A cannabis medicinal vem ganhando espaço no Brasil como alternativa terapêutica para diversas condições de saúde, mas ainda enfrenta desafios como o desconhecimento médico, o preconceito e a burocracia no acesso.
Em Cuiabá, uma das vozes pioneiras nessa área é a médica Rafaela Trevisan, de 31 anos, natural de Maringá (PR), mas criada em Mato Grosso desde a infância. Ela prescreve cannabis há três anos e meio e é certificada internacionalmente em Medicina Endocanabinoide pela Wecann Academy.
Ela atende pacientes com autismo, Parkinson, Alzheimer, epilepsia refratária, dores crônicas, ansiedade, depressão e outras condições complexas. Defensora do potencial terapêutico da planta, ela alerta para a necessidade de mais médicos especializados e de políticas públicas que garantam acesso seguro e democrático aos tratamentos.
"Eu nunca vi preconceito de verdade. Nunca tive medo do preconceito e do julgamento quando decidi prescrever a planta. O que mais vejo de preconceito e julgamento vêm dos colegas médicos. Mas muito por falta de conhecimento, ignorância. Me desculpem, mas é isso que acredito", disse.
Em entrevista ao MidiaNews, ela falou sobre o cenário da cannabis medicinal em Mato Grosso, os mitos e avanços científicos, os desafios da regulamentação e os casos de sucesso que comprovam como a planta pode transformar vidas.
Confira os principais trechos da entrevista (e a íntegra do vídeo no final da matéria):
MidiaNews - Como avalia a disponibilidade e a atuação de médicos prescritores da cannabis medicinal em Cuiabá e Mato Grosso? Existe uma rede consolidada ou ainda é um mercado em desenvolvimento?
Rafaela Trevisan - É um mercado em desenvolvimento. Ainda é bem escasso o número de médicos que são certificados, que são mais especializados. Ainda não se pode falar que é uma especialidade médica, porque não se consolidou uma Sociedade Brasileira de Medicina Canabinoide. Mas é questão de tempo. Existem, sim, alguns médicos que já prescrevem, mas não têm essa especialização mais a fundo como uma certificação internacional, que é o que eu fiz, por exemplo. Hoje existem várias pós-graduações que fazem esse aprofundamento, porque é um assunto que a gente não vê na faculdade. É algo novo, que a gente já tem muito estudo.
Então, temos pouquíssimos, o que sei de estatísticas aqui no Brasil, são menos de 2% dos médicos que têm esse conhecimento a fundo para prescrever com ética, com conhecimento, com segurança, porque a cannabis medicinal tem contraindicação, a cannabis medicinal tem interação medicamentosa.
Até esse apelo que eu falo dos médicos é justamente: você pode nunca prescrever cannabis medicinal na sua vida, mas cada vez mais seus pacientes vão chegar no consultório tomando cannabis.
Essa é a minha maior dificuldade atualmente: saber como os profissionais podem orientar também sobre a medicação. Tem que dar esse intervalo, tem que tomar dessa forma, se não tem interação... Esse interesse, esse conhecimento, vejo que precisa aumentar, mas temos, sim, aqui em Cuiabá três com essa certificação - eu e mais duas colegas - e a gente atua muito bem, tem muita procura, mas sei desses outros colegas que também prescrevem.
MidiaNews - Você comentou que ainda não existe uma Sociedade Brasileira de Medicina Canabinoide. Fale mais sobre esse tema.
Rafaela Trevisan - Como é separada a Medicina? Por especialidades, por sistemas. Então tem o cardiologista, que cuida do sistema cardíaco; o imunologista, do sistema imunológico; o gastroenterologista, do sistema gastrointestinal. E faz só 30 anos que foi descoberto o sistema endocannabinoide. E foi só agora recentemente, há dois anos, que começou a entrar nas grades curriculares de faculdade. Mas a gente está cada vez mais progredindo para que isso aconteça. Foi em 2016 que realmente começou a prescrição de cannabis medicinal no Brasil de forma legal. Estamos indo em passinho de formiga, mas está em processo de regulamentação.
MidiaNews - CBD e outros cannabinoides são mais eficazes no tratamento de condições como dor crônica, epilepsia refretária em comparação aos medicamentos tradicionais?
Rafaela Trevisan - O que mais tem de estudo é em dor crônica, epilepsia e autismo. Parkinson também agora que vem aumentando. Com isso, mostra a eficácia do CBD, muitas vezes superior a tratamentos alopáticos, medicações tradicionais de farmácia. Vou dar um exemplo: o autismo. Não existe medicação para autista. Existem medicações antipsicóticas, anticonvulsivantes, antidepressivas, ansiolíticas, que são utilizadas para tentar controlar as estereotipias em excesso. E a cannabis, costumo dizer, é a medicação do autista, porque age literalmente em todos os sistemas.
Falo muito do sistema endocannabinoide, que é um sistema que a gente já possui. E a gente já produz duas substâncias no nosso corpo que atuam nesse sistema, que é a nandamida e 2-AG. O que é isso? É a nossa maconha interna. E a planta, o CBD e o THC principalmente, tem a molécula muito parecida com esses dois endocannabinoides. Entendendo dessa maneira, essa medicação vem para atuar em equilíbrio em todos os sistemas. É como se fosse um sistema-mestre. Ele ajuda a regular o cardíaco, imunológico, digestivo, neurológico... Por isso que atua em tantas doenças diferentes. Trazendo sempre o equilíbrio daquele paciente.
MidiaNews - Quais critérios utiliza pra determinar a dosagem e a proporção THC e CBD em cada paciente?
Rafaela Trevisan - Primeiro de tudo a gente precisa saber se o paciente pode ou não ter THC. Não é todo mundo. Quais são as contraindicações contra o THC? Bipolaridade e esquizofrenia. Se tem um histórico familiar muito próximo de bipolaridade ou esquizofrenia, mas o paciente não apresenta sintoma nenhum em relação a isso, a gente pode usar em uma dose baixa, testar, ver como responde e talvez aumentar. É possível, já aconteceu. Mas tem muitos casos que essa tendência familiar genética dessas doenças faz com que tenha uma pré-disposição.
E o que acontece principalmente com contraindicação ao uso do THC? Existe uma bolinha dentro do nosso cérebro que se chama a amígdala, que não é a da garganta, é da cabeça. Essa amígdala guarda traumas, guarda medos, guarda angústias... Então tudo de ruim está dentro dessa bolinha. E nesse local do cérebro a gente tem muito receptor de THC. Quando utilizo em pacientes que podem, que não têm uma predisposição à psicose, à bipolaridade, à esquizofrenia, consigo estimular essa região e amenizar os traumas.
Não é que ele apague da sua mente, mas não te causa a sensação física e emocional, gatilhos, que façam com que isso se aflore. E quando o paciente tem essa tendência à bipolaridade e esquizofrenia, o que acontece é o contrário. Ao invés de eu modular a amígdala, posso hiperexcitar. E todas as paranoias, os medos, as angústias, a agitação ser o oposto do que a gente espera. Mas é possível fazer o tratamento com a cannabis. Mesmo assim, a gente tira o THC, aproveita todos os outros fitocannabinoides que não fazem essa alteração psicotrópica, essa alteração do nível de consciência. O THC é muito importante para dor crônica, rigidez pós-AVC, paralisia cerebral, os espasmos e sustos de quem tem paralisia cerebral e epilepsia em si.
Então o THC vai ser uma ferramenta valiosíssima e maravilhosa em diversas situações, só que quando a gente usa isso de forma medicinal, a gente não está falando recreativa, a gente está falando em proporções corretas. O CBD numa proporção inibe todo e qualquer efeito psicotrópico, que altera realmente o nível de consciência. O paciente consegue se medicar, consegue ter todos os benefícios do THC, mas não tem o barato. As pessoas perguntam: Vou sentir?" Não vai.
MidiaNews - E o CBD tem alguma contraindicação?
Rafaela Trevisan - Não tem contraindicação ao uso do CBD. O CBD é antipsicótico, é ansiolítico. O que pode ter de efeito colateral em doses altas e iniciais é um pouco de vertigem, tontura, um pouco de ânsia de vômito. Isso pode acontecer e é relatado quando o paciente é muito sensível. Mas isso normalmente dura uns dois, três dias... Isso se ameniza e o corpo se adapta a essa medicação. Esse colateral pode acontecer (...), mas aí entra o médico que sabe prescrever a cannabis.
MidiaNews - Na sua experiência, o estigma em torno da cannabis medicinal ainda é forte no Mato Grosso? Existe um preconceito?
Rafaela Trevisan - Eu nunca vi o preconceito de verdade. Nunca tive medo do preconceito e do julgamento quando decidi prescrever a planta.
MidiaNews - Por quê?
Rafaela Trevisan - Para mim, preconceito não combate só com coragem, que é falar, dar a cara, isso faz parte do processo. Mas principalmente com conhecimento. Então, não existe argumento raso que eu não consiga falar sobre a ciência com ética, explicar como funciona e argumentar para que o paciente entenda algo que é comprovado.
Eu não sinto na pele esse preconceito em relação aos pacientes, porque muitos me procuram querendo a medicação. Alguns não podem e eu falo: "Vamos tomar outro caminho". Os que podem, vamos juntos nesse processo. Mas sempre explico muito a fundo como funciona, por que funciona, para o paciente aderir ao tratamento. Para o paciente entender que não vou pingar duas vezes por dia a gotinha e vai ser um milagre, que precisa de ajuste. Quanto mais você fala para o paciente o que pode acontecer, o que não pode acontecer, faz toda a diferença na parte do tratamento.
O que mais vejo de preconceito e julgamento vêm dos colegas médicos. Totalmente! Mas muito por falta de conhecimento, a ignorância. Me desculpem, mas é isso que acredito. Hoje a gente tem tanto conhecimento na palma da mão...Com a inteligência artificial, tudo que a gente quiser tá na palma da nossa mão, por que não entender sobre o assunto? Então assim, nunca prescreva se você quiser, mas entenda, você é médico, você tem que saber do corpo humano e isso é só mais um detalhe.
MidiaNews - Qual sua opinião sobre a necessidade da discriminalização do cultivo pessoal para pacientes que dependem da cannabis medicinal? É possível plantar em casa atualmente no Brasil?
Rafaela Trevisan – É possível. Já tenho pacientes que passaram pela medida judicial. Entra com o processo, comprova-se que o tratamento tem um custo elevado para determinada patologia, determinada doença, para dose que ele precisa. É feita uma avaliação geral do custo disso, junto com os advogados. Eu entro com o laudo médico, mostrando quanto esse paciente precisa e a forma de uso que ele precisa. Com isso, já tenho pacientes aprovados aqui em Cuiabá, inclusive, que estão plantando, sim, devido a uma doença mais grave que precisa de doses maiores.
Fora isso, essa parte de plantar não é muito simples e também não é para todo mundo. Existem muitos pacientes que falam: "Doutora, eu estou atrás de laudo para salvo-conduto". Eu não sou essa doutora, não passo esse laudo. Então a gente vai no mínimo acompanhar seis meses, vou entender o que você precisa, vou te medicar com óleo, que é a base do tratamento pela forma de ação, então ele fica no corpo mais tempo.
Qual é a diferença principal do fumado? Além da concentração do THC e do CBD, é o tempo de ação. Então quem evapora, quem inala, quem fuma, em um a três minutos começa o efeito, mas após uma hora e meia já está acabando. Então não tem uma manutenção do tratamento. Quem quer simplesmente para legalizar aquilo, não é comigo. Mas se você quer fazer todo o processo, passar por isso, fora o meu laudo do processo judicial, é necessário que o paciente comprove.
MidiaNews - E como analisa esse mercado das empresas de produção de cannabis? Ainda tem muita diferença em relação ao mercado internacional? Quais são as principais diferenças?
Rafaela Trevisan – A principal diferença é o refino da medicação. A gente tem óleos maravilhosos, mas normalmente são feitos em azeite de oliva, em um óleo de coco, em óleo de várias plantas. O meio diluente da medicação, da cannabis, precisa ser oleaginoso. Qual é a diferença principal dos importados? Lá, eles têm uma grande escala de produção e conseguem reduzir custos. Por exemplo, quase todos os óleos são feitos de MCT, que é o melhor óleo de diluição para absorver o máximo da medicação possível. Existe sim essa diferença, muito pelos incentivos que ainda não há aqui no Brasil.
MidiaNews - Qual sua visão sobre o potencial da cannabis no tratamento de doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer e o Parkinson?
Rafaela Trevisan – Tenho muito paciente com Parkinson e Alzheimer atualmente em tratamento. A cannabis é a medicação que traz equilíbrio para o corpo. É a medicação da qualidade de vida, principalmente atuando na melhora do humor, ansiedade, depressão, irritabilidade, nervosismo. Para o Alzheimer entra a parte da agitação, do nervoso, crises de raiva. Para o Parkinson, a parte do humor e na aceitação do processo, porque muitos pacientes começam a ficar debilitados fisicamente e com a consciência perfeita. E isso é deprimente para muitos pacientes. Entramos com a cannabis agindo no humor nesses casos das duas doenças.
MidiaNews - E sobre o autismo e o TDH (Transtorno de Déficit de Atenção), é possível tratá-los também?
Rafaela Trevisan – Também. Eu recebo muitas crianças com TDH, muitos autistas, e autistas e TDH, juntos. Mas nos pacientes com TDH, a hiperatividade é o que mais assusta os pais, é o que atrapalha na escola... E o tanto de pacientes de 5 anos que chega para mim e que tomam Ritalina, que tomam Neuleptil, que tomam medicações tão fortes, mas que para o cognitivo deles não é nada bacana.
Assim, a cannabis, com certeza, é a melhor opção. O meu filho trata com cannabis medicinal também e eu jamais daria uma Ritalina para o meu filho com cinco anos de idade.
E a evolução é maravilhosa no autismo, É aquilo que eu disse: como não existe a medicação para o autismo, o CBD tem potencial para isso, age nas estereotipias, age no contato visual. Uma semana de medicação, às vezes, as mães falam: "Olha, ele está me olhando no olho". Isso já é uma felicidade para uma mãe e para um pai.
E atua, sim, nessa parte da hiperatividade. Mas é muito importante que a família entenda que é um processo. Com crianças não é uma coisa tão rápida.
MidiaNews - Qual é o perfil mais comum de pacientes que buscam cannabis medicinal no seu consultório? Há alguma mudança recente nesse perfil?
Rafaela Trevisan – Tem crescido Parkinson, mais ainda. Já tinha bastante procura por dores crônicas, porque são muitos tipos de dores crônicas. Tenho um grande número de autistas também e tratamento por redução de danos a pacientes que usam muito a cannabis recreativa e está trazendo malefícios. Ou quem usa outros tipos de drogas como a cocaína, faço esse tratamento de redução de danos e a gente consegue ótimos resultados.
MidiaNews - Como seria essa redução de danos? Você entra o CBD juntamente com o THC nesses casos?
Rafaela Trevisan – Redução de danos da maconha. O paciente normalmente consome muito THC vaporizado. Com isso, preciso equilibrar essa balança do sistema endocannabinoide dele. Então, normalmente, a gente começa com um óleo com muito mais CBD, com tudo da planta, mas muito mais CBD e bem pouquinho de THC. Para atuar, reduzindo a ansiedade, porque o que acontece na maioria das vezes com o uso crônico da planta é ficar mais irritado, não conseguir ficar sem fumar e aí vão trazendo malefícios. Não tem nada melhor para reduzir danos da maconha do que a própria maconha, né?
MidiaNews - Já teve casos de pacientes que conseguiram reduzir ou substituir completamente opióides e outras substâncias, por exemplo, graças ao CBD?
Rafaela Trevisan – Vários pacientes com fibromialgia. Fibromialgia é um paciente que chega e que é uma dor muito de cunho emocional, que tem os gatilhos e vem aquela dor inteira. O paciente que tem fibromialgia, tem fadiga, tem insônia, tem dor, o humor dele é abalado e a cannabis é sensacional para eles. São respostas muito boas e que rapidamente a gente consegue retirar as medicações, mas tudo com orientação, com acompanhamento, com redução gradual, nada no susto, nada de loucura.
Para tratar comigo, a gente faz uma primeira consulta, passa por toda essa avaliação e juntos a gente define se dá para tratar.
MidiaNews - Acredita que a Cannabis poderá substituir completamente algumas classes de medicamentos no futuro, como ansiolíticos, anti-inflamatórios?
Rafaela Trevisan – Substituir completamente não, porque são eficácias diferentes. O CBD é maravilhoso, legal, mas para uma crise de pânico absurda, um alprazolam, um frontal é ótimo também. Em 20 minutos, começa a fazer o efeito. E se fosse comparar com uma dose de CBD, às vezes seria preciso uma dose muito grande, que custa muito mais Existe espaço para todas as medicações. Não acho que nenhuma medicação vai sair de linha, até porque a cannabis, como é isso que busca o equilíbrio, age muito bem em sinergia, em conjunto com as outras medicações.
MidiaNews - Quais são as principais barreiras que impedem a cannabis medicinal ser mais acessível no Brasil e como superá-las? Pacientes com baixa renda podem buscar ajuda?
Rafaela Trevisan – Infelizmente, hoje, é realmente o acesso à medicação, que apesar de ter custos mais em conta, há burocracia, é todo um passo a passo, demora, a medicação não chega e por mais que, às vezes, custe R$ 250, é muito para muitas famílias brasileiras. Hoje, ainda tem toda a burocracia da judicialização. E se o paciente não tem dinheiro para pagar o advogado, o que faz?
Foi quando entrei com essas parcerias com empresas que ajudam o paciente que não tem condição. A gente tem maravilhosas associações que não conseguem se regulamentar completamente pelos empecilhos que são colocados no meio do caminho. Então, a minha visão é incentivar o comércio brasileiro, a indústria brasileira na produção de cannabis para que a gente consiga ter mais volume, consiga importar menos e incentivar o mercado daqui.
Mas deveria, sim, ter um acesso mais ágil para esses pacientes, porque ainda é muito precário e muito difícil. Eu já paguei medicação de tanto paciente, já fiz rifa de tanta gente, não tô querendo falar nada de mim, mas eu não consigo atender o paciente e depois eu vejo o bem que fez e ele não consegue continuar o tratamento por falta de recursos financeiros.
Acho que as discussões que estão em pautas hoje sobre descriminalização, de plantar em casa, não tem a mesma urgência do que os pacientes (da cannabis medicinal) têm. Vejo muito essa tendência para descriminalizar e meio que associar com o uso recreativo, sendo que com certeza a prioridade agora tem que ser com esses pacientes, autistas, epilepsia, que não conseguem ter acesso a medicação. Então, ainda é muito difícil, sobre esse processo eu enfrento muitas dificuldades.
MidiaNews - Qual a sua posição sobre o uso recreativo da cannabis por pacientes que já fazem uso medicinal? Há riscos nessa dualidade? Pede para reduzir o uso recreativo?
Rafaela Trevisan – Eu não posso tirar nada, quem tem que tirar é o paciente. Porque posso falar o quanto eu quiser. "Olha, não fume, isso faz mal", o paciente vai fazer se ele quiser, né? Estou aqui para orientar, para explicar. Existem pessoas que nunca vão ter nenhum mal com o THC, que é o grande vilão, e existem pessoas que não podem com o THC. Alguns na primeira experiência já entendem que não é para eles, outros insistem, muitas vezes é legal, mas basta uma paranoia, uma bad, para o paciente ter a consciência que provavelmente isso não é para ele.
São pessoas e pessoas. Até dia 20 de julho de 2023 era permitido o uso vaporizado para algumas pessoas, importar as flores para pacientes que precisassem fazer uso do vaporizado. Era permitido a prescrição e a importação. E eu fazia isso, eu tinha pacientes de 75 anos que fumavam três carteiras de cigarro por dia e que depois que a gente entrou com óleo melhorou muito.
Agora não, não temos essa acessibilidade, foi proibido novamente, e aí o paciente recorre a quê? À ilegalidade. E acaba fumando coisa que está podre, que foi usada pesticida, que foi plantada em qualquer lugar. A cannabis é uma planta que absorve tudo do solo, é excelente para limpar o solo então se ela foi plantada no fundo da casa da pessoa e o solo tá contaminado, vai estar fumando coisa contaminada, metal pesado, pesticida e etc.
Com essa proibição, em seguida, veio a discussão da descriminalização. E por que a gente não está falando do medicinal, primeiro?
Então desde a seda que você tem que usar, do tamanho da piteira que você tem que usar, porque que você não pode fumar o restinho ali da ponta do cigarro, da maconha, porque não é o que todo mundo fala, "ah, é o melhor ali que ficou". Não, aquilo ali é o que tem de mais podre da maconha, que é o alcatrão, com todas as toxinas que não deveriam estar entrando no corpo. Redução de danos é além de tirar a pessoa da droga, é literalmente orientar e explicar.
MidiaNews - E você é a favor da legalização da maconha no Brasil?
Rafaela Trevisan – Polêmico, né? Mas eu não acho que a gente tenha estrutura pra isso ainda. Eu acho que enquanto não for regulamentado mesmo essa parte medicinal de tanto da importação quanto da produção aqui dentro, como que a gente vai legalizar um negócio, né? Fica difícil. O que eu vejo na maior diferença é, já fui para Amsterdã, para o Canadá, para os Estados Unidos, em vários locais que eram legalizados, mas uma estrutura absurda, umas plantações totalmente estruturadas, as mesmas que fazem o extrato do óleo que a gente importa de lá, é o que eles fumam com o máximo de qualidade.
Então não tem como eu comparar, e eu acho que a gente tá anos luz atrás desses países, temos que dar esse foco para o medicinal, para todos os meus pacientes autistas e de epilepsia para que estejam tomando as medicações do jeito que precisa para depois a gente pensar nisso. Porque se esse comércio medicinal estiver girando bem, é um caminho que já vai acontecer. Mas eu acho que a gente não pode pular a etapa, senão fica difícil.
MidiaNews - Se você pudesse mudar uma política pública relacionada a cannabis medicinal hoje, qual seria e por quê?
Rafaela Trevisan – Hoje a gente tem tanta medicação cara, de imunológico, que ajudam demais e são essenciais para vários pacientes, mas custam 30 mil reais. Então, acho que a política que mais ia ajudar é realmente facilitar esse acesso. E uma forma que eu, como médica, vejo que seria mais fácil de solucionar seria fazendo os Estados parcerias com as associações que estão aqui para estimular a produção deste mercado da cannabis e o governo ajudar com uma verba, não seria tão alta, e disponibilizar pra essas associações, pra gerar o mercado interno e fazer o paciente ter a medicação na data que ele precisa.
Quantas vezes o paciente não está em condição financeira de pagar pelo remédio porque ainda não recebeu, a mãe do paciente, e demora, aí ele toma uma dose mais alta, o frasquinho tá acabando, a medicação que ia demorar 20 dias demorou 35, porque a gente nunca sabe quando a medicação vai chegar em casa. Às vezes a Anvisa demora dois dias, às vezes demora 20 dias. Então é tudo tão incerto que se a gente estimulasse o que a gente tem aqui perto no nosso país, com certeza isso seria bem fácil de resolver, mas precisa ter esse olhar, que até agora eu acho que não foi dado com tanta importância.
MidiaNews - O que espera do futuro da cannabis medicinal no Brasil?
Rafaela Trevisan – Eu já sou tão realizada com ela (cannabis medicinal), mas espero que os colegas médicos tenham o olhar que precisa para isso pela segurança dos pacientes. Aí a gente deixa de falar de preconceito, é o seu paciente, é o paciente que tem uma vida na sua mão, e o básico é a gente estudar sobre o assunto.
É muito difícil no Brasil, a gente consegue importar muita coisa, mas a gente não consegue evoluir aqui por falta de política pública. Quero muito que essa parte das políticas públicas se alinhem e que olhem para os pacientes antes de pensar em qualquer legalização recreacional, que já tem paciente precisando e faltando. Mas o que vislumbro é que o acesso realmente chegue para todos. O que está nas minhas mãos eu faço para facilitar, mas é ainda um caminho a se percorrer.
Confira a íntegra da entrevista:
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