"Todo amor que houver nessa vida" ou o "Tempo não para". Lucinha Araújo ainda está em dúvida em qual nome dar para o seu terceiro livro que contará a história dos 20 anos da Sociedade Viva Cazuza. Mas, independente da escolha de uma das duas músicas mais famosas do seu filho falecido em 1990 vítima da Aids para o título, ela tem certeza de que toda a renda obtida com a venda da publicação será revertida para a ONG (organização não-governamental), que atende crianças e adolescentes com o vírus HIV.
Lá se vão duas décadas e esta mulher de 74 anos continua firme na sua missão de garantir melhores condições de vida e de tratamento para os pequenos moradores do casarão azul que ocupa o número 39 da rua Pinheiro Machado, em Laranjeiras, na zona sul do Rio de Janeiro. O grande problema é que há oito anos a Sociedade Viva Cazuza passa por uma crise financeira e tem fechado parte de suas contas no vermelho.
Os direitos autorais das obras do Cazuza já não garantem a cobertura completa das despesas da instituição, que tem 19 internos e 24 funcionários remunerados. Com um custo mensal em torno de R$ 100 mil, a sociedade está à espera de boas novas para o ano de 2011. No início de dezembro, Lucinha teve um encontro com o prefeito Eduardo Paes (PMDB), que prometeu ajudá-la. Mas enquanto a ajuda não vem, ela ainda convive com a falta de dinheiro.
- As nossas dificuldades são e sempre foram todas de origem financeira. A gente vive basicamente dos direitos autorais do Cazuza, que com o tempo diminuiu muito e com a pirataria diminuiu ainda mais. Em 2004, o filme do Cazuza nos deu boa renda e vivemos dois anos só com isso, mas é muito difícil.
Só as mães são felizes
A princípio, a Sociedade Viva Cazuza nasceu para dar apoio aos pacientes com Aids do Hospital Graffée e Guinle, na Tijuca, zona norte do Rio. Cansada de assistir várias crianças com a doença serem abandonadas pelas famílias que tinham vergonha, Lucinha resolveu criar a casa em 1994 com os mimos e os cuidados que toda criança merece. Lucinha passou a dedicar todo o seu tempo e amor de mãe, antes exclusivo para o seu único filho Cazuza, a meninos e meninas carentes.
- A Aids é uma doença que contamina todo mundo que está em volta. Mas é um contágio positivo, que não nos deixa indiferente diante do sofrimento das pessoas que têm essa doença. Quando meu filho morreu, prometi que não falaria mais sobre HIV na vida. Mas não adiantou, já estava contaminada.
O carinho e dedicação na Sociedade Viva Cazuza são realmente contagiantes. A garotada brinca e se diverte por todos os cantos da casa, que conserva a alegria e a vitalidade que eram típicas da personalidade do filho de Lucinha. E por falar nele, quadros e fotos com o rosto do poeta exagerado decoram os principais cômodos do casarão. Todos que lá moram conhecem a história e as músicas do polêmico roqueiro.
- Eles sabem que o Cazuza foi meu filho e que era um cantor. Os mais velhos viram o filme e já leram os livros. Mas eles sabem que a casa não existe só por causa do Cazuza. Todas elas entendem o porquê de estarem aqui, não escondo nada deles.
Sonhos e dor lado a lado
O morador mais antigo da Sociedade Viva Cazuza tem 16 anos. Ele chegou na instituição com apenas três meses de idade. O rapaz tem uma namorada, que não tem HIV, e está cursando o ensino técnico. Lucinha já tem planos para quando ele se tornar maior de idade
- Ele não tem para onde ir. Então, eu vou comprar um apartamento e vou colocar ele para morar com o outro menino daqui que agora está com 15 anos. Vou ficar de olho nos dois o tempo todo.
É por essas e outras que a criançada chama Lucinha de mãe. A mais nova moradora também chegou à instituição com três meses e virou o xodó da casa.
- A gente nunca diz "não" para nenhuma criança. Eles podem entrar através do juizado de menores ou trazidos por algum familiar. Eu tenho a guarda de todos eles.
Quando eles chegam na fase escolar, Lucinha bate na porta de escolas particulares do bairro de Laranjeiras para conseguir bolsas de estudos. Ela garante que todos são bem recebidos pelos professores e colegas de turma.
- Nós vamos à escola antes do início das aulas para dar palestras aos pais e professores. E os meus meninos e meninas não reclamam de preconceito. Na última festa de Natal vieram uns 15 amiguinhos da escola.
Desde que foi fundada a casa de apoio em 1994, 69 crianças e adolescentes passaram pela Sociedade Viva Cazuza. E há 14 anos a instituição não perdia uma criança vítima de Aids. Mas, no último dia 12, Lucinha sentiu novamente a dor de perder um filho para o vírus HIV. Uma menina de 16 anos não resistiu a uma gripe e faleceu no hospital Souza Aguiar, no Centro do Rio.
- Tinha esquecido que essa doença matava.
Maior abandonado
A Sociedade Viva Cazuza também atende pacientes adultos com HIV, na sua maioria analfabetos, que são cadastrados e mensalmente recebem cesta básica e apoio no tratamento. O Programa de Adesão e Tratamento da ONG acompanha 140 pessoas que têm dificuldades para entender a prescrição médica.
Um cartão colorido distribuído pela instituição ajuda os pacientes analfabetos a identificar os horários e os remédios que devem ser tomados durante o tratamento. Lucinha explica que a disciplina é fundamental para o controle da doença.
- Se o paciente não toma a medicação corretamente, ele fica vulnerável às doenças oportunistas que fragilizam o HIV positivo. A Sociedade Viva Cazuza incentiva a disciplina do tratamento. O paciente só recebe a cesta básica se tiver em dia com os remédios e as consultas médicas.
O poeta não morreu
Cazuza morreu aos 32 anos em 7 de julho de 1990 depois lutar intensamente contra o vírus HIV. Uma das personalidades mais marcantes da década de 80, Agenor Miranda de Araújo Neto cravou seu codinome entre as grandes estrelas da música brasileira. Ele foi o primeiro artista brasileiro a admitir publicamente que estava com Aids. Lucinha conta que não queria que o filho revelasse publicamente a sua doença.
- Tinha medo do preconceito. Mas ele me dizia: 'mãe, o homem que canta Brasil, mostra a sua cara não pode esconder a sua numa hora dessas. Nunca mais vão acreditar no que eu canto. Não aguento mais esse peso'.
Para Lucinha, Cazuza não deixou apenas uma herança de belas canções, mas um legado de coragem que ajudou muitos soropositivos brasileiros.
- Ele não foi só aquela a figura polêmica que viveu loucamente. Ele foi um homem de coragem numa época em que havia muito preconceito em relação a Aids. Cazuza viveu pouco, mas viveu seus curtos 32 anos a mil.
Na Sociedade Viva Cazuza, há um espaço que mantém viva a obra e a memória do cantor. O Projeto Cazuza conserva todo o acervo do compositor de "Exagerado" e "Faz parte do meu show". São inúmeras fotos, quadros, capas de discos, roupas de show e prêmios que ilustram a carreira do artista, tanto ao lado dos companheiros do Barão Vermelho, como na fase solo. Tudo fica à disposição do público e fãs.
Na parede do espaço está o disco de ouro do álbum "Maior Abandonado", que Cazuza atirou pela janela do seu apartamento depois de um desentendimento com os integrantes do Barão. O prêmio foi recuperado em setembro deste ano quando um tio do cantor encontrou a relíquia em uma feira de antiguidades na Gávea, zona sul do Rio.
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