Cuiabá, Domingo, 15 de Junho de 2025
CONTRA O VÍCIO
15.06.2025 | 08h00 Tamanho do texto A- A+

Alcoólicos relatam trajetórias de queda e redenção com AA; veja

Três integrantes do Alcoólicos Anônimos de Cuiabá conversaram com o MidiaNews sobre suas experiências

Victor Ostetti/MidiaNews

Sofia contou que já sofreu abusos sexuais quando estava inconsciente

Sofia contou que já sofreu abusos sexuais quando estava inconsciente

ANGÉLICA CALLEJAS
DA REDAÇÃO

Junho é o mês de comemoração mundial da criação do Alcoólicos Anônimos, comunidade criada e mantida por voluntários que se auxiliam mutuamente na trajetória da sobriedade. Na última terça-feira (10), a entidade completou 90 anos.

 

Eu achei que nunca fosse parar. Mas encontrei amor no AA. Fui compreendida quando só esperava julgamento

Em alusão a essa importante data, que também traz conscientização sobre o consumo abusivo do álcool, o MidiaNews entrevistou três integrantes do Alcoólicos Anônimos, que compartilharam suas histórias de queda e como recuperação com apoio da irmandade.

 

Com perfis, idades e profissões diferentes, a funcionária pública Sofia, 35, o comunicólogo César, 71, e o advogado “N”, 52, como serão identificados, expuseram a cruel realidade das mazelas trazidas pelo alcoolismo, assim como o benefício da sobriedade.

 

Apesar de se diferenciarem em alguns pontos, suas histórias se cruzam na dor e no sofrimento que causaram não só a si, mas também a seus entes queridos. A semelhança entre as histórias também esbarra no sucesso da recuperação ao acreditarem e praticarem o regimento do AA. 

 

O alcoolismo na mulher

 

Sofia hoje é mãe de duas meninas, de 4 e 7 anos, quase a mesma idade de seu primeiro contato com a bebida alcoólica, aos cinco anos. Não bastando o trauma de consumir uma bebida entorpecente nessa tenra idade, Sofia também foi vítima de abuso sexual no prédio onde morava, por um adolescente.

 

Esse fato criminoso se repetiria outras vezes durante a adolescência dela, que também foi acompanhada por abuso de álcool e episódios de inconsciência, nos quais aconteciam os estupros. Sofia, que atualmente também trabalha como coordenadora do AA com mulheres, contou que esse é um dos aspectos que diferenciam o alcoolismo nas mulheres.

 

"Teve dias em que eu, adolescente, eu tive apagão [alcoólico], momentos que eu não lembrava o que eu fazia, e tive também outros dois casos de estupro. E nesses dois casos foi por conta da bebida, porque eu estava muito bêbada e não conseguia nem ficar de pé. Então, quem dirá, decidir alguma coisa", contou.

 

Já no início da vida adulta, a rotina com o álcool mudou de forma drástica devido ao consumo diário, unido à infelicidade de um casamento marcado por desrespeito, humilhações e violência. Porém, dessa vez, além dela, também se tornaram vítimas indiretas de seu abuso do álcool, as suas duas filhas.

 

Eu vi que aquele homem não queria minha recuperação. Ele não queria que eu vivesse

"Eu me casei, engravidei e não conseguia ficar sem, e não entendia o porquê. Se eu tomasse um gole que seja, não conseguia parar. Eu escondia bebida atrás da máquina de lavar, no meio das roupas no guarda-roupa, embaixo dos legumes, na geladeira. Eu dava um jeito de beber, e não importava o sabor, se estava quente, se estava gelada. Eu pegava a cerveja quente mesmo".

 

"Eu pedi ajuda porque já estava ficando bem dramático para elas [minhas filhas]. Porque elas choravam, tinham medo de mim, gritavam, pediam para eu parar de beber. E eu já tive até episódio de largá-las em casa. Eu realmente negligenciava elas".

 

A inconsciência e vulnerabilidade causadas pela embriaguez fizeram que com ela, por diversas vezes, deixasse suas filhas desassistidas. “Eu tinha apagões, fazia coisas que não lembrava no outro dia. Achava que era normal, só mais uma ‘exagerada’”, relembrou.

 

A decisão de parar de beber, a princípio, foi para tentar salvar o casamento. “Achei que se eu parasse, ele ia mudar. Que deixaria de ser violento, controlador. Que eu ia conseguir, enfim, ter a família perfeita que sonhava”, contou.

 

Mas a realidade não acompanhou a esperança. O marido se tornou ainda mais ciumento. Proibiu que ela fosse a reuniões de Alcoólicos Anônimos com homens. Sofia conseguiu frequentar apenas um grupo feminino, exclusivo para mulheres, mas foi o começo da mudança.

 

“Ele me levava até a porta, ficava esperando do lado de fora, como se estivesse me escoltando. Mas ali eu conheci uma coisa nova: o acolhimento. Ouvi mulheres falando o que eu sentia e, pela primeira vez, me vi num espelho sem julgamento”.

 

A convivência com outras mulheres que também lutavam contra o alcoolismo acendeu nela uma nova consciência: era impossível seguir se o ambiente seguisse doente. “Ele passava bebida no meu nariz e dizia: ‘Bebe só um pouco, ninguém precisa saber’. Eu vi que aquele homem não queria minha recuperação. Ele não queria que eu vivesse”.

 

O dia em que decidiu se separar foi, ao mesmo tempo, o mais difícil e o mais libertador. “Eu não sabia trocar uma resistência de chuveiro, carregar um garrafão de água. Mas eu fui. Peguei uma maquita emprestada, cortei mármore com as meninas da irmandade me apoiando. Chorei segurando o galão, porque percebi que eu podia viver sem precisar de um homem”.

 

Hoje, Sofia vive só com as filhas. Trabalha, paga suas contas, toma suas decisões. Vai a reuniões com frequência e presta serviço no grupo. “Eu me tornei uma mulher melhor. Mais forte, mais consciente. Mas não autossuficiente, porque eu preciso da irmandade. Lá é onde me abasteço”, disse.

 

E para quem ainda acha que não consegue, ela deixa um recado direto: “Eu achei que nunca fosse parar. Mas encontrei amor no AA. Fui compreendida quando só esperava julgamento. E é esse amor que salva. Se você precisa, procura a gente. Não importa a hora, a gente está aqui”.

 

 

"Eu pensei que ia morrer assim"

 

Tudo acontecia de bom na minha vida. [...] Foi nessa de comemorar, que eu exagerei

Para o comunicólogo César, que hoje tem 72 anos, o álcool parecia parte de uma celebração constante: conquistas profissionais, casamento, nascimento do filho, o primeiro carro, o primeiro apartamento. Tudo era motivo para brindar, até que ele se viu preso em uma vida marcada por excessos e perdas.

 

“A certa altura da minha vida, com 24, 25 anos, eu comecei a beber sem controle. O pouco de controle que eu tinha era porque eu estava na universidade, e minha mãe batia muito duro, meu pai, minha irmã, minha namorada. Tinham vários mecanismos que me seguravam”, relembra.

 

Mas o controle era frágil. O destilado, mais forte e presente nas saídas noturnas, se tornou companheiro constante de César. Em 1988, já em Cuiabá, ele começou a procurar ajuda, mas no lugar errado.

 

“Os médicos, a maioria que eu procurava, eles não sabiam que alcoolismo era doença. E aí, um dia, casualmente, eu achei uma sala de alcoólicos anônimos, e tudo começou a mudar”.

 

O momento de virada aconteceu durante o auge das realizações pessoais. Já estabelecido profissionalmente e com uma família, ele vivia o que, de fora, parecia um cenário perfeito.

 

César contou que a doença, não só para ele, mas geralmente, atinge os alcoólatras de forma progressiva: começa no fim de semana e, aos poucos, invade os outros dias da semana, até não deixar espaço para mais nada.

 

“Esse período que eu estava aqui, eu era de um cargo de chefia, tinha casado, tinha nascido o primeiro filho, tinha comprado o primeiro carro, o primeiro apartamento. Tudo acontecia de bom na minha vida. [...] Foi nessa de comemorar, que eu exagerei. [...] Esse período foi o período que eu temi muito não ter volta”.

 

Mesmo assim, levou tempo até dar os primeiros passos em direção à sobriedade. A semente da mudança veio de forma inesperada: um integrante do AA fez uma visita a um colega de trabalho, e ele acabou ouvindo, por educação, a pessoa falar sobre o programa.

 

“E aquilo ficou gravado, é a tal da semente lançada. E 12 meses depois, eu me lembrei, e eu fui na reunião. E foi, seguramente, a melhor coisa que aconteceu na minha vida eu ter achado o AA, e ele ter me encontrado”.

 

A chegada ao grupo foi impactante. Encontrou ali pessoas com histórias semelhantes, muitas delas marcadas pelo sofrimento dentro de hospitais psiquiátricos, mas também com uma paz que ele tanto desejava. “Eu quis ter aquilo que eles tinham: sobriedade, serenidade, paz de espírito, tranquilidade".

 

Por quê? Porque muitas vezes a gente bebeu para administrar essas emoções. E hoje a gente não bebe mais

Porém, a rotina com a bebida é algo difícil de deixar para trás, já que o alcoólatra a envolve em todos os aspectos de sua vida, na alegria, na tristeza, seja para comemorar ou afogar as mágoas. E assim ocorreram as recaídas.

 

“Um dia eu falei: ‘Ah, eu não vou mais lá. Só tem um bando de velhos’. Eu tinha 28 anos, e me achava. Pensava que podia ensinar aqueles velhos, quando na verdade eles que iriam me ensinar. Voltei pro grupo, tive outra recaída, para, em seguida, voltar no dia 3 de maio de 1982, e graças a Deus não tive mais recaída depois".

 

Lidar com as emoções, inclusive as positivas, foi um dos maiores desafios. A morte dos pais, o nascimento dos filhos, as conquistas da família, tudo vinha carregado de sentimentos intensos.

 

“Tem emoções que a gente tem dificuldade de lidar. Por quê? Porque muitas vezes a gente bebeu para administrar essas emoções. E hoje a gente não bebe mais”.

 

A reação da família, no início, foi de descrença. Nem mesmo após 15 anos sóbrio sua mãe acreditava totalmente na mudança. “Ela me chamou no cantinho assim e falou: ‘Verdade que você não bebe nem um golinho?’ Quer dizer, ela, depois de 15 anos, não confiava em mim.”

 

Hoje, ele sente que reconquistou esse vínculo, e mais do que isso, se reconstruiu como pessoa. A compulsão deu lugar à atenção, e o julgamento, à empatia.

 

“Sempre que estou numa rodinha que surge uma sessão de maleficência, eu procuro enxergar as qualidades daquela vítima. Isso melhorou muito o meu relacionamento com o mundo.”

 

Apesar da longa jornada de sobriedade, ele é categórico: ninguém está livre da recaída. “Não tem. Qualquer um pode recair a qualquer momento. Nós não temos a garantia da sobriedade. Ninguém está seguro.”

 

O que o mantém em pé é o compromisso diário com o programa e com o desejo genuíno de não voltar ao passado. Ele não enxerga sua história como exceção, mas como exemplo de que é possível. com ajuda, humildade e persistência.

 

“Na verdade, o programa não funciona sozinho. O programa funciona se eu quiser. Então, quando eu pratico, dá certo. [...] Procure ajuda, procure um grupo de AA, vá para uma reunião. Em AA sempre há esperança.”

 

 

 

"N" e a autodestruição

 

O alcoólico é um grande sonhador, cheio de projetos, mas que não leva nada adiante. Eu era assim. Colocava o álcool acima de tudo: lazer, família, trabalho

Aos 52 anos, o advogado identificado como “N” encara com serenidade o passado que carrega nas costas. Mais de duas décadas de luta contra o alcoolismo deixaram marcas profundas: acidentes de trânsito, um casamento desfeito, depressão e o afastamento da carreira.

 

Mas também abriram caminho para uma reconstrução pessoal baseada na honestidade com os próprios limites.

 

“Desde o início da minha vida no alcoolismo, eu já bebia de forma imoderada”, disse. O primeiro contato com o álcool aconteceu por volta dos 16 anos, mas os sinais de alerta vieram logo. “Eu já tinha porres gigantes, apagamentos... minha forma de beber era diferente dos meus amigos. Já ali eu percebi que tinha um problema”.

 

Mesmo sem beber todos os dias, "N" mantinha um padrão perigoso: bebedeiras intensas, sem controle, que duravam até a manhã seguinte. “Acordava sem saber como cheguei em casa. Era comum ter batido o carro e só descobrir depois. Por sorte, ou livramento de Deus, como eu acredito, nunca houve acidente grave, mas os danos materiais eram constantes”.

 

Ao longo do tempo, os estragos foram se acumulando. A esposa não suportou mais viver ao lado de um alcoólatra e o deixou. Com o divórcio, a bebida ganhou ainda mais espaço, e "N" entrou em uma espiral de autodestruição. Depressivo, isolado e afastado da advocacia, ele recusava qualquer tipo de ajuda oferecida pela família.

 

“Eu tinha um ego gigante, muita arrogância. Não aceitava que precisava de ajuda. Até que fui preso dirigindo embriagado. A notícia saiu na mídia, e um amigo de longa data me procurou no dia seguinte".

 

Esse reencontro foi o ponto de virada. Em vez de repreensões, o amigo apenas contou sua história de recuperação no AA. De pronto, "N" aceitou seu convite e foi a uma reunião. “Ouvi os relatos e me identifiquei na hora. Descobri que o alcoolismo é uma doença. Estar ali me encheu de esperança, e vi que era possível”.

 

A orientação dos mais experientes foi clara: antes de tentar consertar a vida profissional, financeira ou familiar, era preciso cuidar de si mesmo. “Frequentava reuniões todos os dias, às vezes mais de uma por dia. E, aos poucos, fui me sentindo útil de novo. Fui me sentindo um ser humano capaz”.

 

"N" também aprendeu a utilizar as ferramentas do programa: literatura, partilhas, a figura do padrinho, que é um membro do AA mais experiente que o acompanha na jornada, e o envolvimento nos serviços voluntários do grupo. “Devolver um pouco do que recebo de graça também me ajuda a continuar sóbrio”.

 

Desde que entrou no AA, "N" não teve recaídas. “Nunca mais senti vontade de beber. Mas não por mérito meu. É o resultado de voltar às reuniões, aceitar minha condição e me manter ativo no grupo.”

 

Hoje, sua vida é mais tranquila e centrada no presente. “O alcoólico é um grande sonhador, cheio de projetos, mas que não leva nada adiante. Eu era assim. Colocava o álcool acima de tudo: lazer, família, trabalho. Hoje, não tenho grandes sonhos, mas vivo um dia de cada vez. Isso basta”.

 

A relação com a família também mudou. “Eles sempre quiseram me ajudar, principalmente meus irmãos. Mas só quando eu aceitei que precisava de ajuda é que as coisas começaram a mudar.”

 

Questionado sobre a mensagem que gostaria de deixar a outras pessoas que enfrentam o alcoolismo, "N" respondeu com a mesma franqueza que manteve durante toda a conversa: foi no AA que restabeleceu sua vida.

 

“Alcoólicos Anônimos não é o único caminho, mas foi o único que funcionou pra mim. Eu tentei igrejas, médicos, conselhos... Só encontrei compreensão real, informação e ferramentas no AA. Se você tem problema com álcool, ou conhece alguém que tem, talvez essa seja a ajuda que está faltando.”

 

 

Os 12 passos

 

Criado em 1935, nos Estados Unidos, o AA é até hoje uma das principais referências no tratamento da dependência do álcool. Com reuniões espalhadas por mais de 180 países, inclusive no Brasil, o AA tem como base uma metodologia conhecida como os “12 Passos”, um conjunto de princípios espirituais e práticos que orientam os participantes em sua jornada de recuperação.

 

O programa propõe uma mudança de vida que vai além da simples abstinência. Trata-se de um processo de autoconhecimento, aceitação, reparação de danos e construção de uma nova forma de viver, mais equilibrada e conectada com o outro.


Veja os 12 passos:

 

1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool - que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas

 

2. Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade

 

3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos

 

4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos

 

5. Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas

 

6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter

 

7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições

 

8. Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados

 

9. Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem

 

10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente

 

11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade e relação a nós, e forças para realizar essa vontade

 

12. Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades.

 

Acolhimento

 

As reuniões do AA são gratuitas, voluntárias e mantêm o anonimato dos participantes como um de seus princípios fundamentais. Qualquer pessoa que deseje parar de beber pode participar, sem a necessidade de se identificar, pagar mensalidade ou seguir determinada religião. O espírito do grupo é de acolhimento, partilha e apoio mútuo.

 

Em Mato Grosso, há grupos atuantes em Cuiabá e em diversas cidades do interior. Para localizar uma reunião próxima ou obter mais informações sobre o programa, é possível acessar o site oficial: www.alcoolicosanonimos.org.br.

 

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