Três anos após o surto de contaminação do Zika vírus, transmitido pela picada do Aedes aegypti, mães de crianças com microcefalia, descobertas após terem contraído a doença lutam pela sobrevivência dos filhos.
Essas mulheres levam uma vida de renúncias, com ausência de atendimento gratuito de qualidade e falta de conscientização da sociedade, mas não perdem a esperança. Rose Vaz de Oliveira, 38, é mãe do Bernardo, de dois anos. Quando estava com três meses de gestação, percebeu que manchas vermelhas apareciam na pele dela.
A princípio, a médica achou que os sintomas eram decorrentes a uma alergia causada pelo repelente.
“Fiquei em dúvida e decidi trocar de médica. Ela disse que não era uma alergia, que de fato eu estava com Zika. Na época, o exame para confirmar custava cerca de mil reais, então fomos apenas fazendo o acompanhamento da gravidez”, lembrou.
Durante a gravidez, os exames que sucederam a doença apontavam o irremediável: a cabeça de Bernardo sempre era menor com relação ao corpo. Daquele dia em diante, a vida de Rose, que tem outros três filhos, precisou se adaptar às necessidades do mais novo membro da casa.
O começo da “vida de renúncias”, como as mães se referem à luta de criar os filhos com microcefalia, aconteceu quando Rose precisou deixar o emprego para se dedicar integralmente aos cuidados de Bernardo.
O menino precisa passar por sessões diárias de fisioterapia e fonoaudiologia, além do acompanhamento em outras especialidades médicas.
“É muito difícil você ver uma mãe que consegue trabalhar e ao mesmo tempo cuidar de um filho com microcefalia. É uma situação muito delicada”, contou.
Mães, cuidadoras, enfermeiras e terapeutas
Além dos cuidados de mãe, Rose também precisa se desdobrar para entender as condições médicas e acompanhar o tratamento de Bernardo.
Ela contou que, há dez dias, durante um cochilo, o menino começou a ficar extremamente pálido. O fato assustou a mãe que, que de tanto lidar com as situações médicas do filho, já sabia o que estava acontecendo.
“Falei para o meu outro filho que o Bernardo estava dessaturando, peguei na ponta do nariz dele e estava gelado. Ele precisou ficar dez dias internado”, lembrou.
Assim como Rose, Fernanda Pereira da Silva, de 32 anos, já reconhece cada um dos sintomas do filho Murilo, também de dois anos, diagnosticado com microcefalia após ela ser contaminada com o Zika vírus quando estava no sexto mês da gravidez.
Fernanda domina bem cada um dos termos médicos que envolvem a condição do filho. É ela quem precisa conter as crises convulsivas do menino.
Os benefícios de uma noite de sono de oito horas – mínimo normalmente indicado para uma pessoa adulta - também não fazem parte da rotina de Rose e Fernanda. Como a microcefalia também afeta o sono das crianças, o que acarreta em convulsões, as mães costumam passar a noite em claro, zelando pelo sono dos filhos.
“Tem noites em que ele [Murilo] acorda tendo uma crise convulsiva, então quase não durmo. Tem dias que vou dormir 2h e acordo 6h, mas nesse período acordo cinco vezes para vê-lo. É muito cansativo e a pior parte é que sempre que acontece a convulsão, isso gera uma consequência no cérebro da criança”, explicou Fernanda.
Na semana passada após uma convulsão, Fernanda contou que percebeu que as pernas de Murilo ficaram mais rígidas, assim como as mãos que se fecharam um pouco.
“Estamos aguardando a liberação do uso de canabidiol para o Murilo, porque as crises convulsivas dele são seguidas. Às vezes, são quatro no mesmo dia. A maioria acontece à noite. Às vezes, durmo segurando a mão dele”, contou.
Alair Ribeiro/MidiaNews
Rose teve Zika vírus quando estava no terceiro mês de gravidez
Muitos pais e mães de crianças atingidas com as consequências do Zika vírus durante a gestação têm depositado as esperanças no uso do canabidiol, óleo extraído da planta Cannabis sativa (maconha).
A substância é utilizada para o controle e combate de crises de epilepsia e convulsões.
Em 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou por unanimidade a reclassificação do canabidiol como medicamento de uso controlado. Antes a substância era proibida.
Comunicação entre mãe e filho
Tanto Murilo como Bernardo ainda não falaram as primeiras palavras, porém, as mães garantem que a comunicação familiar busca driblar as limitações das crianças.
“Uma pessoa de fora olha e pensa que estamos loucos, que o Murilo não entende e não sabe de nada. Mas eu sei quando ele está desconfortável, quando está com fome. O pai e a irmã dele também conseguem se comunicar com ele” – explicou.
Assim como ela, Rose contou que “entende” todas as necessidades de Bernardo através de olhares, expressões e sons emitidos pelo menino.
“Conheço ele pelo olhar, pelo jeito que ele me olha. O jeito que ele muda as expressões faciais também me faz saber quando está gostando ou não de algo. Vamos tentando descobrir”, contou Rose.
Fernanda explicou que a microcefalia não compromete apenas as vidas das crianças. As especificidades e dificuldades da doença também invadem o ambiente familiar como um todo. Além de Murilo, a mulher também é mãe de uma menina de dez anos, que não possui microcefalia.
"A doença compromete a vida do meu marido, da minha filha e a minha, além do Murilo. É renúncia em cima de renúncia. Hoje ele está bem, mas amanhã pode não estar. Então não temos uma rotina, não podemos marcar de fazer determinada coisa em um dia, porque pode ser que ele não esteja bem", contou.
No ano passado, por exemplo, o menino passou cerca de oito meses entre idas e vindas de internações. No total, ele chegou a passar pela Unidade de Terapia Intensiva (UTI) quatro vezes.
"É muito complicado, precisamos lidar com nossas emoções a todo momento. Preciso estar sempre calma, porque meu filho precisa de mim", disse Fernanda.
Atendimento pelo SUS
Fernanda e Rose possuem condições financeiras para arcarem com o pagamento de um plano de saúde particular pra os filhos. Porém, de acordo com a primeira, essa não é a realidade de outras mães que lutam para criar crianças com microcefalia.
Rose, por exemplo, teve o parto de Bernardo feito através do Sistema Único de Saúde (SUS). Ela deu à luz no Hospital Santa Helena, em Cuiabá. Da barriga da mãe, o bebê precisou ir direto para a UTI.
No momento do parto, os médicos fizeram um encaminhamento para que a criança fosse atendida por neurologista do SUS. Rose contou que, até hoje, o filho não foi chamado para a consulta.
Como sabia a delicada condição de saúde que o filho precisaria enfrentar, ela não esperou e contratou um plano de saúde para ter acesso ao atendimento médico.
Os custos para o tratamento de crianças com microcefalia são altos. Apenas o espessante - necessário para engrossar os alimentos - custa cerca de R$ 65. De acordo com Rose, 125 gramas da substância são suficientes apenas para 15 dias.
Por mês, a mulher estima que gasta cerca de mil reais entre medicamentos e fraldas. Além disso, as crianças também precisam de cadeiras de rodas, que, conforme Fernanda, não saiu por menos de R$ 16 mil.
Além disso, são recomendadas sessões com fisioterapeuta, fonoaudióloga e terapeuta ocupacional no mínimo três vezes por semana. Porém, Fernanda explicou que o atendimento oferecido pelo SUS não corresponde às necessidades das crianças.
Alair Ribeiro/MidiaNews
Mães contam que aprenderam a ler as necessidades dos filhos
As sessões gratuitas são oferecidas apenas uma vez por semana e durante trinta minutos.
"Considero um privilégio o Murilo ter acesso ao tratamento particular. Dependi do SUS durante quase um ano. Nessa época, ele ficou mais de 60 dias sem ter atendimento", disse.
Preconceito
Vez ou outra os olhares curiosos miram no filho de Rose, durante as vezes em que costuma levar o menino junto com ela ao mercado, por exemplo. Em uma das situações, outra crianças perguntou à mãe "que tipo de ser" era Bernardo. Na ocasião, o marido de Rose precisou intervir para acalmar os ânimos. Mas o acontecimento ficou marcado na memória da mãe.
"Os pais precisam ensinar as crianças sobre as limitações das pessoas. Um menino de 13 anos já consegue entender esse tipo de informação. Mas 'vira e mexe' ainda temos que passar por esse tipo de situação", lembrou.
Outra vez, quando Bernardo estava internado na UTI de um hospital particular de Cuiabá, uma enfermeira entrou no quarto e foi indelicada com a família. Cansada e preocupada com a saúde do filho, Rose ficou em silêncio diante do comentário maldoso.
"Ela [a enfermeira] entrou no quarto, olhou para o Bernardo e disse que ele estava nessa vida pagando os pecados que cometeu em uma vida passada. Depois a enfermeira me pediu desculpa. Me disseram que ela poderia ter sido demitida", contou Rose.
Grupo de acolhimento
Rose e Fernanda são mães da primeira geração de crianças diagnosticadas com microcefalia em Mato Grosso após contaminação do Zika vírus na gestação. Sem informações sobre o que de fato estava acontecendo durante o surto, elas contaram que precisaram descobrir na prática as necessidades dos filhos.
Fernanda, por exemplo, foi a primeira gestante de Pontes e Lacerda (a 483 km de Cuiabá), onde ela morava com a família, a ter o filho diagnosticado com microcefalia.
A solidão dessas mães fez com que ela criasse um grupo de acolhimento quando se mudou para Cuiabá - onde o filho teria acesso ao tratamento correto. Atualmente, Fernanda é presidente da Associação Unidas pelo Amor, que contabiliza cerca de 200 mães no Estado.
Para Rose, o grupo é uma forma de acolhimento para que as mães compartilhem experiências no tratamento da microcefalia.
"O grupo é muito bom, no começo me sentia muito perdida. Cheguei a achar que só meu filho estava passando por isso. Depois vi que não, que existem milhares de crianças com microcefalia. Não tínhamos contato. Víamos passando na televisão apenas", afirmou.
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