Cuiabá, Domingo, 9 de Novembro de 2025
DISMORFIA CORPORAL; VÍDEOS
09.11.2025 | 08h00 Tamanho do texto A- A+

Psicóloga: Insta reforça gatilho; pessoa não se aceita doente

Tatiane Lanzer explicou como padrões de perfeição e cobranças podem desencadear transtornos

Victor Ostetti/MidiaNews

A psicóloga Tatiane Lanzer, que falou sobre a dismorfia corporal

A psicóloga Tatiane Lanzer, que falou sobre a dismorfia corporal

LIZ BRUNETTO
DA REDAÇÃO

A psicóloga Tatiane Lanzer afirmou que os padrões irreais de beleza têm adoecido a sociedade, e que as redes sociais atuam como gatilho em pessoas com distorção de imagem ou dismorfia corporal.

O desafio é a aceitação da doença e de que a gente trabalha para a saúde da pessoa, porque qualquer coisa ela interpreta como ‘estão querendo me engordar’

 

Com mais de 20 anos de experiência na área, a especialista explica que o transtorno psiquiátrico é multifatorial, influenciado por fatores como baixa autoestima e o ambiente social em que a pessoa está inserida, sendo comum que os primeiros episódios surjam ainda na adolescência.

 

“Infelizmente, é um gatilho muito negativo. Como a distorção está ligada à exigência, à perfeição, a querer alcançar um padrão, a pessoa fica olhando as ‘vitrines’ nas redes sociais, vê aquelas pessoas perfeitas e começa a se comparar negativamente, querendo ir em busca disso”, afirmou.

 

Lanzer destaca que o principal desafio no tratamento do transtorno, que pode desencadear doenças como anorexia, bulimia e vigorexia, é a resistência do paciente, que muitas vezes sequer aceita estar doente.

 

“Eles não aceitam que estão doentes; veem como: ‘Estou só querendo encontrar o meu padrão de beleza’. O desafio é a aceitação da doença e de que a gente trabalha para a saúde da pessoa, porque qualquer coisa ela interpreta como ‘estão querendo me engordar’, e ali a gente perde o paciente”, afirmou.

 

Confira os principais trechos da entrevista: 

 

MidiaNews - O que exatamente é a distorção de imagem corporal e de que forma ela começa?

 

Tatiane Lanzer - É um transtorno psiquiátrico e não tem um ponto específico de como ele começa. Existem inúmeros fatores desde a infância. De maneira geral, tem uma relação de causa familiar e ambiental. Quando a mãe tem uma cobrança muito grande em relação à imagem e ao peso, estar exposto a um ambiente social onde é colocado um padrão de perfeição, por exemplo, perfeição com desempenho escolar e outras atividades, isso faz com que a pessoa associe que precisa ter um padrão perfeito também em relação ao corpo. Quando vai para a adolescência, período em que começam as interações sociais e a vida afetiva, ocorre uma mudança mais significativa no corpo. De maneira geral, é na adolescência que eclodem os primeiros episódios dentro do que a gente chama de transtorno de imagem.

 

 

 

MidiaNews - Esse tipo de distorção está mais ligada à autoestima ou ao meio externo?

 

Tatiane Lanzer - As duas coisas. Se ela tem um meio externo de muita cobrança e pressão, mas tem um viés de autoestima, ou se tem uma questão de autoestima baixa, mas não tem um padrão externo, talvez não desenvolva. O que os estudos mostram é que as vulnerabilidades são para os dois lados. Tanto interna, é muito comum em famílias que tenham um transtorno haver uma vulnerabilidade maior, por conta de um padrão na forma de funcionamento do cérebro, como também da pessoa se ver como defeituosa, falha, feia, inadequada. E esse conteúdo de autoestima, muito dele não vem do temperamento, que é o que a gente nasce “com”, mas das relações externas, da atribuição de significado que eu vou fazendo dessas relações na minha vida. O bullying também pode interferir. A gente nunca coloca como uma regra absoluta, mas, sim, pode interferir.

 

MidiaNews - Quais são os primeiros sinais de que alguém não tem uma percepção real do próprio corpo?

 

Tatiane Lanzer - A pessoa começa a ter vergonha do corpo, por exemplo, de se trocar na frente de outras pessoas, de amigos, de pai, de mãe; começa a vestir roupas para esconder o corpo, compra roupas dois números maiores, tem pouca vida social, não quer interagir, não aceita convites para sair, sente vergonha de comer na frente dos outros ou, às vezes, até usa isso como estratégia, porque, as pessoas não verão o quanto está comendo ou como está comendo.

 

 

 

MidiaNews - Como diferenciar uma insatisfação comum da dismorfia corporal?

 

Tatiane Lanzer - A insatisfação é exatamente isso: você fica insatisfeito, mas continua vivendo. Pensando que isso começa na adolescência, você vai para a escola; na juventude, vai para a faculdade; na vida adulta, trabalhar; vai ter relações sociais, aceitar convites, ter relacionamentos afetivos, mesmo com a insatisfação, você vive a vida. Na dismorfia corporal, a pessoa começa a ter prejuízos, evita relações sociais e afetivas, não aceita convites, começa a ter problemas no trabalho, na faculdade, na escola, no sentido de faltar, de não querer se expor. Geralmente, são pessoas que vão se isolar e, em casos graves e extremos, começam a ter problemas de saúde. Numa anorexia grave, por exemplo, a mulher para de menstruar, começa a ter queda de cabelo; numa bulimia grave, surgem problemas no estômago e esôfago, nos dentes. Ou, se usa laxante, começa a evitar sair de casa por não conseguir controlar os esfíncteres. A pessoa entra num nível de sofrimento emocional muito grande e começa a ter prejuízos em várias áreas da vida.

 

 

MidiaNews - Na anorexia e bulimia, a distorção da imagem vem antes da doença ou é consequência dela?

 

Tatiane Lanzer - Isso acontece meio que junto. A pessoa começa a ter um incômodo, uma insatisfação com o corpo, mas aquilo vai tomando uma proporção maior e, da insatisfação, ela começa a verdadeiramente não se enxergar como é. Por exemplo, há uma estratégia no consultório que é pegar um papel pardo grande e pedir para a pessoa se desenhar, e ela se desenha três vezes maior do que é. Quando você a deita e faz o contorno, ela vê que é muito menor em diâmetro do que imagina. Já tive pacientes que usam 34 e, na hora de comprar roupa, falam “não, isso aqui não vai me servir” e compram 40. Isso é estranho quando a gente não tem um transtorno, mas, quando ela se olha no espelho, se vê enorme. A distorção é isso. Por isso, não é só uma questão ambiental: há uma questão genética, de conexão em nível cerebral. Daí a importância de ter um tratamento psiquiátrico junto.

Na dismorfia corporal, a pessoa começa a ter prejuízos, evita relações sociais e afetivas, não aceita convites, começa a ter problemas no trabalho, na faculdade, na escola, no sentido de faltar, de não querer se expor

 

MidiaNews - As pessoas negligenciam os primeiros sinais de doenças como anorexia e bulimia?

 

Tatiane Lanzer - Na verdade, não é negligência; a pessoa não reconhece como um problema. É como se fosse negado, mas uma negação sem consciência. Tanto que, de maneira geral, não é a pessoa que percebe, é a família. Num primeiro momento, a pessoa não aceita, resiste muito; enxerga os familiares e os profissionais que a acompanham — psicólogo, psiquiatra, nutricionista, nutrólogo, endocrinologista — como se fossem inimigos, pessoas que estão “querendo me engordar, me deixar feia”. É um trabalho muito delicado, porque existe uma resistência e uma negação muito grandes da pessoa em reconhecer que está doente.

 

MidiaNews - Há perfis de pessoas mais suscetíveis a desenvolver esses transtornos?

 

Tatiane Lanzer - Sim. O que os estudos mostram é que pessoas extremamente exigentes, perfeccionistas, que têm dificuldade de lidar com o erro e querem que tudo seja muito perfeito, nos mínimos detalhes. De maneira geral, um perfil de personalidade que acompanha os casos de transtorno dismórfico corporal tem a ver, sim, com essa exigência e perfeccionismo clínico, num nível exagerado e elaborado.

 

MidiaNews - Afeta mais homens ou mulheres? Se sim, há alguma diferença na manifestação da doença entre eles?

 

Tatiane Lanzer - São transtornos com uma predominância maior em mulheres. Anorexia e bulimia têm predominância muito maior em mulheres. Se a gente entrar na vigorexia, ela aparece na mesma proporção entre homens e mulheres. Isso tem a ver com o funcionamento diferente do cérebro. A mulher tem uma tendência a ser mais emocional e frágil emocionalmente, a se incomodar um pouco mais — até por uma questão cultural — com a estética. Acredita-se que esses fatores, a cobrança que geralmente se tem em cima da mulher, acabam contribuindo para que a incidência seja maior, sim, nelas.

 

MidiaNews - O que é a vigorexia?

 

Tatiane Lanzer - Na vigorexia, diferente da anorexia e bulimia, você não se vê por inteiro como se estivesse acima do peso, gordo ou com grandes proporções. Nela, você elege uma parte do corpo. Por exemplo, acha que o nariz é falho, que tem um olho mais baixo do que o outro; em homens, é comum se verem muito magros, começarem a ir para a academia e hipertrofiar. É como se vissem a parte torácica muito fina e quisessem aumentá-la. Mulheres fazem procedimentos estéticos, por exemplo, colocam silicone. Já vimos pacientes com menos de 30 anos que trocaram o silicone sete vezes: porque ficou grande, depois pequeno, depois um ficou um pouquinho torto... e nunca se chega a esse nível de perfeição. A pessoa elege áreas do corpo e vai enxergando defeitos nelas.


Se pegarmos um caso muito famoso, antigo, provavelmente o Michael Jackson tinha. Ele fez cirurgia no rosto, no nariz, e, de repente, já não havia mais nariz. A pessoa vai se colocando em risco fazendo esses procedimentos. Não que os outros transtornos não tenham riscos — a anorexia, por exemplo, tem inúmeros casos de pessoas que morrem por inanição.

 

 

 

MidiaNews - Qual é o papel das redes sociais nesse processo de distorção?

 

Tatiane Lanzer - Infelizmente, é um gatilho muito negativo. Como a distorção está ligada à exigência, à perfeição, a querer alcançar um padrão, a pessoa fica olhando as “vitrines” nas redes sociais, vê aquelas pessoas perfeitas e começa a se comparar negativamente, querendo ir em busca disso — e não se questiona que há muito filtro para parecer perfeito. As redes sociais potencializam esse gatilho de uma forma muito negativa, de comparação. E, claro, a pessoa que está do lado de cá sempre vai perder na comparação.

 

MidiaNews - A pessoa perde a noção de que aquilo que está na rede social não é real?

 

Tatiane Lanzer - Ela perde e não acredita. Quando a gente não tem um transtorno, tem dificuldade de entender como a pessoa com transtorno funciona. Então, sim, é uma coisa tão óbvia, mas a pessoa perde, do mesmo jeito que nem está se enxergando verdadeiramente como é. É muito grave, por isso é uma doença, porque a pessoa perde o senso mínimo de discernimento e ponderação com a realidade.

Já tive pacientes com bulimia que precisaram fazer cirurgia porque vomitavam tanto que estavam com nível de erosão no esôfago de quase câncer

 

MidiaNews - Como é o processo de tratamento psicológico nesses casos?

 

Tatiane Lanzer - Trabalhamos muito a questão da boa autoestima, porque ela não está ligada só ao fator físico-estético, mas ao emocional, intelectual, às interações nas áreas da vida. A gente amplia esse olhar sobre a autoestima para flexibilizar, sair de um nível de perfeição inacessível e vir para esse ponto de autocuidado, na parte de saúde e alimentação. Eu falo aos meus pacientes: “Está tudo bem você querer, por exemplo, ser magro, desde que seja saudável”. O problema é que eles começam a emagrecer demais ou usar substâncias inadequadas para emagrecer, e vão perdendo a saúde, começam a ficar com vitaminas muito baixas, a ter anemia, queda de cabelo, falta de energia.


No processo terapêutico o paciente sai daquela ideia de “você está querendo me engordar” e entende que eu estou querendo mantê-lo vivo e com boa qualidade de saúde. Já tive pacientes com bulimia que precisaram fazer cirurgia porque vomitavam tanto que estavam com nível de erosão no esôfago de quase câncer, uma mulher com menos de 30 anos, porque vomitava de 8 a 10 vezes por dia. É grave, há casos em que as pessoas perdem os dentes.

 

Trazemos uma consciência sobre o que é uma vida saudável e o que é um estilo de vida saudável. Dentro disso, está tudo bem ter autocuidado, ser vaidoso, mas vamos fazer atividade física de forma funcional e saudável, construir uma consciência em relação aos alimentos, trabalhar esses padrões de exigência exagerados. A vida é um processo em que a gente busca, todos os dias, ser melhor do que foi no dia anterior e não alcançar um status de perfeição absoluta.

 

MidiaNews - Qual o principal desafio no tratamento?

 

Tatiane Lanzer - A aceitação de que se tem uma doença. Eles não aceitam que estão doentes; veem como: “Estou só querendo encontrar o meu padrão de beleza”. O desafio é a aceitação da doença e de que a gente trabalha para a saúde da pessoa, porque qualquer coisa ela interpreta como “estão querendo me engordar”, e ali a gente perde o paciente.

 

MidiaNews - É possível “reaprender a enxergar o próprio corpo”? Podemos falar em cura?

 

Tatiane Lanzer - É muito delicado falar em cura no sentido de “me virei completamente do avesso e hoje não me incomodo com nada disso”. O que a gente consegue é dar uma silenciada nessa cobrança, nesses pensamentos. Mas uma pessoa que verdadeiramente tem um transtorno vai aprender a conviver com ele de forma funcional, não é alguém que, em algum momento, vai deixar de se incomodar com o corpo, com o peso, com a estética, infelizmente, não.

 

Com uma pessoa que fuma, é comum ouvir: “Fiquei quatro anos sem fumar, um dia dei uma tragadinha e voltei”, ou “eu estava há 20 anos sem beber, fui a um cruzeiro, tinha um monte de bebida e voltei”. Então, quando a gente fala de transtorno psiquiátrico, é muito parecido com essa fisiologia do nosso corpo físico. Você faz um tratamento, consegue conviver bem com aquilo, mas o cérebro, a forma desse cérebro pensar, é diferente de uma pessoa que não tem transtorno.

 

 

MidiaNews - O que a sociedade ainda precisa entender sobre a relação entre corpo, imagem e saúde mental?

 

Tatiane Lanzer - Os padrões inacessíveis de perfeição e a forma como a gente leva o mundo hoje contribuem muito para que a gente adoeça. Tanto que, se olharmos há 20 anos, quando me formei, para hoje, a incidência de pessoas com transtorno psiquiátrico é muito maior. Os estímulos que existem hoje na nossa vida, infelizmente, contribuem. Vamos colocando padrões irrealistas, não acessíveis, porque são inexistentes. Mas isso é colocado como se fosse possível e como se fosse o grande desejo a cobiçar e alcançar. A sociedade teria que passar por uma reformatação muito grande.

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