Coordenador do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) há mais de dois anos, o promotor de Justiça Adriano Roberto Alves defendeu mudanças estruturais no sistema prisional como forma de enfraquecer as facções criminosas que seguem atuando de dentro das cadeias em Mato Grosso.
Em entrevista ao MidiaNews, Alves foi categórico ao criticar um dos pontos mais controversos do sistema carcerário: a visita íntima a presos faccionados. Para ele, esse benefício é um “absurdo que não pode ser tolerado”, já que facilita o repasse de ordens, drogas, celulares e informações para fora das unidades.
“O sujeito matou, roubou, mandou arrancar cabeça, braço, e recebe visita íntima da mulher, que era seu braço direito na facção e foi presa cometendo crimes. Esses absurdos não podem ser tolerados”, afirmou.
“É preciso um isolamento mais severo, sem nenhum contato com o mundo exterior. Esse isolamento desarticula o criminoso, impede que ele passe informações”, completou.
Ainda na entrevista, o promotor também falou sobre os desafios no combate às organizações criminosas em Mato Grosso, defendeu ações mais duras para membros de facções e alertou: o crime organizado está infiltrado na política do Estado.
Confira os principais trechos da entrevista (e a íntegra do vídeo no final da matéria):
MidiaNews – Quais são hoje os principais focos de atuação do Gaeco em Mato Grosso? Houve mudança de perfil no crime organizado nos últimos anos, sobretudo com o avanço das facções?
Victor Ostetti/MidiaNews
Chefe do Gaeco: "Nosso foco tem sido as facções criminosas violentas"
Adriano Roberto Alves – Sim. Nosso foco tem sido as facções criminosas violentas. Essas facções, que todo mundo conhece e que estão atuando no Estado, são cerca de três, uma com maior destaque e as outras duas com menos relevância, mas que atuam com extrema violência.
Há algumas notícias de outras facções na fronteira, mas a atuação ali é mais voltada ao tráfico internacional de drogas do que propriamente ao domínio do tráfico nas cidades como Cáceres e Pontes e Lacerda.
Então, nosso foco continua sendo combatê-las, principalmente na prática de extorsões. Com as operações que ocorreram, sobretudo contra comerciantes, houve um recuo por parte deles. É o que se percebe pelas interceptações que fazemos das comunicações entre eles. Vemos que em algumas cidades a ordem era parar, porque realmente eles sentiram o baque das operações feitas não só pelo Gaeco, mas também pela Polícia Civil em todo Mato Grosso.
MidiaNews – Como o Gaeco tem enfrentado a expansão territorial dessas facções e a disputa entre elas, especialmente em cidades do interior e na fronteira?
Adriano Roberto Alves – Grande parte da cocaína consumida no mundo vem da Bolívia e é importante para eles dominarem a região para que possam fazer o tráfico, usando nossa rede viária, ferroviária e até aérea para mandar entorpecentes para os grandes centros como São Paulo, Rio de Janeiro, Nordeste, ou fora do país. Então, dominar a rota é essencial para que possam transitar sem interferência de facções inimigas.
Fazemos aquilo que a legislação nos permite: interceptações, investigações, levantamentos de informações por meio de relatórios de inteligência, troca de informações com a Polícia Militar, Civil e, a partir disso, vamos atuando, investigando e focando principalmente em prender lideranças, descapitalizar as facções e usar o dinheiro delas para equipar não só a segurança pública, mas também outros setores, como o acautelamento de veículos para prefeituras e para o sistema de saúde.
MidiaNews – Que tipo de estratégias o Gaeco tem adotado para descapitalizar financeiramente as facções, enfraquecendo sua estrutura econômica e logística, como lavagem de dinheiro, empresas de fachada e uso de laranjas?
Adriano Roberto Alves – Em toda operação buscamos identificar o fluxo financeiro, porque o objetivo deles é o lucro. Então, toda investigação tem como foco principal rastrear para onde vai esse dinheiro. Em quase todas – eu diria 90% – há envolvimento de empresas laranjas ou empresas como distribuidoras de água, postos de combustível, mercadinhos, farmácias...
Na última operação, por exemplo, teve farmácia envolvida, utilizada para lavagem de dinheiro. Buscamos bloquear bens – imóveis, carros, dinheiro em contas bancárias. Seguimos a trilha do dinheiro. Houve um levantamento, em 2020, que apontou que o resultado dos bloqueios executados no Estado foi de R$ 230 milhões retornados aos cofres públicos. Essa atuação não é só do Gaeco, mas também da Polícia Civil e de outros órgãos, conseguiram bloquear esses valores e reverter ao erário.
MidiaNews – E onde esse dinheiro está sendo investido?
Adriano Roberto Alves – Vou citar algumas partes importantes para a sociedade entender. Por exemplo, apreendemos muitos veículos. Esses veículos, às vezes, são acautelados pela PM, pela Polícia Civil ou até mesmo pelo Gaeco, para uso no combate às facções criminosas. Ou então uma prefeitura precisa de um caminhão, uma máquina para obras, e fazemos o pedido judicial para acautelamento desses bens. Eles são utilizados em prol da população.
Outra parte é o dinheiro bloqueado, que é transferido para uma conta judicial e, depois, para o fundo de segurança pública. Esse fundo compra viaturas, armas, sistemas de interceptação, sistemas de extração de dados de celulares, notebooks, entre outros.
MidiaNews – A maioria dessas empresas laranjas são abertas em nome de familiares, amigos ou eles buscam terceiros?
Victor Ostetti/MidiaNews
"É preciso melhorar o sistema prisional, mas essa melhora depende da legislação"
Adriano Roberto Alves – Às vezes, são familiares – primo, irmão – e, às vezes, é um laranja mesmo, alguém sem ligação com eles. Pagam R$ 1.500 por mês para a pessoa fornecer o nome, criam a empresa e iniciam a lavagem. Tem de tudo: parentes, amigos e pessoas desconhecidas que foram recrutadas e recebem um valor mensal para emprestar o nome.
MidiaNews – E essa pessoa também responde?
Adriano Roberto Alves – Responde, é presa. Semana passada, teve uma operação em que pessoas que recebiam R$ 1,5 mil e foram presas por permitirem o uso do nome para lavar milhões de reais. É a cultura do “se dar bem”, mas não se pensa nas consequências, que podem ser grandes.
MidiaNews – Como analisa a articulação entre o Gaeco, o sistema prisional e as outras forças de segurança para impedir que líderes de facções criminosas continuem comandando crimes de dentro das penitenciárias?
Adriano Roberto Alves – A interação com o sistema prisional é muito grande. Recentemente, o Poder Executivo tentou aprovar uma lei, com nosso apoio, e parte dela não foi aprovada, como o isolamento dos líderes – que é necessário – e a proibição da venda daqueles “mercadinhos”, que causam muitos problemas, inclusive financiando o próprio crime organizado.
Mas nossa troca de informações com o sistema prisional é constante. Celulares apreendidos são encaminhados ao Gaeco; lideranças que requerem atenção especial em procedimentos recebem esse cuidado. Essa cooperação não ocorre só com o sistema de Mato Grosso. Muitas vezes, recebemos bilhetes ou celulares apreendidos fora do Estado e iniciamos novas investigações que comprovam mais crimes cometidos por essas lideranças.
É preciso melhorar o sistema prisional, mas essa melhora depende da legislação.
MidiaNews – Considera que foi uma perda para Mato Grosso a não aprovação do isolamento e da proibição dos mercadinhos?
Adriano Roberto Alves – No meu ponto de vista, sim. Poderia ter melhorado bastante, no meu entendimento. Mas faz parte do jogo. Bola para frente e vamos atuar naquilo que temos condições.
MidiaNews – Em sua opinião, o que precisa mudar na legislação para se ter mais eficiência o combate às facções criminosas?
Victor Ostetti/MidiaNews
"A pena do faccionado tem que ser muito mais alta, porque ele representa um risco maior à sociedade"
Adriano Roberto Alves – Hoje, por exemplo, a lei que trata de estelionato não diferencia quem pertence a uma facção criminosa. O Comando Vermelho, por exemplo, pratica estelionato utilizando OLX, Mercado Livre ou outras plataformas, e, quando é pego, responde por estelionato e organização criminosa. A pena mínima para organização criminosa é de três anos, podendo subir para quatro. E a de estelionato também é extremamente baixa: um ano.
Então, a mesma pessoa que pratica estelionato, mas que não pertence a uma facção violenta – que mata, arranca braços, decapita –, recebe praticamente a mesma pena. Isso precisa mudar.
O cidadão comum que comete um estelionato não pode receber o mesmo tratamento penal de um criminoso integrante de facção. A pena do faccionado tem que ser muito mais alta, porque ele representa um risco maior à sociedade.
Também precisamos mudar o sistema de execução da pena. Quem comete um crime simples não pode ser tratado como um faccionado violento. Esse deveria ter um regime mais duro, isolamento efetivo, sem contato físico com familiares, justamente para evitar a transmissão de ordens criminosas, que é o que ocorre hoje. A legislação precisa evoluir nesse ponto: execução penal e aumento das penas mínimas para esses criminosos.
MidiaNews – É contra, por exemplo, a visita íntima?
Adriano Roberto Alves – Sim. Aqui, por exemplo, é permitido contato físico, visita íntima. Ou seja, o sujeito matou, roubou, mandou arrancar cabeça, braço, e recebe visita íntima da mulher, que era seu braço direito na facção e foi presa cometendo crimes. Esses absurdos não podem ser tolerados. Com a visita íntima, o preso continua recebendo celular, drogas, e recados são facilmente passados. É muito difícil evitar isso.
É preciso um isolamento mais severo, sem nenhum contato com o mundo exterior. Esse isolamento desarticula o criminoso, impede que ele passe informações. E isso já existe no Brasil: nos presídios federais, as lideranças praticamente não recebem visita íntima. O contato é por vidro, é filmado, gravado, e se houver suspeita de crime, as gravações são usadas judicialmente.
Esse tipo de ação deveria ser implementado nos Estados. Mas a legislação atual não permite isso. A lei precisa ser nacional e obrigatória, impondo esse tipo de isolamento para lideranças criminosas: sem visita íntima, banho de sol individual e com horários fixos. Só assim é possível impedir que ordens criminosas continuem sendo dadas de dentro da prisão. Infelizmente, isso ainda não acontece no Estado.
MidiaNews – Acha que esse é o ponto central?
Adriano Roberto Alves – O isolamento, hoje, é o ponto central. A legislação está sendo reformada, mas não toca no essencial, que é o sistema prisional e a execução da pena dos faccionados. Do ponto de vista do combate, o Estado tem sido eficiente. Mais de 90% das lideranças faccionadas estão presas, com penas de 70, 120 anos. A principal liderança do Estado está presa há 30 anos. Mas, mesmo assim, continuam comandando do presídio. Isso não pode ser permitido.
Temos profissionais extremamente competentes – policiais civis, delegados, promotores, juízes – mas falta uma legislação que os equipe com instrumentos eficazes para impedir que esses criminosos sigam dando ordens de dentro da cadeia. Vi uma autoridade dizendo que a polícia não prende mal – e é verdade. Um sujeito condenado a 70 anos foi preso corretamente. Outro está há 32 anos preso. Mas, mesmo assim, continuam liderando facções. E a nova lei não trata disso: de como executar a pena desses criminosos.
MidiaNews – Acha que as fiscalizações dentro dos presídios estão sendo eficientes?
Adriano Roberto Alves – Do ponto de vista dos recursos disponíveis, sim. Mas é difícil avançar quando se tem uma legislação que permite visita íntima, contato físico, banho de sol coletivo com outros presos. Isso dificulta o controle.
MidiaNews – Mas há outra ponta também, que são as ações sociais. Em sua opinião, elas precisam alcançar mais a ponta, para que os jovens não entrem no crime organizado?
Adriano Roberto Alves – Sim. É uma mudança de cultura. Grande parte dos jovens que entram para o crime são da classe dos “nem-nem”: nem trabalham, nem estudam.
É preciso criar programas sociais para encaminhá-los para o esporte, reeducação, ou outras atividades. Eles são usados como mão de obra pelas lideranças.
Quem é da área social tem mais propriedade para falar, mas o que posso dizer é que muitos jovens, entre 18 e 25 anos, não fazem nada. O Estado precisa criar uma terceira via, uma alternativa. É uma forma de reeducá-los. Algo precisa ser feito.
MidiaNews – O senhor citou uma nova modalidade de crime cometido por facções, que é a extorsão a comerciantes, muitas vezes sob o pretexto de dar proteção. Não corremos o risco de sermos dominados por esse "Estado paralelo"?
Adriano Roberto Alves – No Estado, hoje, não vejo isso. A Polícia Civil, o Gaeco, os juízes, os promotores têm atuado de forma a impedir que isso aconteça. Em Mato Grosso, não existe uma rua onde a polícia não entre. É diferente de outros Estados. Em um deles, por exemplo – não vou citar o nome –, conversando com o procurador-geral, ele me disse que, na Capital deles, 75% do território a polícia não entra. Aqui, isso não acontece, e dificilmente acontecerá.
Estamos combatendo as extorsões. Tanto é que, em interceptações de comunicações entre membros das facções, houve ordens para parar com a extorsão após as operações do Gaeco e da Polícia Civil. Eles realmente se sentiram muito prejudicados com essas ações. Houve um recuo. Mas, do ponto de vista da legislação, ainda precisa melhorar bastante.
MidiaNews – Em um passado não tão remoto, a impressão que tínhamos é que o Gaeco atuava mais fortemente em casos de corrupção envolvendo políticos. Isso procede? Por quê? Os políticos estão mais honestos ou continuam cometendo crimes, só que de forma mais discreta?
Adriano Roberto Alves – Não paramos as ações. Na semana passada mesmo, prendemos servidores públicos envolvidos com corrupção. O Brasil tem suas ondas. Naquela época em que o Gaeco atuou fortemente contra a corrupção, também estávamos vivendo a Operação Lava Jato.
Victor Ostetti/MidiaNews
"Pode ser que o endurecimento das leis desmotive a prática criminosa"
Hoje são menos casos, porque, do ponto de vista institucional, houve muito aprendizado em fiscalização. Houve um fortalecimento das controladorias gerais do Estado, da União. O Tribunal de Contas também aprendeu muito com aquela época. O Ministério Público evoluiu, assim como os próprios órgãos públicos. Foram criados instrumentos que inibem práticas de corrupção.
Não estou dizendo que acabou, mas aquele volume de antes hoje não se repete. Semana passada fizemos operação; a Polícia Civil também fez, recentemente, em uma secretaria estadual.
Ainda ocorre, mas não com aquela frequência. Até mesmo as denúncias diminuíram. Antes, quase todo dia chegava algo novo na promotoria. Hoje, não se vê mais isso com tanta regularidade. Não zerou, mas caiu bastante.
MidiaNews – Acha que isso também pode acontecer com o crime organizado? A gente vê operações praticamente todos os dias...
Adriano Roberto Alves – Pode ser que, com a melhoria da legislação, eles deixem de comandar como comandam hoje. Pode ser que o endurecimento das leis desmotive a prática criminosa.
O Estado aprende com seus erros. Foi assim na Itália, nos Estados Unidos, nas décadas de 60 e 70. Vários países da Europa tinham grandes problemas com drogas e hoje quase não têm. Estamos aprendendo com o que estamos enfrentando agora.
Resta aplicar esse aprendizado para corrigir os erros, como já foi feito com os instrumentos de fiscalização do dinheiro público.
MidiaNews – Tem esperança nisso?
Adriano Roberto Alves – Sim, tenho certeza de que vai acontecer. Pode demorar dois, dez anos, mas vai acontecer.
MidiaNews – Na sua opinião, e diante das evidências, o crime organizado está infiltrado na política mato-grossense e em setores públicos, envolvendo contratos com órgãos, prefeituras e licitações fraudulentas?
Adriano Roberto Alves – Está infiltrado, sim, mas não a ponto de ter corrompido o sistema. São casos pontuais, mas eles existem. Não é algo que tomou o controle da política ou do setor público. Isso não existe.
MidiaNews – A estrutura atual do Gaeco em Mato Grosso é suficiente para lidar com a complexidade das investigações ou há carência de recursos humanos e tecnológicos?
Adriano Roberto Alves – Nunca é suficiente. Infelizmente, o Estado é limitado. É preciso investir em educação, saúde, segurança pública, sistema judicial... Temos uma estrutura grande, com bons equipamentos, e é com isso que estamos trabalhando e produzindo resultados. Quase toda semana realizamos operações.
MidiaNews – O avanço da tecnologia, como análise de dados e interceptações digitais, tem ajudado?
Adriano Roberto Alves – Bastante. E agora, com a inteligência artificial, penso que daremos um salto gigantesco. Análises que antes levavam três, quatro, cinco meses, com a IA, podem ser feitas em três, quatro dias. Vai ser um ganho imenso. Mais um aprendizado.
MidiaNews – Existem ameaças ou tentativas de intimidação contra membros do Gaeco durante investigações sensíveis? Como o grupo garante a segurança de seus integrantes?
Adriano Roberto Alves – O que temos observado, principalmente em relação às facções, é que algumas lideranças incentivam esse tipo de atitude. Inclusive, já isolamos e retiramos uma liderança do Estado porque ela estimulava esse comportamento. Diziam: “se matar policial, vai ganhar tanto”. Temos interceptações que mostram esse incentivo.
Normalmente, são as lideranças que fazem isso. Elas estão mais audaciosas, mais perigosas, mais dispostas a enfrentar.
MidiaNews – E por quê?
Adriano Roberto Alves – Talvez porque estão sendo soltas com muita facilidade. Prendem, respondem ao processo e logo estão de volta à rua. Isso serve de incentivo. Se ele mata um policial e sai ileso, vira uma liderança importante. É isso que eles comentam, é o que vemos nas interceptações. Por isso, quando vamos cumprir mandados contra esses alvos, utilizamos agentes altamente treinados para garantir a segurança.
Nosso foco é investigação, levantamento de dados, não o enfrentamento armado. Graças a Deus, ninguém foi atingido por esse tipo de ameaça. Temos contornado tudo. Contamos com um setor que monitora constantemente a segurança dos promotores, policiais e servidores do Gaeco.
Em alguns casos, cedemos carros blindados. Um servidor, por exemplo, ficou dois anos com escolta porque era um alvo sensível. Felizmente, não aconteceu nada. Mas o monitoramento é constante.
Veja a íntegra:
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