O Dia Nacional do Samba, celebrado em 2 de dezembro, rememora o genuíno ritmo que molda a identidade brasileira. A data é um convite para pensar no lugar das mulheres em tão conhecido e amável patrimônio cultural, nascido da resistência negra.
O samba nasceu das rodas de terreiro, da herança africana, do ritmo que pulsava nos quintais e nas periferias urbanas, e, desde o início, teve a marca feminina cravada em sua trajetória. Ainda assim, a história oficial do samba, por muito tempo, insistiu em projetar holofotes quase exclusivamente sobre homens, relegando as mulheres a papéis secundários. Hoje, revisitar e dar luz à presença feminina no samba não é apenas um gesto de memória, mas, sim, um ato político, reparador e necessário.
Alguns nomes femininos surgem como monumentos vivos da cultura brasileira: Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Alcione, Beth Carvalho, Elza Soares, Leci Brandão. Cada uma delas não apenas cantou samba, tendo reinventado a forma de senti-lo.
Clementina de Jesus, foi a ponte entre o candomblé, o jongo, a memória do cativeiro e o samba urbano, já que ela não interpretava: ela encarnava o samba. Dona Ivone Lara foi a primeira mulher a assinar um samba-enredo no Brasil, pois os seus sambas eram poesia pura, delicados e firmes na mesma medida. Beth Carvalho foi madrinhas de muitos e muitas, e mostrava caminhos defendendo o samba como patrimônio coletivo. Elza Soares, talvez a mais singular de todas, como a “mulher do fim do mundo” transformou a dor em arma estética, tornando o samba um grito, uma denúncia e uma reinvenção permanente. Alcione, a “Marrom”, elevou o romantismo a um patamar que poucos alcançaram, com um timbre inconfundível. Leci Brandão, é uma compositora fina, cronista social e uma das vozes mais lúcidas na defesa das minorias.
A capacidade de sobreviver em um ambiente historicamente masculino une as mulheres sambistas. O samba, graças a elas, deixou de ser apenas ritmo; tornando-se discurso, memória, denúncia, afeto, luta. Em um país onde a desigualdade de gênero é gritante, celebrar essas sambistas é reconhecer que a cultura brasileira só existe plenamente quando as vozes femininas são ouvidas sem filtros.
O samba não surgiu no asfalto, nem na elite branca, que mais tarde tentou domesticá-lo. Ele brotou nas casas das tias baianas, nos terreiros e nos cortiços, que se perfaziam em espaços que a sociedade criminalizava, marginalizava e temia. Exaltar o samba é admitir, portanto, que a nossa maior expressão musical nasceu onde as pessoas menos queriam olhar. E talvez seja justamente esse o motivo de ser conhecido pela resistência e sobrevivência.
Ao longo do século XX, as rodas de samba foram reprimidas pela polícia, com sambistas perseguidos e instrumentos musicais apreendidos. O racismo tentou silenciar as pessoas protagonistas do movimento, mas não conseguiu. O samba representa mais do que a música: anseios da comunidade.
O Dia Nacional do Samba oportuniza um lugar para lembrar que não existe identidade brasileira sem reconhecer as culturas afro-brasileiras que a sustentam, e que as mulheres são primordiais nessa memória. Contudo, o mesmo país que exporta o samba como cartão-postal é o que negligencia políticas públicas para preservar suas raízes, deixando de proteger as mestras e mestres dessa cultura.
A história viva pode ser contada através do samba. Há esforço das comunidades tradicionais para a manutenção das rodas, que são ameaçadas pela política, pela violência urbana e pela ausência de incentivo.
A sambista Elza Soares eternizou: “Não quero pensar que minha vida tá acabando. Eu quero é mais um dia. E viver esse dia”.
Rosana Leite Antunes de Barros é defensora pública estadual, mestra em Sociologia pela UFMT.
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