Cuiabá, Terça-Feira, 16 de Dezembro de 2025
“PODER PARALELO”; FOTOS
15.12.2025 | 16h09 Tamanho do texto A- A+

Vistoria em presídio identifica tortura a presos e ameaça a juiz

Equipe do Poder Judiciário realizou vistoria na Penitenciária Ferrugem, em Sinop, em outubro deste ano

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Policiais penais do Ferrugem, em Sinop, atirando balas borracha dentro da cela e colocando detentos nus, em postura degradante

Policiais penais do Ferrugem, em Sinop, atirando balas borracha dentro da cela e colocando detentos nus, em postura degradante

ANGÉLICA CALLEJAS
DA REDAÇÃO

Uma inspeção realizada pela Corregedoria-Geral da Justiça na Penitenciária Osvaldo Florentino Leite Ferreira, conhecida como Ferrugem, em Sinop (480 km ao norte de Cuiabá), revelou um cenário de tortura contra os detentos por parte de agentes prisionais, além de ameaças ao Poder Judiciário de Mato Grosso.

 

“Foram sistemáticas as descrições de uso de espargidor de irritante respiratório borrifado ou sob a forma de “chantili”, munições de elastômero, espancamentos, humilhações, mordidas de cachorro etc

Conforme o relatório, a inspeção ocorreu nos dias 29 e 30 de outubro deste ano após várias denúncias. O trabalho foi conduzido pelos magistrados Marcos Faleiros da Silva e Paula Thatiana Pinheiro e dois servidores. Eles ouviram 126 presos. 

 

O primeiro ponto elencado pela equipe foi a adoção do chamado “procedimento”, que consiste em colocar os detentos em postura degradante, que causa dor física principalmente diante da repetição e duração da posição, bem como técnicas de tortura em geral, com uso de tiros de borracha, spray de pimenta, espancamentos, e acentuado sofrimento psíquico.  

 

“As pessoas são obrigadas a ficar sentadas, sem camiseta e sem chinelo, com as pernas dobradas e mãos na nuca, às vezes de cueca, às vezes nuas, em momentos de entrada de policiais penais nas alas, com xingamentos, humilhações e violência”, consta no relatório.

 

“Foram sistemáticas as descrições de uso de espargidor de irritante respiratório (“spray de pimenta”) borrifado ou sob a forma de “chantili” (o policial espalha na mão e esfrega nos olhos do preso), munições de elastômero (“bala de borracha”), espancamentos, humilhações, mordidas de cachorro etc.”.

 

Ao todo, dos 126 detentos ouvidos, foi constatado que 48 apresentaram cicatrizes ou lesões recentes de balas de borracha, o que mostra um padrão de agressão em datas distintas. Na ocasião da inspeção, ainda foram apreendidos, dentro das celas, cápsulas de borracha e uma bomba deflagrada, supostamente de efeito moral.

 

As ações de tortura foram comprovadas por meio de análise das imagens das câmeras de monitoramento do presídio, que revelaram “uma forma particularmente cruel de tortura constante”, que corroborou com todos os relatos dos detentos.

 

Nas imagens alguns policiais aparecem disparando tiros de bala de borracha e jogando bombas de efeito moral por meio da “boqueta” do latão das celas, abertura utilizada para a entrega de alimentação. Segundo o relatório, foi possível observar disparos em sequência, chegando até a três, contra os detentos alocados nas celas superlotadas.

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Presídio Ferrugem - Sinop

Policiais atiram balas de borracha dentro da cela e colocam os detentos nus, em postura degradante

“Em alguns momentos, dois policiais agem simultaneamente, efetuando disparos nas “boquetas” de celas vizinhas, caracterizando uma agressão covarde e deliberada contra indivíduos confinados e sem possibilidade de defesa”, analisou o juiz.

 

35 dos 126 detentos ouvidos também relataram constantes episódios de espancamentos, pisoteamentos, xingamentos, humilhações, tapas, chutes, socos, uso de instrumentos para bater, independente da situação. 

 

Porém, conforme o relatório, o número deve ser muito maior “tendo em vista a natureza transitória das lesões de espancamentos, cujos vestígios visuais regridem e desaparecem com o decurso do tempo, dificultando a comprovação pericial tardia”.

 

A tortura pelo fechamento dos “latões”, chapas de aço que vedam as celas, também foi constatado pela equipe. Ao ser fechado, há interrupção quase total da circulação de ar nas celas, transformando o local em uma "estufa" ou "sauna". Quando reclamam da medida, a resposta é sempre violenta.

 

“A resposta relatada segue padrão: a) o latão é mantido fechado; b) bombas de pimenta ou gás lacrimogêneo são lançadas dentro do espaço selado; disparos são feitos pela boqueta; e os presos permanecem sem ar, com sensação de asfixia”.

Humilhações, uso de cães e revista vexatória

 

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Presídio Ferrugem - Sinop

Cicatrizes e lesões dos detentos vítimas de tortura no presídio

Os detentos que fazem parte da população LGBTQIA+ ainda são alvos de discriminação, sendo constantemente chamados de “bichos do capeta”, e submetidos a zombarias e ameaças, o que “compõe um cenário de terror psicológico destinado a anular a dignidade humana das pessoas privadas de liberdade”. 

 

O leque de tortura ainda se estende ao uso de cães policiais, que são levados para dentro dos presídios e comandados a atacar os detentos. Uma das vítimas sofreu mordida profunda no glúteo, lesão que foi constatada pela equipe de inspeção, e outro preso tinha uma cicatriz de mordida na mão.

 

Não bastando o cenário de terror, ainda consta no relatório que os policiais colocam os animais em contato com o reservatório de água dos detentos. Nas denúncias, também foi descoberto que a distribuição de água é racionada e somente permitida pelos policiais.

 

 

Entre as reclamações apresentadas também destaca-se a prática de revista vexatória mediante o uso de cães farejadores. Segundo os relatos, os policiais penais submetem os visitantes ao farejamento direto nas partes íntimas, procedimento que é aplicado indiscriminadamente, inclusive contra crianças e adolescentes, configurando grave violação à dignidade e aos direitos da criança e do adolescente.  

 

Descaso médico

 

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Presídio Ferrugem - Sinop

Policiais lançando spray de pimenta dentro das celas pelo bocal da porta de aço

Além da violência física e psicológica, a inspeção também constatou grave omissão no atendimento à saúde dos presos. Segundo os relatos colhidos, a enfermaria da unidade é praticamente inacessível e, quando há atendimento, a conduta se resume, em regra, à distribuição de analgésicos, independentemente da gravidade do quadro clínico.

 

O relatório aponta abandono completo de internos com transtornos mentais. A falta de medicamentos controlados e de acompanhamento especializado tem levado presos a surtos psicóticos, crises de desespero e episódios de automutilação. Durante a inspeção, a equipe visualizou detentos com cortes recentes no corpo, provocados por eles próprios como forma de aliviar o sofrimento psíquico ou pedir socorro.

 

Em vez de assistência médica, a resposta institucional aos surtos tem sido repressiva. Conforme o documento, internos em crise foram alvejados com disparos de munição menos letal, em vez de receberem contenção terapêutica ou atendimento especializado.

 

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Presídio Ferrugem - Sinop

Cachorro da Polícia na área do reservatório de água dos detentos

Também foram identificados casos de negligência extrema, como presos com infecções graves, sacos de colostomia improvisados com sacolas plásticas, feridas abertas sem curativos adequados, exposição óssea e rejeição de placas metálicas ortopédicas, além de relatos de detentos urinando sangue ou com dores crônicas severas sem qualquer exame diagnóstico.

 

Ameaças ao Poder Judiciário

 

O relatório também registra um episódio considerado gravíssimo envolvendo ameaça direta à integridade de autoridades. Durante o segundo dia da inspeção, um detento apontado como liderança de facção criminosa afirmou, em depoimento, que teria sido instigado pelo diretor da unidade e pelo subdiretor a atentar contra o juiz responsável pela inspeção.

 

Segundo o relato, o objetivo seria deslegitimar as denúncias de tortura feitas pelos presos. Em troca, o detento receberia supostas regalias dentro do presídio. Durante a oitiva, ele demonstrou que estava sem algemas nos pés e que as algemas de mão estavam frouxas, chegando a soltá-las diante das autoridades.

 

No momento do ocorrido, não havia policiais penais nas proximidades da sala de audiência, o que caracterizou quebra de protocolo de segurança. O caso foi presenciado pelo juiz, promotor de Justiça, defensor público, servidores e representantes do Conselho Estadual de Direitos Humanos.

 

Ainda conforme o relatório, após o encerramento da inspeção, o veículo oficial do Tribunal de Justiça foi alvo de uma tentativa de intimidação durante o retorno a Cuiabá, quando uma caminhonete teria tentado interceptar o carro na rodovia. Embora não haja confirmação sobre a autoria, o magistrado registrou que, em mais de duas décadas de carreira, nunca havia passado por situação semelhante.

 

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Presídio Ferrugem - Sinop

Detento com ferida no glúteo proveniente de mordida do cão policial

Os detentos ainda revelaram que, um semana antes da inspeção, o GMF realizou vistoria na unidade com a presença do desembargador Orlando Perri e do juiz Geraldo Fidelis, ocasião em que o diretor do presídio, Adalberto Dias de Oliveira, desqualificou as autoridades judiciais e, após a saída do desembargador, teria afirmado que “não era aquele desembargadorzinho de merda que iria tirá-lo do cargo”, além de ameaçar presos e lançar bombas contra eles.

 

Poder paralelo

 

Para a equipe responsável pela inspeção, os fatos revelam a existência de um “poder paralelo” dentro da Penitenciária Ferrugem, marcado pelo desprezo às decisões judiciais, pela intimidação de autoridades e pela repetição sistemática de práticas de tortura já denunciadas em inspeções anteriores, inclusive em relatório de 2020.

 

O documento conclui que a unidade opera à margem do controle jurisdicional, com práticas que afrontam diretamente a Constituição Federal, tratados internacionais de direitos humanos e o próprio Estado Democrático de Direito.

 

“À vista do exposto, a equipe de inspeção conclui que há, no Presídio Dr. Osvaldo Florentino Leite Ferreira (Ferrugem), em Sinop/MT, prática sistemática e institucionalizada de tortura e de tratamento desumano, cruel e degradante, associada à consolidação de um poder paralelo voltado ao exercício de “justiça própria”, em frontal afronta ao Tribunal de Justiça, ao GMF e às demais instâncias de controle”. 

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Presídio Ferrugem - Sinop

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