“Foi como uma tempestade de vento forte, naquelas que você procura se segurar em alguma coisa e não tem nada”. Assim o servidor público Ubiray Félix se sentiu ao descobrir que sua filha, na verdade, se via como um menino.
Há três anos Ubiracy conheceu Valentim, de 25 anos, quando este se assumiu homem transexual para o pai. No primeiro momento, o servidor se viu devastado ao perder a filha. Quase sem palavras, Félix precisou respirar fundo para relembrar o luto que passou.
“É um choque. Fiquei perdido. Chamam isso de luto. Eu fiquei de luto uns 30 dias”, expôs.
Ubiracy, de 53 anos, conta que sempre teve uma relação muito forte com a filha e se orgulha de ter sido um pai presente.
Por isso ele diz que foi tão difícil de entender o momento que ele passava. O servidor ficou durante cerca de trinta dias sem conseguir conversar com o filho e até mesmo olhar em seus olhos.
“Eu não conseguia amadurecer meus pensamentos. Eu não sabia o que falar também, me faltavam palavras. Tinha medo de magoá-lo”, disse.
Porém, em meio a tantas dúvidas, Ubiracy sempre teve a segurança de que Valentim era sangue do seu sangue.
“A única certeza que eu tinha na vida é que ele é meu filho, não tenho como mudar isso”, afirma o servidor público.
O pai revela que não tinha preconceito, mas não havia passado por situações parecidas na família. Ele precisou refletir muito para conseguir aceitar que sua filha não se identificava como mulher.
Ele também passou a se questionar por não ter percebido a dor que seu filho carregava e as inseguranças que passou para se assumir publicamente.
“É uma dor muito grande que a pessoa carrega. E a coragem que ele teve de falar e tomar essa decisão publicamente, eu fiquei pensando: quanto tempo de sofrimento ele teve e nós, pais, não percebemos?”, relata Félix.
Ubiracy também nunca notou nenhum comportamento estranho na infância. Ele só foi perceber a forte identificação com o pai depois da revelação.
“Nunca notei nada. Sempre tive uma aproximação muito grande com o Valentim. Depois que chega a fase de transformação, você faz uma retrospectiva. Você começa a perceber que o Valentim calçava meus sapatos, vestia minhas calças, colocava minha camisa, usava meu terno, pegava a minha pasta e falava assim: eu sou o Ubiracy trabalhador”, disse.
Nesse processo, Ubiracy percebeu que seu amor pelo filho continuava o mesmo e que, mais do que nunca, precisava apoiá-lo.
“Depois que eu aceitei percebi o quanto eu precisava ajudá-lo incluindo-o. Incluir na família, na relação pai e filho e, principalmente, na relação ser humano. Ele é um ser humano e precisa ser acolhido e amado”.
Félix então sentou com seu filho para uma longa conversa. Nesse momento, ele se dispôs a construir um novo relacionamento com o filho que acabara de ganhar. A cada dia Ubiracy diz que aprende um pouco mais sobre o Valentim e a nova relação.
“Eu tenho um passado com a minha filha e não tenho um passado com o Valentim. Há três anos estamos construindo um relacionamento de respeito, amor. Mas eu preciso vivenciar um pouco mais”, explica.
Alair Ribeiro/MidiaNews
Ubiracy Felix relatou como é a relação dele com o filho, Valentim
Aprendizados
Antes de se encontrar como Valentim, ele precisou passar por vários processos em sua vida que nunca tinham sucesso. Era como se ele precisasse se achar para sua vida seguir o fluxo correto.
O jovem, hoje com 28 anos, já estudou jornalismo em Salvador (BA), mas não chegou a concluir o curso. Foi quando se identificou com os Arautos do Evangelho – uma associação da igreja católica – e decidiu ser freira.
Após um ano e dois meses, Valentim – ainda mulher – teve um problema no joelho e precisou voltar para Cuiabá. Após o tratamento, tentou voltar a ser freira, porém não foi mais aceito.
Então decidiu retornar para Salvador. Após um tempo, surgiu a oportunidade de estudar na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), em Cuiabá.
Na UFMT foi o momento em que percebeu que o que sentia de diferença desde a infância se confirmou. Foi quando percebeu que deveria ser homem, não mulher.
“Foi quando ele veio, com 24 anos, declarar para nós. Foi nesse momento que eu fiquei sabendo oficialmente a situação”, relembrou o servidor.
A partir disso, uma nova relação precisou ser construída entre pai e filho. O que antes havia tratamentos e brincadeiras mais delicadas, hoje Ubiracy se esforça para mudar seu olhar.
“Estou aprendendo ainda. Tomando o cuidado de não falar “ela”. Agora é brincadeira de menino, tratar como um homem. Eu incentivo porque ele busca comigo esse incentivo”, explicou.
A construção dessa relação também mostrou para os dois que um pode se apoiar no outro. Ubiracy avalia que agora os dois estão muito mais fortes e o amor continua intenso.
“Valentim é o filho amado que não deixou de ser o mesmo filho de antes. A opção pertence a ele. Mas o amor de pai e mãe pertence a nós. Por isso que quando as pessoas falam da gente, falam dessa relação que eu tenho com ele, que é verdadeira”, diz muito emocionado.
Hoje, Valentim é formado em Rádio e TV pela UFMT e estuda para concurso público para seguir os passos do pai, servidor.
Vida de preconceitos
Falar de violência não é uma tarefa fácil, mas o servidor contém as lágrimas e se posta a explicar as dificuldades. Ubiracy vivencia, de forma indireta, os preconceitos com seu filho. A sociedade tem sido um obstáculo mais forte do que a família.
“A sociedade ainda é uma das maiores barreiras que a gente encontra. A família nem tanto. A sociedade ainda não está preparada e é normal isso”.
Para ele, um dos principais problemas enfrentados por transexuais é a falta de políticas públicas.
“Não temos políticas públicas voltadas para atendimento a esse novo conceito de sociedade e pessoas. Nós temos muitos discursos, mas estamos calcando espaços”, apontou.
O servidor acredita que o preconceito é intensificado também pelos governantes que detêm o poder de mudar a forma que a sociedade se estrutura.
“Quem vai distribuir é que tem o olhar de preconceito. Quem exerce essa devolução dos impostos é quem cria o preconceito”, afirmou ele.
Uma das maiores dificuldades encontradas por Valentim e Ubiracy foi o registro no nome social. O pai revelou que passou dois anos para que seu filho conseguisse mudar o nome.
Segundo o servidor, mudar o nome é importante para pessoas trans conseguirem se identificar. Além de ser uma tortura psicológica ser chamado por um nome que relembra os momentos de dor.
“A agonia que ele tem quando apresenta o nome de batismo e as pessoas não conseguem identificar, isso o abala”.
Ubiracy informou que esse processo é muito burocrático e exige diversos documentos desnecessários. Eles também já precisaram ouvir a negativa de juízes por preconceito.
“Era inconcebível a gente ouvir, na Magistratura, juízes dizendo que na Vara em que ele trabalhava isso jamais ia acontecer”, denuncia.
Foram dois anos de muito desgaste e dor, mas hoje o nome social e o gênero podem ser trocados mais facilmente pelo Conselho Nacional de Justiça, que regulamentou o processo no início deste ano.
Ele também diz que Mato Grosso ainda é muito conservadora para aceitar a comunidade LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e outros).
“O Mato Grosso tem sua cultura voltada ao chamado calibre 44, que é a espingarda. Muitos tradicionalistas aqui, apesar de vários imigrantes, ainda estão com essa cultura de resolver na bala”, disse Félix.
Apesar disso, Ubiracy acredita que a sociedade está caminhando para a transformação e vê o futuro de maneira positiva para a comunidade LGBT.
“As pessoas tem dificuldade de aceitar por nós termos alguns padrões sociais. E a mudança de paradigmas acontece há algum tempo e naturalmente”, disse.
Para ele, as pessoas precisam de mais paciência. E a principal chave para combater o preconceito é o amor.
“O preconceito é vencido através do amor, não tem outro ato. Enquanto a pessoa não souber amar e respeitar, ela vai ser preconceituosa”, explicou.
Alair Ribeiro/MidiaNews
Pai se orgulha de relação construída com filho após jovem se assumir trans
Informação
Ubiracy afirma que a mídia tem um papel muito importante para difundir informações sobre a transexualidade e comemora a liberdade de poder discutir assuntos considerados “tabus”.
“A informação que temos hoje é poderosa e a mídia tem conseguido alcançar muitas pessoas. Até pouco tempo não tínhamos essa liberdade”.
Mesmo a informação sendo colocada de maneira ficcional, como em novelas, o debate tem sido feito, segundo o servidor.
“A informação quando vem por meio de novela, tem que ter cuidado porque é ficção. Mas foi produtivo porque o tema foi jogado e gerou discussões, trouxe informações muito importantes”, relatou.
“Mas é válido porque traz o tema a nível nacional. As pessoas comentam principalmente a das classes mais populares. Isso gera na sociedade um novo movimento”, completou o pai.
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21 Comentário(s).
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paulo.santos 14.08.18 09h13 | ||||
Conheci Bira no saudoso Colégio PRES e reencontrei com ele aqui no Tribunal. Pessoa impar, sem igual, muito querido por todos. Exemplo de pai! | ||||
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Fabiana 14.08.18 05h40 | ||||
Que belo exemplo de aceitação e compreensão. Aquilo que não podemos explicar se resolve com amor! Parabéns ao pai e a mãe e principalmente ao Valentim. Desejo alegrias. Que bela matéria !!!! | ||||
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daniel mattosalem macedo 13.08.18 16h41 | ||||
Grande Capitao, Grande chefe de familia, pessoa simplesmente admiravel, em que venho convivendo com você, (Lò) em nosso time o Sao Cristovão, venho ouvindo e admirando, em cada pre leção, sucesso amigo voce e sua familia sao merecedores pelo grande exemplo de respeito e companheirismo, Parabens a familia. | ||||
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Deodete Roder 13.08.18 12h18 | ||||
Família linda, exemplo de amor verdadeiro. | ||||
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Luis 13.08.18 11h48 | ||||
Nosso amigo Bira, líder na comunidade católica. Parabéns pela superação. | ||||
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