Cerca de mil crianças com problemas renais estão sem acesso ao atendimento do Centro de Nefrologia Pediátrica da Santa Casa de Misericórida, em Cuiabá.
O hospital filantrópico - que tem 202 anos - está de portas fechadas desde o dia 11 de março, por falta de recursos. Recentemente, a direção do local finalizou um relatório apontando que a dívida da unidade já chega a R$ 118 milhões - entre fornecedores, funcionários e instituições bancárias.
As médicas responsáveis pelo Centro de Nefrologia, Emmanuela Reis e Daniella Campos, conseguiram criar o local após seis anos de trabalho. Agora, com a grave crise financeira enfrentada pela institutição, ambas contaram que assistem o trabalho "virar pó".
"Imagina demorar cinco anos para estruturar um setor e, em um ano, isso 'virar pó'. Hoje temos só uma 'pontinha' desse atendimento funcionando, que é a hemodiálise, que está sendo realizada em uma clínica de Várzea Grande. Mas isso também pode acabar a qualquer momento. É muito triste, muito difícil", desabafou Daniella.
Em 2017, as médicas inauguravam o Centro de Nefrologia Pediátrica da unidade filantrópica, o primeiro de Mato Grosso a realizar hemodiálise em crianças. No setor, os pacientes tinham acesso desde o atendimento ambulatorial até o encaminhamento para o transplante de rim – quando necessário.
Daniella contou que os pacientes atendidos vão até aos níveis mais altos de complexidade. Recentemente, as médicas buscavam integrar o transplante de rins às etapas de atendimentos do Centro.
"Oferecíamos todas as etapas do tratamento de um paciente renal. Estavámos finalizando a fase do transplante de rim, para que esse paciente nem precisasse mais viajar para São Paulo para realizar a cirurgia. Já estavámos conseguindo realizar todo o tratamento pré e pós transplante", disse Daniella.
O serviço de nefrologia foi montado com recursos de empresários, sociedade e políticos, além do Ministério Público Federal, enviados à Sociedade Beneficiente da Santa Casa de Misericórdia, responsável por manter a unidade filantrópica.
Em 2018, o setor tinha dois contratos com o hospital, sendo um de R$ 30 mil mensais, para atendimento de pacientes renais agudos, e R$ 15 mil por mês para hemodiálise dos pacientes crônicos.
A unidade filantrópica tem 80% dos leitos destinados ao atendimento de pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), razão pela qual sobrevive majoritariamente de doações.
Os equipamentos do Centro de Nefrologia Pediátrica, por exemplo, foram adquiridos com recursos de emenda parlamentar.
"O setor tem estrutura nova, que conseguimos nesses cinco anos de trabalho. Quando começamos, há seis anos, não tinha atendimento nefrológico na Santa Casa, os pacientes literalmente morriam. O que acontecia quando uma criança passava mal por conta de um problema no rim? Ou essa paciente morria ou conseguia, via liminar na Justiça ou Tratamento Fora Domícilio (TFD) para tratamento fora de Mato Grosso, porque aqui não tinha", explicou Daniella.
Durante um ano as médicas viram de perto o fechamento de cada setor da Santa Casa, até a paralisação total nos atendimentos médicos no dia 11 de março.
De acordo com Emmanuela, a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) e os setores de hemodiálise infantil e adulto foram os últimos a "fechar as portas".
"Foram mais ou menos quatro paralisações ao longo de 2017. Até setembro eram mais curtas. Depois disso começou a ficar cada vez pior e os setores do hospital foram fechando devagar até chegar na UTI e no setor de hemodiálise infantil e adulto", contou.
Transferência de pacientes
Na noite do dia 21 de março, um dia antes da transferência dos pacientes da Santa Casa, Daniella contou que recebeu uma ligação por volta das 22h. A voz do outro lado pedia para que a equipe do Centro de Nefrologia Pediátrica continuasse os atendimentos de hemodiálise em uma clínica localizada em Várzea Grande, região metropolitana de Cuiabá.
"As crianças foram transferidas numa sexta-feira. Na noite anterior ligaram pedindo pelo amor de Deus para atendermos em 'tal lugar', que deixariam tudo regularizado. Uma ligação às 22h, sem ofício, sem nada", lembrou.
Bruna Barbosa/MidiaNews
Emmanuela Reis contou que situação afeta o psicológico dos pacientes
O transporte das crianças foi realizado pela própria equipe do setor de nefrologia e pelo pai de um dos pacientes, que utilizou o próprio veículo para levar o filho até a nova clínica, onde a hemodiálise passaria a ser disponibilizada.
O caos daquela noite turbulenta não ficou no passado, já que, dia após dia, as médicas são bombardeadas pela angústia das mães e familiares dos pacientes atendidos pela Santa Casa. Agora, o medo é de que o serviço de hemodiálise também seja interrompida.
De acordo com Danielle, nenhum tipo de contrato embasa o serviço de hemodiálise realizado pela clínica em Várzea Grande.
"Era a única clínica que tinha espaço e poderia ser adequada para a hemodiálise em crianças de maneira emergencial, já que a transferência aconteceu 'da noite para o dia'. Estamos lá há quase um mês e não tem nenhum papel que comprove isso, nada. Foi um acordo feito 'só de boca', que também pode ser rompido em algum momento", contou a médica.
Para Danielle, a ausência de um contrato que ampare o atendimento é como se os pacientes e os funcionários não existissem para as autoridades. Para ela, o atendimento realizado na clínica está sendo colocado como uma doação.
"Hoje estamos fazendo a hemodiálise nessa clínica porque, sem isso, eles [os pacientes] morreriam. Mas, para o Estado e o Município eles não existem. A clínica tem dado apoio de estrutura, além de material, equipamento e enfermagem. Tudo simplesmente como uma doação, porque a transferência foi discutida emergencialmente", relatou Danielle.
A falta de informações e a incerteza também comprometem o tratamento dos pacientes, que sofrem com a inconstância do Poder Público. Os médicos realizam os atendimentos da hemodiálise infantil pensando no dia seguinte e na possibilidade de tudo ser interrompido.
Emmanuela contou que poucas clínicas em Mato Grosso fazem o atendimento infantil, devido a complexidade do mesmo.
Por exemplo, uma água extremamente pura precisa ser utilizada no tratamento das crianças, para impedir que elas sejam atingidas por algum tipo de infecção.
"Foi mais fácil fazer a transferência e distribuição dos pacientes adultos, cada clínica acolheu um determinado número deles. As crianças, não. Por mais que algumas clínicas tivessem boa vontade em ajudar, elas não tinham estrutura. Nós, médicos, nos disponibilizamos a trabalhar em qualquer lugar que desse estrutura", contou Emmanuela.
Tratamento em outro estado
Antes da criação do Centro de Nefrologia Pediátria da Santa Casa, os pacientes do setor precisavam viajar para realizar o tratamento, normalmente para São Paulo. Emmanuela explicou que o Tratamento Fora de Município prejudica o psicológico das crianças e dos familiares que lhes acompanham, além de ser um processo extremamento oneroso para o sistema.
Os valores destinados para arcar com as despesas de hospedagem, passagens e alimentação dos pacientes e os acompanhantes deles foram uma das justificativas para a criação do setor especializado na unidade filantrópica.
"Até 2016, não tinha nenhum centro de nefrolofia pediátria em Mato Grosso apto para fazer hemodiálise. Todas as crianças precisavam ir morar em São Paulo para ter acesso ao tratamento gratuito. Para o Governo, isso significa pagar o Tratamento Fora de Domicílio. Manter um serviço fora de Cuiabá fica muito mais oneroso para o sistema", contou Emmanuela.
De acordo com ela, paciente e acompanhante recebem cerca de R$ 30 diários para alimentação e pagamento de hospedagem. Além da parte financeira, o Tratamento Fora de Domicílio afastava a criança do ambiente familiar.
"Era comum essas crianças chegarem lá [em São Paulo] e ficarem afastados da escola que frequentavam, porque o ano letivo também fica comprometido. Também não tinham relacionamento com a família, amigos e irmãos. Criava todo um problema psicológico e emocional para a estrutura familiar como um todo", disse Emanuella.
Desde a criação dos serviços do Centro de Nefrologia Pediátrica, as crianças precisam viajar para São Paulo apenas na fase do transplante de rim, que não é realizado em Cuiabá. Três meses depois elas retornavam para a Capital e podiam dar continuidade ao tratamento na Santa Casa.
"Há dois anos fazemos a hemodiálise no hospital. As crianças estavam sendo preparadas e organizadas para o transplante aqui em Cuiabá. Elas viajavam, faziam a cirurgia e voltavam para dar continuidade ao tratamento em casa. Ou seja, elas ainda precisavam ficar afastadas, mas era por um período pequeno, de até três meses, não são mais anos longe de casa", avaliou Daniella.
Bruna Barbosa/MidiaNews
Médicas junto às mães dos pacientes renais infantis da Santa Casa
Atendimento a bolivianos
Quando ainda estava funcionando, o Centro de Nefrologia Pediátria se tornou referência em Mato Grosso, inclusive para países vizinhos, como a Bolívia. Emmanuela contou que uma criança boliviana de sete anos recebeu um rim novo através do serviço da Santa Casa.
Em março deste ano, o presidente da Bolívia, Evo Morales, inaugurou o Sistema Único de Saúde (SUS) do país, porém, a falta de um acesso universal a saúde faz com que parte da população peça socorro em Cáceres (a 220 km de Cuiabá), município que fica na fronteira entre os países.
"Salvamos essa criança, que era da Bolívia. Primeiro ela foi para Cáceres, depois Várzea Grande e foi encaminhada para nós. Na Bolívia é assim: ou você tem dinheiro ou morre. O serviço está paralisado e depois de passar por tudo isso, receber um rim novo, uma vida nova, ele vai fazer o acompanhamento como? Agora ele vai morrer?", ressaltou Emmanuela.
O Centro de Nefrologia Pediátrica da Santa Casa também realiza atendimentos à pacientes do interior de Mato Grosso e sul do Pará. Conforme Daniella, é dever da equipe médica acolher e tratar dos pacientes, mas os atrasos salariais - a equipe recebeu pela última vez em novembro - tem levado a situação ao limite.
"Durante o último ano, fomos perdendo tudo que construímos. Não tem mais consultório, não tem pronto-atendimento, não temos como internar, a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) não está funcionando. Os pacientes precisam renovar a medicação e não conseguem. Nós não recebemos pelo setor de nefrologia da Santa Casa há um ano. Tudo está se perdendo", avaliou Daniella.
"Sem hemodiálise, pacientes morrem"
As médicas também precisam lidar com a angústia de uma possível paralisação da hemodiálise, realizada em caráter emergencial em Várzea Grande. Danielle ressaltou que, sem a remoção do líquido e substâncias tóxicas do sangue do paciente com problema renal, ele passa a a correr risco iminente de morte.
"Hoje, o único serviço da nefrologia que está funcionando é a hemodiálise, porque sem eles esses pacientes literalmente morrem. O rim deles não funciona e precisam funcionar de uma forma artificial. Porém, na clínica onde está sendo realizada a hemodiálise infantil não tem nada registrado em contrato. Pode ser que chegue amanhã e o serviço para. E aí? Eles vão morrer?", ressaltou a médica.
Para Danielle, o descaso do Poder Público é comparado a um assassinado por envenenamento. Sem a hemodiálise e o atendimento nefrológico correto, os pacientes correm risco diário de vida. Dia após dia, uma gotinha a mais do "veneno" pinga sobre àqueles que dependem dos serviços da Santa Casa.
"Se esse paciente não faz a hemodiálise, ele vai ficando intoxicado. Seria o mesmo que dar um pouco de veneno todos os dias para alguém. Sem a hemodiálise a pessoa com problema no rim vai morrendo 'aos pouquinhos'. Nos sentimos mal por isso, porque isso é um assassinato", comparou Danielle.
Amargando uma crise financeira, a Santa Casa possui profissionais capacitados - Daniella e Emmanuela possuem certificação como transplantadora, além do restante da equipe que realizou cursos de capacitação na área da nefrologia em São Paulo, e um setor com os equipamentos necessários para realizar os atendimentos.
Porém, as médicas chegaram em um estágio em que não conseguem mais continuar trabalhando na Santa Casa apenas "por amor".
"Somos técnicas formadas, mas também somos seres humanos, temos nossoas necessidades e limitações, temos que nos 'virar nos 30', porque tem o lado psicológico, emocional e financeiro também", avaliou Daniella.
"Chegamos ao limite"
Emmanuela e Daniella contaram ter chegado ao limite psicológico, fisíco e financeiro. O pagamento da equipe médica é realizado por setores.
Há um ano sem receber pelo setor de nefrologia geral, as médicas também costumavam receber os honorários pela hemodiálise a cada seis meses, graças a um bloqueio judicial feito pelo Juízo da Primeira Vara da Infância e Juventude de Cuiabá.
"Chegamos em uma fase em que não conseguimos mais. Agora temos a incerteza financeira e emocional. Chegamos na hemodiálise e a criança fala: 'tia, porque tem que ser assim? eu vou morrer?'. Não sabemos mais o que fazer. É muito triste assistir isso acontecendo, porque criamos vínculos com essas famílias. Cheguei a ficar doente durante esse período, tanto psicologicamente quanto fisicamente", disse Emmanuela.
Alair Ribeiro/MidiaNews
Santa Casa de Cuiabá está de portas fechadas desde o dia 11 de março
Daniella ressaltou, porém, que dessa forma o serviço não funcionará corretamente. Para ela, o Poder Público deveria assumir as responsabilidades perante aos atendimentos dos pacientes que não possuem condições financeirar para custeá-lo.
"A Justiça ajudou financeiramente algumas vezes através de bloqueios judiciais, para que o serviço não fosse paralisado. Mas não é o certo. Tem que ser formalizado, precisa haver um contrato, nós precisamos existir. Temos estrutura e capacitação técnica para que o atendimento seja realizado", explicou.
Ela explicou que a equipe médica também precisa honrar com seus compromissos financeiros. Muitos tem família e filhos que dependem dos salários atrasados.
"Se eu conseguisse dedicar parte do meu dia para isso, como uma forma de doação, não tinha problema. Inclusive, foi o que fizemos durante um ano. Porém, nós também temos filhos. Ficar um ano sem receber não é fácil", avaliou Danielle.
As médicas contaram que chegaram a procurar ajuda do Poder Público para tentar resolver a situação. Há um mês, antes do fechamento da Santa Casa, a equipe teve reuniões com o prefeito de Cuiabá, Emanuel Pinheiro (MDB), e o secretário municipal de saúde, Luiz Antonio Possas de Carvalho.
Para elas, os políticos precisam olhar para a situação do hospital filantrópico de uma forma mais humanizada.
"É um descaso. Eles disseram que fariam um contrato com a clínica onde a hemodiálise infantil está sendo realizada, mas até o momento nada foi resolvido. Não acho errado eles se preocuparem com a questão administrativa, política e financeira, mas queremos conseguir fazer nosso trabalho. As vidas desses pacientes dependem disso", disse Danielle.
Leia mais sobre o assunto:
Relatório aponta que Santa Casa tem dívida de R$ 118 milhões
Prefeitura cita Defaz e MPE e diz que Santa Casa lhe deve R$ 24 mi
Santa Casa alega calote da Prefeitura e anuncia paralisação
Entre no grupo do MidiaNews no WhatsApp e receba notícias em tempo real (CLIQUE AQUI).
1 Comentário(s).
|
Lúcia Gomes 19.04.19 11h30 | ||||
Desculpe a minha ignorância, a Santa Casa de Cuiabá é uma instituição pública de direito privado? Por que o SUS não canaliza mais recursos para essa instituição. Me parece também que a sociedade mato-grossense não quer mais cooperar. | ||||
|