Cuiabá, Sábado, 20 de Setembro de 2025
INTOLERÂNCIA RELIGIOSA
21.01.2024 | 08h14 Tamanho do texto A- A+

"Ausência de conhecimento gera preconceito", diz pai de santo

Umbandista Cristian Siqueira conta que já sofreu intolerância em seu antigo local de trabalho

MidiaNews

O líder Cristian Siqueira em sua tenda de Umbanda em Cuiabá

O líder Cristian Siqueira em sua tenda de Umbanda em Cuiabá

ANGÉLICA CALLEJAS
DA REDAÇÃO

O Dia de Combate à Intolerância Religiosa, neste domingo (21), marca mais um ano na trajetória da luta pela aceitação da diversidade religiosa no Brasil, e principalmente contra a discriminação às religiões de matriz africana, cujas crenças e tradições ainda são alvo de hostilidade.

Existe muito preconceito. Preconceito é ação decorrente da falta de conhecimento

 

O pai de santo Cristian Siqueira, líder umbandista em Cuiabá, em entrevista ao MidiaNews, disse acreditar que essa batalha só poderá ser vencida espalhando conhecimento sobre o tema, que ainda é coberto por desinformação.

 

A intolerância religiosa muitas vezes é alimentada pela falta de conhecimento e pela perpetuação de estereótipos negativos, o que contribui para a criação de um ambiente hostil, no qual os praticantes são marginalizados e, em alguns casos, até mesmo violentados por suas crenças.

 

"Nós temos que divulgar as práticas verdadeiras porque os nossos inimigos criam práticas inexistentes. Eles criam ideias na cabeça deles e dão o nome de prática afro-religiosa na mídia, na TV, e as pessoas que não têm conhecimento acabam aceitando essas criações, idealizadas por pessoas que têm interesses muito particulares", disse Cristian.

 

O pai de santo também explicou um pouco sobre as particularidades da Umbanda e do Candomblé, duas religiões brasileiras com raízes africanas e suas práticas.

 

Leia os principais trechos da entrevista:

 

MidiaNews - Quais são as religiões de matriz africana mais praticadas em Mato Grosso?

 

Cristian Siqueira - A Umbanda e o Candomblé são as práticas mais presentes no estado.

 

MidiaNews - O senhor poderia falar um pouco sobre elas? O que prega, quais as práticas.

 

Cristian Siqueira - Bom, são práticas religiosas muito distintas. A Umbanda é uma prática mediúnica que se volta a buscar uma comunhão com os ancestrais divinizados, que se manifestam geralmente no terreiro, utilizando formas arquetípicas de crianças, caboclos e pais velhos.

 

Eles estão relacionados a momentos próprios da vida humana, que é o começo, a fase adulta e a fase madura, e que voltam ou que se manifestam buscando atender as necessidades da comunidade que busque essas práticas, através de aconselhamentos, conversas e até mesmo assistência social. 

 

O Candomblé, por sua vez, é um culto que tem na natureza a sua base fundamental de ação. É um culto voltado às divindades coletivas chamadas orixás. Então, eles têm um conjunto de práticas magísticas, um conjunto de conhecimentos ancestrais, que são mantidos, preservados e usados conforme a necessidade da comunidade que precisa desse auxílio.

 

MidiaNews - Como explicaria para um leigo a diferença entre Umbanda e Candomblé?

 

Cristian Siqueira - É muito difícil explicar a diferença da Umbanda para o candomblé, porque explicar a diferença dessas duas religiões é como tentar explicar a diferença do catolicismo da Igreja Católica Apostólica Romana e a Igreja Assembléia de Deus. O fundo é o cristialismo, mas a prática religiosa é muito diferente. 

 

O Candomblé e a Umbanda são religiões completamente diferentes. Falar sobre a diferença dessas práticas requer um aprofundamento teológico, mitológico, filosófico. Em todas essas duas porque são religiões distintas. O que elas têm de igual, entre várias coisas, é o fato de que elas recebem influência das práticas afro-religiosas.

 

Então, elas são ditas como práticas de matriz africana. Só que é importante frisar que mesmo o Candomblé e a Umbanda não são práticas africanas. Essas religiões não existem na África, elas são brasileiras e foram fortemente influenciadas pela prática afro-religiosa, mas não apenas, como também pelas práticas aborígenes, ou seja, dos povos originais locais.

 

Algumas práticas do Candomblé, da Umbanda em particular, ainda recebeu influência de europeus e orientais. Então, é muito complexo a gente tentar definir, porque cada casa tem uma história, tem uma visão, o que mostra a beleza dessas duas práticas religiosas que são muito integrativas. Elas mais integram do que eliminam.

 

MidiaNews - Ainda existe muito preconceito com as religiões de matrizes africanas?

 

Cristian Siqueira - Existe muito preconceito. Preconceito é ação decorrente da falta de conhecimento. Então, existe muito preconceito porque existe muita falta de conhecimento. A ausência de conhecimento se manifesta como preconceito. O preconceito existe não apenas em relação às práticas afro-religiosas, mas principalmente em relação a tudo que é do negro.

 

MidiaNews - E qual a razão, na sua opinião?

 

Cristian Siqueira - Se você pré-conceitua, você não conhece aquilo que você está conceituando, né? E nisso você corre o risco de conceituar algo de forma errada, de forma inadequada, de forma não real. E somado a isso, nós temos memórias muito marcantes da discriminação racial.

 

É ainda muito fresca em nossa cabeça, até mesmo essa que é decorrente do processo de escravidão no nosso país. Então, acaba se juntando ali vários elementos que, embora não se tratem da mesma natureza, estão relacionados no mesmo campo de reação, que é o negro brasileiro, se assim nós podemos dizer.

 

Então, esse preconceito se manifesta como uma falta de conhecimento, que acaba se formulando com base naquilo que é divulgado pelas mídias, às vezes pelas outras religiões, que assumem um comportamento também preconceituoso e racista e acaba se refletindo na sociedade.

 

MidiaNews - Pela sua experiência, em qual setor da sociedade o preconceito contra a umbanda é maior?

 

Cristian Siqueira - Minha resposta pode soar estranha, mas não existe um grupo específico onde o preconceito é maior. Porque o preconceito não é do grupo, o preconceito é da pessoa. O preconceito não é da sociedade, o preconceito é do cidadão. Não teria como eu falar, por exemplo, que a maior fonte de preconceito é a família, se os membros da família agem assim por conta de sua religião.

 

E talvez essa religião esteja sendo motivada ao preconceito por um partido político, e assim vai indo. Então, não tem como a gente definir o lugar da sociedade onde há mais preconceito. Nós temos uma visão maior em cima das religiões que pregam contra o negro, mas isso é porque as religiões, por exemplo, estão na TV. 

 

Mas isso não quer dizer que não aconteça ações de preconceito dentro do serviço, da família, das relações de amizade, do namoro e por assim em diante. Então, o preconceito, nós não podemos generalizar, porque ele é do indivíduo, não é do grupo. 

 

Porque quando a gente fala que ele é apenas do grupo, a gente tira a identidade do preconceito e isso acaba se tornando, em alguma medida, até justificável. “Ah, mas toda sociedade preconceitua”. Não é toda sociedade, são alguns cidadãos, e não teria como a gente falar onde esses cidadãos estão posicionados, porque eles são cidadãos.

 

Nessa sociedade, esses cidadãos estão em vários grupos da sociedade, e isso complica para a gente falar onde está o maior índice. Por exemplo, eu sou parte de uma família, sou parte de uma religião, sou parte de uma empresa, sou parte de uma instituição educacional, sou parte de um partido político. Então, o preconceito está na minha família, na religião, no partido político, ou está em mim?

 

E se ele está em mim, como que eu vou qualificar esse foco dentro das partes da sociedade? Porque não é a sociedade, é eu como indivíduo que teria o preconceito.

 

MidiaNews - Pessoas que seguem religiões africanas sofrem discriminação no trabalho, na escola?

 

Cristian Siqueira - No trabalho, principalmente. Existe o preconceito escolar, de fato, dos amiguinhos. Afinal, é de sociedade. Mas no trabalho, às vezes, me parece que é maior, porque como há um preconceito social com os membros das práticas afro-religiosas, há uma preocupação da empresa, às vezes, em não agredir - olha que palavra horrível para ser usada nesse contexto -, para não causar um incômodo no cliente. 

 

E, infelizmente essa preocupação acaba eliminando tudo aquilo que não é aceito pela sociedade, aquilo que não é comum. Então, nesse ínterim a gente acaba vendo que nas empresas há um discurso, às vezes, de alguns patrões em sentido a tirar os elementos religiosos e tudo aquilo que possa caracterizar uma relação com práticas não tão bem compreendidas pela sociedade.

 

MidiaNews - Como e quando o senhor conheceu a Umbanda?

 

Cristian Siqueira - Conheci a Umbanda na minha adolescência, aqui em Cuiabá. Já passei por algumas práticas religiosas. Já fui assembleiano, já fui espírita, eu fui católico. Passei por algumas práticas religiosas, até conhecer a Umbanda; e em uma certa época fui considerado o sacerdote umbandista mais jovem do Estado. Com 16 anos eu já tinha um um grupo umbandista aqui em Cuiabá.

 

Então, dali a cá a gente foi se aprofundando, estudando mais coisas e divulgando as práticas verdadeiras da religião. Porque ainda tem essa, nós temos que divulgar as práticas verdadeiras porque os nossos inimigos criam práticas inexistentes. Eles criam ideias na cabeça deles e dão o nome de prática afro-religiosa na mídia, na TV, e as pessoas que não têm conhecimento acabam aceitando essas criações, idealizadas por pessoas que têm interesses muito particulares.

Enzo Tres/MidiaNews

CRISTIAN SIQUEIRA

Cristian Siqueira: "A Umbanda me completa"

 

MidiaNews - Por que decidiu iniciar nessa religião?

 

Cristian Siqueira - Eu sou umbandista porque a Umbanda me completa. Ela me motiva a sonhar, trabalhar, criar um mundo melhor. Não a partir da sociedade, mas principalmente a partir de mim. A Umbanda permitiu me aceitar de alguma forma. Não que as outras religiões não façam isso, mas ela sempre foi um convite a um mergulho pessoal em mim mesmo.

 

Ela tem essa característica, enquanto todas as outras práticas religiosas nos convidam a olhar nossas atitudes em relação ao outro, o que nós fazemos, o que nós temos que deixar de fazer, a prática umbandista nos instiga a questionar o que nós fazemos, o que nós queremos fazer e quais as benesses disso. 

 

Então é uma prática religiosa que me trouxe autorresponsabilidade, e ser responsável pelas minhas ações a um nível quase que espiritual, me foi muito integrador, me foi muito revelador e me completou de muitas formas.

 

MidiaNews - Já sofreu algum tipo de preconceito por ser pai de santo? Como foi?

 

Cristian Siqueira - Nunca sofri nenhum preconceito por ser pai de santo, mas quando comecei na prática umbandista, sofri preconceito comportamental dentro de uma empresa em que eu trabalhava. Fui funcionário de uma empresa onde o nosso chefe era muito católico. 

 

Ele nunca agrediu frontalmente, mas ele sinalizava um certo incômodo por eu ser de uma prática espiritualista dentro da empresa, através de pregações, de repúdio às práticas religiosas, de livros que eram emprestados, de conteúdo de discurso contra essas práticas religiosas, reuniões da empresa com utilização de escrituras religiosas. 

 

E fui levando isso até um ponto em que entendi que aquilo não me deixava à vontade dentro da empresa para produzir frutos. Então, acabei pedindo para me desligar da empresa, porque me senti de alguma forma silenciado no que diz respeito a essa característica pessoal. Foi o único momento da minha vida em que tive um preconceito religioso, onde fui vítima disso.

 

MidiaNews - As redes sociais podem ser grandes aliadas da conscientização sobre a diversidade religiosa. Muitos umbandistas mostram suas rotinas no terreiro, as incorporações. O que acha disso?

 

Cristian Siqueira - Acho que é interessante a gente mostrar a nossa rotina no terreiro. Acho interessante mostrar o nosso dia a dia religioso. Nós não podemos esquecer que existe uma linha muito tênue no mundo digital, que é a banalização. Uma exposição pode sair muito facilmente de uma linha de exposição para a construção de uma ideia positiva para se tornar uma banalização. 

 

Então, indico que as pessoas tenham um certo cuidado, porque o excesso de exposição, e principalmente a exposição sem um prévio embasamento, pode causar banalização e, de alguma forma, contribuir para esse processo de preconceito. Porque se vejo uma coisa, por exemplo, no Instagram, e eu não tenho embasamento do que aquilo representa, não sei o que representa.

Eu acho que compartilhar o dia a dia é maravilhoso, mas é preciso prudência

 

E aquilo obviamente vai causar uma reação imediata em mim. Essa reação imediata sem a presença de um embasamento prévio daquilo é tido já como uma preconceituação. Então, a minha preocupação com as redes não é compartilhar o dia a dia religioso, a minha preocupação é expor coisas que as pessoas não têm embasamento para poderem entender.

 

Uma pessoa que não entende nada do catolicismo, se vê um católico ajoelhado rezando com uma imagem na frente, pode facilmente, se ele não entender a doutrina católica, ele pode dizer com facilidade que a pessoa está adorando a imagem e usar esse fato ilhado como uma frente de ameaça. Na verdade, o católico não está adorando o santo, mas qual é a causa de tudo isso? A falta de embasamento prévio e a divulgação de uma informação, de uma imagem ilhada.

 

Então, vamos voltar ao preconceito. O preconceito é causado pela falta de conhecimento. Tudo o que eu exponho precisa ser explicado. As pessoas que vão ver o que eu estou expondo estão prontas para ouvir a minha explicação? Ou elas estão prontas apenas para olhar aquilo que as interessa segundo as suas próprias ideias?

 

Então, eu acho que compartilhar o dia a dia é maravilhoso, mas é preciso prudência, porque senão a gente acaba mais atrapalhando do que ajudando o contexto geral.

 

MidiaNews - Aliás, por que o nome terreiro?

 

Cristian Siqueira - Terreiro é uma palavra portuguesa, de Portugal, quer dizer um terreno, porque na origem os ritos, os umbandistas, os ritos candomblecistas, eles não tinham locais específicos, eles aconteciam na natureza, num campo que tinha sido aberto, limpo para isso. Então, quando diz, vamos lá no terreiro, quer dizer, vamos lá no lugar de terra onde acontece o trabalho. Isso é uma palavra portuguesa, quer dizer um terreno desocupado.

 

MidiaNews - Este domingo é o Dia de Combate à Intolerância Religiosa. Qual recado daria para as pessoas que ainda vêem a umbanda com maus olhos?

 

Cristian Siqueira - O meu recado não se limita à prática umbandista. O meu recado é aberto a toda a sociedade, a tudo aquilo que é desconhecido. Nós vivemos uma época onde o conhecimento é oferecido de muitas formas. E nós precisamos tomar cuidado até mesmo com o conhecimento que nos é oferecido, pois é tanta fonte de informação que a gente acaba bebendo, às vezes, em fontes não adequadas.

 

Tudo aquilo que é desconhecido é para o ser humano uma fonte de risco e de perigo. É preciso conhecer para se alcançar a segurança. Isso é em relação às teologias, às teorias, às religiões, mas a nível social isso é muito importante para as minorias. Porque, exatamente porque são minorias, às vezes esses grupos não têm voz e acabam sendo vítimas de ações agressivas e criminosas.

 

Eu convido as pessoas a conhecerem a prática de verdade. Não é preciso frequentar se não se sentir à vontade, mas é inaceitável falar de algo que não se conhece. É inaceitável. Isso mostra uma regressão pessoal muito grande. Então, o meu maior convite é que as pessoas conheçam aquilo que lhes é desconhecido em todos os âmbitos da vida.

 

Porque apenas o conhecimento pode eliminar o preconceito que gera a intolerância religiosa. E se o conhecimento desimbuído de lados, de interesses, não for suficiente para eliminar o preconceito, eu indico que as pessoas estudem as leis jurídicas do nosso país. Porque aquilo que nós não conseguimos no diálogo, infelizmente, nós precisamos conseguir com a utilização dos nossos direitos jurídicos próprios da nossa nação.

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