova Lei de Improbidade excluiu do âmbito de aplicação algumas condutas que são graves. E, por outro lado, no que ainda persiste, ela dificultou sobremaneira a sua aplicabilidade.
MidiaNews – Quais condutas graves foram excluídas de aplicação?
Bruno D’ Oliveira - Quando a gente fala de Improbidade Administrativa, a própria lei diz que ela visa resguardar a integridade da administração pública. Agir de forma ética, de acordo com os interesses da comunidade para que a sociedade possa ter confiança nas suas instituições. Integridade vai além de atos de corrupção. Foi alterado o artigo 11, que trata da violação de princípios, qualquer a ação que viole os princípios da administração pública. Princípio da legalidade, da impessoalidade, da lealdade às instituições. Todos configuravam lesão ao artigo 11 e, dessa forma, o Poder Judiciário poderia, havendo essas violações, receber ações de improbidade contra o servidor público. Hoje em dia não pode mais.
Uma conduta que me vem à cabeça e que já me deparei no interior é a de assédio sexual de professor [da rede pública] contra aluno. Conduta que ninguém dúvida que ofende a integridade da administração pública. Ela não pode mais ser tuteladas no âmbito da improbidade administrativa. Pode ser no âmbito criminal? Pode. Mas a Lei de improbidade é uma norma que tem por objetivo sancionar no âmbito cível esses agentes que praticam essas condutas graves.
MidiaNews – Todos esses processos relativos ao art. 11 serão arquivados?
Bruno D’Oliveira – Sim! Por atipicidade da conduta todos os processos que tramitam serão extintos e aqueles que foram condenados e não terminaram de cumprir as sanções que foram impostas devem ter as suas penas revistas.
E por que é importante o sancionamento no âmbito da Lei de Improbidade? Porque o direito sancionatório da improbidade a instância é independente. Então não importa o que aconteceu no âmbito do processo administrativo disciplinar e, tampouco, no do processo criminal. O processo criminal é sempre um processo mais moroso porque você trata da liberdade das pessoas. Para condenar você tem que ter uma certeza absoluta. Não pode haver nenhuma dúvida sobre a culpabilidade do agente. Mas no âmbito cível basta um juízo de plausibilidade.
MidiaNews - É óbvio que todas as leis são feitas por políticos e sempre pode haver nelas algum interesse. Mas, no caso da lei de improbidade, a impressão que deu é que se tratou de uma reação da classe política contra o Ministério Público. Não considera que esse foi um caso escancarado de legislar em causa própria?
Bruno D’Oliveira – Eu confesso que não sei dizer qual seria o sentimento do Congresso Nacional que levou à aprovação dessa norma. Acho que a gente deveria perguntar para quem votou favoravelmente se refletiu sobre as consequências dessa aprovação.
MidiaNews – Um dos principais pontos é a necessidade da comprovação de dolo para punição a agentes públicos, ou seja, a intenção de prejudicar a administração pública. Essa mudança dificulta a condenação?
Alair Ribeiro/TJ
"A responsabilização dos culpados vai ficar para o segundo plano"
Bruno D’Oliveira – A comprovação do dolo sempre foi exigida. Hoje, porém, é necessário comprovar que o agente teve algum benefício. Ele direto ou indireto, ou que terceiros tiveram benefícios.
Isso dificulta, se não impossibilita, a condenação. Você tem que comprovar que ele agiu e que ele teve um benefício ou que agiu para que um terceiro tivesse benefício.
Além disso, a lei diz que se o agente não teve benefício, não responde solidariamente pela reparação do dano. Ou seja, eu auxiliei João a praticar um desvio de recurso. Eu não fiquei com o dinheiro. Quem ficou foi o João. Isso não tem correspondência na legislação brasileira. Na legislação penal, se eu concorro para a prática de um crime, tendo benefício com esse ato ou não, sou responsabilizado.
MidiaNews - Houve uma mudança na prescrição. Acredita que corruptos ficarão impunes por causa dessa mudança?
Bruno D’ Oliveira – O prazo não foi reduzido da prescrição em geral. Agora se instituiu o que se denomina prescrição intercorrente, que, a partir do ajuizamento da ação, você tem um prazo de quatro anos para julgamento. No meu ponto de vista, é um prazo razoável porque temos que ter uma duração razoável do processo. Mas o autor terá que ter o cuidado de não arrolar muitas pessoas no mesmo processo.
Uma preocupação é que se o juiz julgar em quatro anos... A prescrição interrompe se o juiz condenar e não se o juiz absolver. Só que o juiz não é dono da razão. Então se o juiz em três anos e nove meses absolver, o Tribunal não vai ter a possibilidade por essa redação de reformar e condenar porque vai estar prescrito.
Essa é um ponto também que causa preocupação entre tantos outros que existem e que vão causar discussões, que no meu ponto de vista poderiam ter sido evitados. Se você quer clarear uma norma, você não faz isso trazendo contradições com outras normas existentes no ordenamento jurídico brasileiro. E existem diversas contradições.
MidiaNews – As ações por improbidade que já estão em andamento há mais de quatro anos serão todas prescritas em razão da prescrição intercorrente?
Bruno D’ Oliveira – O Supremo ainda não decidiu, mas já afetou em sede de repercussão geral um recurso extraordinário para aferir se essa prescrição intercorrente pode ser aplicada em processos em trâmite.
MidiaNews – Inclusive, o senhor já recebeu vários pedidos de prescrição de ações em andamento. Entre eles, a do ex-governador Blairo Maggi, no caso de uma suposta compra de vaga no Tribunal de Contas do Estado.
Bruno D’ Oliveira – Sim, tem pedidos, mas não decidi nenhum ainda. Ainda estou estudando e refletindo.
MidiaNews – O senhor é contra a retroatividade da prescrição intercorrente?
Bruno D’Oliveira – Eu não analisei nenhum caso ainda concreto e, por isso, não posso dizer que sou contra ou a favor. Se eu já tivesse decidido eu poderia dizer de forma transparente. Mas não decidi nenhum processo. Não terminei os meus estudos em relação a esse ponto. Mas os estudos já estão na fase final.
MidiaNews – Sabe dizer, em número, quantos processos serão extintos por conta da Nova Lei de Improbidade?
Bruno D’Oliveira – Com relação ao artigo 11 eu acho que vai sobrar pouco ou quase nada. Creio que mais de 90% serão extintos. Com relação aos demais artigos nós vamos ter uma maior dificuldade de comprovação de que a conduta do indivíduo foi dolosa e que esse dolo teve por objetivo beneficiar ele ou terceiros. E, no meu ponto de vista, é uma comprovação desnecessária para fins de responsabilização. Não importa se cometi um assalto para beneficiar o meu vizinho. O que importa é que concorri para o fato e tinha consciência de que aquele fato era ilícito.
MidiaNews – Teme impunidade nesses casos?
Bruno D’Oliveira – Eu acho que vai dificultar. Não sei se o termo é uma grande impunidade, mas vamos ter discussões jurídicas intermináveis e o objetivo principal que se propunha a lei, que era dar uma maior transparência, uma maior segurança jurídica, na verdade, fez o inverso. A responsabilização dos culpados vai ficar para o segundo plano e vamos ter discussões sobre questões jurídicas transversais.
MidiaNews - Outra mudança é a que determina que apenas o MPE seja o titular da ação por improbidade, algo que antes também cabia às procuradorias. Como viu essa alteração?
Bruno D’ Oliveira – Eu devo registrar que tenho muito o respeito pelas procuradorias, tanto de Estado, quanto as municipais. Temos procuradores extremamente preparados. Mas, infelizmente, essa não é a realidade pelo interior do Estado. Eu já me deparei com ações de municípios pequenos do interior que não tinham nem pé, nem cabeça. Você via ali que era uma vingança pessoal mesmo, de uma administração que entrou contra uma que saiu. Acho que diante desse quadro foi um mal necessário, digamos assim.
MidiaNews – A nova lei também tratou dos fundos eleitoral e partidário.
Bruno D’Oliveira – Eles incluíram um artigo, que foi muito pouco comentado, que diz que os desvios, a aplicação indevida dos recursos do fundo especial de campanha e fundo partidário, que são fundos bilionários, não se submetem à Lei de Improbidade Administrativa.
O que diz a lei agora? Que esses desvios serão submetidos à Lei 9096, que trata sobre os partidos políticos. E o que diz a Lei 9096 sobre recursos dos fundos partidários? Diz que os partidos devem prestar contas à Justiça Eleitoral.
Só que essa prestação de contas serve para aferir a regularidade do gasto e se houve algum tipo de desvio de recurso. A Justiça Eleitoral vai condenar a devolver pura e simplesmente. A reparação do dano não é sanção.
Antes ia para o âmbito da improbidade para sanção como multa, inegibilidade com exclusão da vida pública, tanto política partidária quanto do serviço público, no caso de servidores.
MidiaNews - O senhor julga inúmeros casos de desvio de recursos públicos e todos os dias recebe novos. Não acha que às vezes sente que está enxugando gelo?
Bruno D’Oliveira – A corrupção é inerente à vida humana e é uma conduta difícil de ser descoberta, porque é cometida as escondidas. A corrupção é algo que está no centro do debate internacional, onde são discutidos os reflexos que atos de corrupção têm sobre os direitos humanos, porque a corrupção impacta diretamente nos orçamentos e isso faz com que as pessoas, principalmente os mais vulneráveis, sintam os maiores impactos.
Ele pode ser qualquer outra coisa, menos juiz. O papel do magistrado é garantir que as partes tenham seus direitos preservados no curso do processo e aquele que tem a obrigação, no caso de comprovar a culpa, o faz dentro das regras do jogo. Esse que é pacto que nós temos.
O que precisamos melhorar são os instrumentos para que os ativos desviados sejam recuperados. Porque vemos muitas vezes os indivíduos que são processados, que têm o pedido de indisponibilidade de bens deferidos, mas você não encontra nada no seu patrimônio, mas ele ostenta uma condição incompatível de quem não tem nenhum centavo na conta. É um indício da prática de lavagem de dinheiro. É preciso melhorar os instrumentos investigativos para que nós possamos chegar aonde está o dinheiro. Isso é atribuição do Judiciário? Não. O papel do Judiciário é, chegando os pedidos, fazer as análises, respeitando os direitos das pessoas processadas.
MidiaNews - A mudança da lei está sobrecarregando a Vara de Ações Coletivas? Seria necessário mais um reforço de magistrados?
Bruno D’Oliveira – O Tribunal de Justiça de Mato Grosso foi pioneiro na especialização de varas. A Vara de Ações Coletivas foi criada em 2007. São poucas no Brasil. Os processos são complexos, mas do ponto de vista organizacional, a unidade está muito bem estruturada com dois magistrados e com assessores e servidores para julgar em tempo oportuno esses processos.
MidiaNews - O senhor já recebeu algum tipo de ameaça ou intimidação, uma vez que já julgou tantos políticos, pessoas de influência e até de alta periculosidade?
Bruno D’Oliveira – Não. Nunca tive um problema nesse sentido.
MidiaNews - Recentemente, o Tribunal de Justiça voltou ao teletrabalho sob críticas da OAB, que reclama, entre outras coisas, da dificuldade de acesso aos magistrados. Como encara estas críticas?
Bruno D’Oliveira – Eu acompanhei esses debates e acho que a OAB, como qualquer entidade de classe, tem o direito de fazer os pedidos que bem entender. O que incomodou é passar aquela mensagem sublimar de que o Poder Judiciário está fechado, porque isso não corresponde à verdade. Isso é muito injusto com os magistrados e servidores. A produção do Poder Judiciário foi até superior na pandemia.
MidiaNews - O senhor foi responsável pela decisão que afastou o prefeito Emanuel Pinheiro por conta do "Cabidão da Saúde". Em que pé está essa ação?
Bruno D’Oliveira – Me desculpe, mas eu não posso comentar sobre ações sob minha responsabilidade. Nós temos um Código de Ética da Magistratura. Mas se não me engano o processo não está sob sigilo. Vocês podem consultar.
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