De tempos em tempos, o gótico volta à superfície. A cada geração, porém, ele reaparece de cara nova —da melancolia de bandas como The Cure ao humor mórbido da Família Addams, especialmente com o revival atual da Netflix, protagonizado por Jenna Ortega no papel de Wandinha.
No TikTok, a estética "whimsigoth" mistura veludo, rendas e candelabros com filtros rosados, algo na linha da série "Sabrina, Aprendiz de Feiticeira", item cult dos anos 1990. E, no tapete vermelho, celebridades como Billie Eilish, Megan Fox e Lady Gaga desfilam referências "dark".
Desfiles recentes reforçam a tendência. Na Semana de Moda de Paris, em junho deste ano, Rick Owens transformou o Palais de Tokyo num cenário industrial distópico, com peças que mesclam ritual antigo e rebeldia futurista —casacos com capuz, botas altas, colares de corrente e colarinhos exagerados.
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Em 2024, para a temporada outono-inverno, a irlandesa Simone Rocha apresentou uma coleção em uma igreja medieval em Londres, com o ambiente perfumado por incenso e, na passarela, vestidos de corpete e casacos inspirados no luto da Rainha Vitória.
Já a etiqueta Vivienne Westwood —a mãe da estética punk e new wave—, na mesma temporada, utilizou veludo, tule e drapeados escuros, combinados a silhuetas românticas e peças de alfaiataria que evocam tanto a opulência histórica quanto uma sensação de desordem controlada.
Mas o que há, afinal, por trás dessa obsessão cíclica pelo sombrio? Para Cid Vale Ferreira, pesquisador de literatura gótica, o termo carrega séculos de reinterpretações. "Há muito tempo, ele deixou de designar apenas o que é ‘dos godos’. Durante o Renascimento, o termo passou a ser usado pejorativamente para rotular a arte medieval, vista como bárbara por se afastar dos ideais clássicos", diz.
Foi só no século 18, no Reino Unido, que o gótico ganhou novo valor. "Com o ‘Gothic Revival’, os britânicos passaram a exaltar justamente os excessos rejeitados pelos renascentistas —o sombrio, o grandioso, o terrível. A filosofia estética de Edmund Burke, que via no terror uma das fontes do sublime, deu base para o nascimento da literatura gótica."
É desse caldo que surgem as narrativas de castelos em ruínas, passagens secretas e paixões amaldiçoadas. "O gótico nasce como uma estética do sublime e se espalha pelas artes. Do teatro e da poesia ao cinema, à música e à moda, ele sobrevive ao longo dos séculos porque fala de algo essencial: o fascínio humano pelo medo, pelo estranho e pelo interdito", avalia Ferreira.
Esse trânsito entre linguagens, para ele, é parte da própria natureza do gótico.
"Não se trata de uma estética que começa na literatura e depois se expande. Ela é anterior à literatura gótica. A ideia de que o terror pode ser fonte de fruição estética é o que se infiltra nas artes, geração após geração."
A agenda de estreias de cinema traz sintomas disso, com os aguardados "Frankenstein", de Guillermo del Toro (nos cinemas em 27/10 e, na Netflix, em 7/11), e a nova adaptação de "O Morro dos Ventos Uivantes", romance de Emily Brontë, pelas mãos de Emerald Fennell (estreia prevista para fevereiro de 2026).
De fato, o gótico costuma florescer em tempos turbulentos. Como observa o teórico britânico Fred Botting, autor do livro "Gótico" (1996), a estética nasce e renasce sempre que o medo coletivo exige uma forma simbólica.
"O gótico oferece uma linguagem para lidar com o outro, o desconhecido e o reprimido", escreve.
Essa função simbólica explica também o poder de figuras como Tim Burton, talvez o maior tradutor contemporâneo do imaginário gótico. "Personagens como Edward Mãos de Tesoura e Lydia Deetz [de "Os Fantasmas se Divertem"] não são apenas esquisitos —são espelhos do espectador deslocado", comenta Ferreira. "Burton mostra que não há nada de errado em ser diferente. O ‘diferente’, em seu universo, é o gótico."
Mas o que acontece quando o gótico, antes símbolo de subversão, é reapropriado pela moda de luxo? Para o pesquisador, trata-se de um jogo antigo. "As marcas de alta-costura parasitam as subculturas desde sempre. Elas se alimentam das ruas, das minorias, dos porões alternativos e transformam tudo em tendência vendável. Isso não esvazia o gótico —apenas reafirma a distância entre o que é subcultura e o que é mercado."
Na atual temporada, essa distância parece se dissolver. A pesquisadora Alice Astudillo, estudante de moda da Faap e autora de um projeto de iniciação científica sobre moda gótica em São Paulo, explica que o retorno da estética dark às passarelas reflete tanto uma nostalgia visual quanto um sentimento social.
"A moda gótica fala sobre um tempo de crise e sobre a necessidade de criar refúgios simbólicos. O preto, o couro e as silhuetas dramáticas funcionam quase como armaduras contemporâneas", afirma.
Ela destaca que o gótico da geração Z tem códigos próprios. "Há um hibridismo forte, misturando o romântico, o fetichista, o punk e até o fairycore. Isso faz com que ele seja mais fluido e menos ligado a uma subcultura rígida, como foi nos anos 1980."
A pesquisadora observa também que o interesse pelo tema é crescente entre jovens. "Nas redes sociais, o gótico é reinterpretado de maneira mais acessível. A estética não precisa ser sombria o tempo todo —pode ser delicada, melancólica, até irônica."
A leitura é compartilhada pelo professor Márcio Banfi, da Faculdade Santa Marcelina. Para ele, o retorno do gótico faz parte do movimento natural da moda, que alterna ciclos estéticos e simbólicos.
"Normalmente, após períodos mais longos de uma tendência específica, é comum surgir outra que se contrapõe à anterior", lembra. "Esse movimento é realmente cíclico."
"O mais curioso, desta vez, é que essa nova tendência aparece em pleno verão", observa. "Acredito também que essa estética esteja ligada ao momento que o mundo está vivendo. Nesse caso, parece bem provável essa relação."
Banfi nota que a moda gótica atual se diferencia das versões anteriores pela mistura. "A moda gótica de hoje apresenta mais misturas —há a incorporação de elementos de outros estilos. Na verdade, cada vez que a tendência gótica retorna, ela se transforma conforme o contexto da época. Atualmente, há uma forte influência da série ‘Wandinha’."
Para ele, os trabalhos de Rick Owens e Simone Rocha, dois dos principais nomes associados ao estilo, mostram caminhos distintos. "Rick explora uma abordagem mais apocalíptica e agressiva, enquanto Simone aposta em uma vertente mais romântica do movimento", compara.
O professor acredita que o gótico atual, mais sofisticado e minimalista, revela um novo entendimento do "dark" na moda contemporânea. "Às vezes há o acréscimo de um corset. Outras vezes, uma camiseta rasgada, com um toque mais punk. Ou o uso abundante de rendas. O gótico atual, porém, parece trazer algo mais sofisticado e minimalista. As formas estão mais simples, quase como um ‘gótico de verão’."
O fenômeno, reforçado por ícones pop como Billie Eilish e Jenna Ortega, é também um espelho da ansiedade coletiva. "O gótico fala do medo, da diferença, daquilo que a sociedade tenta esconder —e é por isso que ele sempre volta", diz Ferreira. "Quando o mundo está em crise, o gótico floresce. Ele nos obriga a encarar o que preferimos manter nas sombras."
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