Cuiabá, Sábado, 6 de Setembro de 2025
QUEIMADAS NO PANTANAL
06.09.2025 | 10h29 Tamanho do texto A- A+

Povoado lida com trauma enquanto luta por água e saneamento

Trauma causado pelo fogo não é o único problema enfrentado pelos ribeirinhos, que sofrem com a falta de estrutura

Reprodução

Moradores do povoado do Salobra, em Miranda (MS), relatam ter vivido dias de terror durante as queimadas de 2024

Moradores do povoado do Salobra, em Miranda (MS), relatam ter vivido dias de terror durante as queimadas de 2024

CATARINA FERREIRA
FOLHAPRESS

Moradores do povoado do Salobra, em Miranda (MS), relatam ter vivido dias de terror durante as queimadas de 2024. À época, a comunidade ficou cercada pelas chamas, estradas foram bloqueadas, aulas suspensas - e toda a cidade passou meses envolta em fumaça.

 

O trauma causado pelo fogo, porém, não é o único problema enfrentado pelos ribeirinhos, que sofrem com a falta de estrutura de água e saneamento.

 

"Foram dias terríveis, que nunca mais na minha vida eu desejo aquilo para ninguém", conta Marinalva Oriozola Barbosa, 49. Presidente da associação de moradores do Salobra, ela lidera a mobilização da comunidade por acesso à água e acompanhou o esforço dos vizinhos para conter as chamas.

 

Sem equipamentos apropriados, Gilmar Pereira Oriozola, 44, tesoureiro da associação de moradores e primo de Marinalva, conta ter entrado no rio junto de alguns conhecidos para tentar combater os focos de fogo, até a chegada do Corpo de Bombeiros.

 

Gilmar conta ter escalado a ponte ferroviária desativada sobre o rio Miranda para observar a região e tentar mandar as coordenadas dos focos de incêndio para o Prevfogo, órgão do Ibama responsável pelo combate. "Olhava aqui [de cima] e era só fumaça. Não enxergava nada, nada mesmo."

 

Com a fumaça que tomou a região por dias, recorda, as noites eram mais difíceis e ele dormia pouco para cuidar dos pais idosos. "Tinha que ficar acordando direto, molhando uma toalha e colocando em cima do rosto do meu pai e da minha mãe e medindo a pressão."

 

Para todos, as lembranças do fogo, ainda recentes, são dolorosas. Marinalva chora ao lembrar da sensação de impotência diante dos pedidos de ajuda que recebia dos vizinhos.

 

Assim como outras comunidades tradicionais do pantanal, o Salobra se mobilizou para formar uma brigada voluntária. O grupo foi criado em dezembro do ano passado, com apoio da SOS Pantanal, instituição sem fins lucrativos que atua na região e que acompanhou a reportagem até o povoado.

 

Segundo Gilmar, o trauma evidenciou a urgência de criar estratégias de prevenção para proteger a população e também os recursos naturais. Em meio às dificuldades impostas pelas mudanças climáticas, como a seca severa e o fogo, o povoado busca melhores condições de acesso à água potável e à estrutura de saneamento.

"Nós vivemos rodeados de água. Tudo perto, ao mesmo tempo longe, né? Porque a nossa água não é potável para usufruir", diz Gilmar.

 

A água do rio que banha a comunidade é salobra, como o próprio nome do povoado e do curso d'água já diz -isto é, tem uma concentração de sais dissolvidos superior à da água doce, mas inferior à da água do mar.

 

Não há esgotamento sanitário na região. Cada casa possui fossas rudimentares, para receber os resíduos que seriam destinados ao esgoto. Quando construídas de forma incorreta, ou muito próximas aos poços de captação da água, as fossas podem favorecer a contaminação por microrganismos.

 

No Salobra, o poço semiartesiano que abastece uma caixa d'água de 100 mil litros, destinada a toda a comunidade, está próximo à fossa da escola local. Os moradores ficaram cientes da condição da água após começarem a participar do projeto Águas que Falam, da SOS Pantanal, que analisa a qualidade da água em comunidades do bioma -no ano passado, a instituição instalou um filtro na caixa d'água.

 

"Para nós, a nossa água era só calcária [com alta concentração de minerais dissolvidos], não tínhamos ideia que tinha contaminação cruzada por coliformes fecais", conta Gilmar.

 

A precariedade no acesso à água potável obriga os moradores a recorrerem a fontes de abastecimento que muitas vezes não são seguras, afirma Ariel Gomes, doutor em saneamento ambiental e recursos hídricos pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

 

O pesquisador ressalta também que o tratamento inadequado do esgoto pode levar à contaminação de todo o ecossistema.

 

"Uma vez que as águas são poluídas, por esgotos ou outras substâncias, elas vão contaminar outros seres que utilizam da água, ou que vivem nela, por exemplo, os peixes. Então, existe um impacto ambiental, o impacto na fauna aquática, que leva ao impacto nas atividades humanas."

 

A poluição da água, somada ao assoreamento dos rios, prejudica as atividades dos moradores que, assim como Marinalva, dependem exclusivamente do rio para tirar o alimento e o sustento. A presidente da associação de moradores vive da pesca e dos passeios que faz, junto do marido. Nos últimos anos, o casal tem notado a diminuição no número de peixes no rio e também do fluxo de turistas.

 

A piora da situação acompanha o agravamento das condições climáticas no bioma. De acordo com dados do Mapbiomas, no último ano, o pantanal foi o bioma com a menor superfície de água no país: 366 mil hectares, ou 2% do total. O ecossistema é também o que mais perdeu superfície de água em relação à média da série histórica (61%), iniciada em 1985.

 

Questionada sobre o abastecimento hídrico na região, a Prefeitura de Miranda afirmou que o município solicitou a instalação de uma Estação de Tratamento de Água (ETA) na localidade e que o pedido será atendido até o ano de 2026. "Após a instalação da ETA torna-se uma questão de tempo instalar a Estação de Tratamento de Esgoto (ETE)", disse a prefeitura, em nota.

 

Entenda a série

 

A série de reportagens "Cicatrizes no Pantanal" aborda impactos na saúde, na educação e nos modos de vida de comunidades após as queimadas históricas de 2020 e 2024 no bioma. O trabalho é parte do projeto Excluídos do Clima, uma parceria da Folha com a Fundação Ford.

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