Coleção de advogado reúne preciosidades da arte de Mato Grosso

O advogado Murilo Espínola deixou ainda jovem o Paraná, seu estado natal, em busca de novos caminhos em Mato Grosso. Encantado pelo verde intenso da flora local, descobriu um fascínio pelas cores que, com o tempo, se transformaria em amor pela arte, fazendo dele um dos maiores colecionadores de obras mato-grossenses.

Eu não tinha noção do tamanho da representatividade do meu acervo, porque isso foi sendo adquirido ao longo dos anos

Uma das joias do acervo são os esboços que o artista plástico Humberto Espíndola fez para a obra “Bovinocultura”, painel histórico que enriquece a fachada do Palácio Paiaguás, sede do Governo do Estado. 

Com quase 60 anos dedicados ao colecionismo, Murilo reúne milhares de obras em seu acervo particular. Esculturas em madeira, lata, porcelana e telas em tecido compõem uma coleção que preserva a história da criação artística dos principais nomes das artes plásticas de Mato Grosso.

Seu acervo inclui esculturas de Benedito Nunes, vasos e telas criados por Adir Sodré, Dalva de Barros, João Sebastião, Irigaray; pinturas com pigmentos naturais de Vitória Basaia, além de esboços históricos do painel do artista Humberto Espíndola.

“Eu não tinha noção do tamanho da representatividade do meu acervo, porque isso foi sendo adquirido ao longo dos anos. Não foi algo feito por impulso, de comprar por comprar. Mas eu, realmente, não tinha dimensão do tamanho que ele tomou, da coleção que se formou e que hoje eu tenho”, relatou ao MidiaNews.

O Adir não gostava de ser cobrado pelas encomendas. Você fazia uma encomenda para ele, ele recebia, mas não gostava de ser pressionado

As obras reunidas por Murilo têm papel importante na construção da memória histórica, cultural e política de Mato Grosso. Uma das mais simbólicas está exposta na parede branca de sua galeria particular: um esboço do painel “Bovinocultura”, que, após concluído, passou a cobrir a fachada externa do Palácio Paiaguás, sede do governo estadual.

A peça, criada por seu amigo Humberto Espíndola, é um dos principais símbolos visuais do Estado e representa, em forma de arte, o protagonismo da pecuária na identidade e na economia local.

“Aqui são aquelas carrancas que a gente tem lá do painel do Paiaguás”, relata ele ao mostrar o primeiro rascunho do que viria a se tornar o painel.

A história, reproduzida por Espínola a partir do relato de Humberto, narra o passo a passo até a criação final da obra.

Yasmin Silva/MidiaNews

Esboços do painel "Bovinucultura"

No início, eram três carrancas coloridas depois, passou a ser um desenho de três carrancas em vermelho e azul. No entanto, como a obra seria produzida durante o regime militar, o vermelho foi substituído pelo amarelo, e os elementos ganharam tons de verde, representando as cores da bandeira estadual.

“Fizeram este aqui com a ideia do vermelho, que representa calor, terra, sol e força, e do azul, que simboliza o céu. Mas era 1974, época da ditadura militar, e o vermelho estava associado ao comunismo. Então fizeram outra versão com as cores da bandeira de Mato Grosso. Ficou esta, aprovada”, conta ele, enquanto mostra as peças.

O espaço como valorização da arte

Com a grande quantidade de obras em sua coleção, o advogado relata que seu acervo pode ser considerado um pequeno museu de arte mato-grossense em seu conteúdo.

Nós não temos, em uma capital do Estado pujante como o Mato Grosso, um museu que esteja aberto, que esteja em atividade

Apesar de não possuir um espaço físico para exposição e visitação das obras, o acervo também contribui para a valorização da arte mato-grossense por meio da seleção e empréstimo de peças para exposições, galerias, produção de livros de arte nacional e museus por todo o país.

Recentemente, cerca de 50 obras do colecionador foram emprestadas para a exposição “Lírica, Crítica e Solar: artes visuais em Mato Grosso”, exposta no Museu Nacional da República, em Brasília.

A exposição, composta por 200 obras, reuniu 50 artistas da vanguarda e da nova geração da arte mato-grossense. Apesar da importância da arte local, Murilo ressalta a falta de incentivo à cultura e de um espaço para troca de conhecimento artístico no Estado.

“. Nós temos um museu de artes sacras ali, que desenvolveu esse papel ultimaNós não temos, em uma capital do Estado pujante como o Mato Grosso, um museu que esteja aberto, que esteja em atividademente, mas não tem nenhum [focado em arte de Mato Grosso]”, disse. 

Yasmin Silva/MidiaNews

Escultura do Rei Pelé, criado a partir de lata de Coca-Cola

É nesse contexto de desvalorização do setor, especialmente por parte de instituições públicas, que Murilo reflete sobre a importância de criar espaços voltados à formação e visibilidade de novos artistas, uma percepção que, segundo ele, foi aprofundada após a pandemia, que exigiu o isolamento social.

“Até a pandemia, nós tínhamos os escritórios aqui na própria São Sebastião. Tínhamos o costume de receber os artistas ali aos sábados. Eles traziam esses quadros, essas obras, para que pudéssemos bater papo, conversar e apreciar essa exposição dentro de casa”, relatou. 

Colecionismo

Foi por meio desse contato com os artistas que ele desenvolveu a paixão pelo colecionismo de obras plásticas.

Com a experiência de colecionar, desde criança, botões, latas de refrigerante, selos, entre outros objetos, ele adquiriu, em meados dos anos 1980, uma de suas primeiras obras no Estado: uma pintura de Adir Sodré.

“Aqui em Cuiabá, em Mato Grosso, comecei a adquirir obras em 1987. Grande parte do acervo é de artistas mato-grossenses. Tenho algumas peças de fora, mas, ao me aprofundar, decidi me dedicar e focar em Mato Grosso. É a nossa arte, a nossa cultura”, ressaltou.

Sem dinheiro para comprar a moldura, guardou o quadro, que, com o passar dos anos, se tornou uma de suas principais relíquias afetivas e hoje relembra como símbolo do início da amizade com o artista.

“Tenho muitas histórias que estão ligadas aos artistas desse tempo todo, uma amizade e um carinho muito grande. O Adir não gostava de ser cobrado pelas encomendas. Você fazia uma encomenda para ele, ele recebia, mas não gostava de ser pressionado. Eu acabava cobrando bastante, e ele não curtia muito isso. Eu até perturbava um pouco nessas situações. Ele brincava porque sou advogado de formação, então ele falava que eu entendia de leis, mas que não tinha uma sensibilidade para as artes”, relembra ele. 

Yasmin Silva/MidiaNews

Murilo Espínola mostrando parte do acervo

Com o tempo, peças de suas antigas coleções também se transformaram em arte, como a escultura em latas do rei Pelé, criada a partir de latas de Coca-Cola que Murilo guardava.

A obra foi encomendada ao artista Benedito Nunes em 2017, e Murilo se orgulha de ter sido o incentivador de sua criação

Atualmente, Murilo ainda mantém contato com os artistas e procura se manter atualizado sobre o mercado de arte mato-grossense, não pelo valor comercial das obras, mas pelo que elas representam para a história do Estado, dos artistas e dele próprio.