Cuiabá, Sábado, 5 de Julho de 2025
ROBERTO BOAVENTURA SÁ
16.05.2014 | 08h01 Tamanho do texto A- A+

Cuidados com o bruxo

o brasileiro em geral não usa mais do que quinhentas palavras para sua comunicação diária

Sempre que posso, alerto para os riscos que as novas teorias e práticas pedagógicas trazem ao ensino; por isso, combato a postura de colegas reprodutores do ideário pós-moderno. Perigosamente silenciosos, em geral, eles se recusam ao debate.

Por meio dessas teorias e práticas – que buscam facilitar a vida estudantil das novas gerações –, o ensino se torna desnecessário. A escola, perde a função. O professor, seu papel. Assim, o país vai se atolando em um estado de miséria intelectual “nunca antes visto”.

A construção dessa desconstrução do ensino se dá, originalmente, dentro das universidades. As pós-graduações – principalmente as das licenciaturas – são as máquinas de um trem rumo ao abismo. Com exceções, a mediocridade acadêmica habita tais espaços.

Todo esse preâmbulo é para tratar de mais um absurdo. Conforme a Folha de São Paulo do último dia 04, a “Escritora (Patrícia Secco) muda obra de Machado de Assis para facilitar a leitura”.

"O brasileiro, em, geral não usa mais do que quinhentas palavras para sua comunicação diária. Na língua portuguesa, há cerca de cem mil vocábulos! "



Com apoio do Ministério da Cultura, ela lançará, pelo Instituto Brasil Leitor, uma versão facilitada de O Alienista (1882) de Machado de Assis. Ela quer simplificar a leitura de clássicos de nossa literatura.

O motivo desse projeto nasceu da percepção – por parte dessa escritora – de que os “jovens não gostam de Machado”. Conforme Secco, “Os livros dele têm cinco ou seis palavras que (os jovens) não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu (ela, obviamente) simplifico isso”.

Na opinião de seu entrevistador, Chico Felitti, “Ela simplifica mesmo (...): as frases estão mais diretas e palavras são trocadas por sinônimos mais comuns (um ‘sagacidade’ virou ‘esperteza’, por exemplo)”.

Sobre isso, afirmo: trabalhos assim só reforçam a preguiça estudantil, que parece já vir de berço. A depender desse tipo de postura pedagógica, os estudantes continuarão na miséria de seus parcos conhecimentos.

Como já se sabe, o brasileiro em geral não usa mais do que quinhentas palavras para sua comunicação diária. Na língua portuguesa, há cerca de cem mil vocábulos!

Indago: que mal há em conhecê-los? Que mal há em ler as frases inteligentemente construídas por Machado?

Nesse sentido, na mesma matéria, Alcides Villaça, professor da USP, diz: “É absurdo imaginar que a função da escola seja facilitar qualquer coisa, em vez de levar (o aluno) a trabalhar com as dificuldades da vida, da crítica e do conhecimento”. Indignado, Villaça completa: “Apresentar como sendo de Machado uma mutilação bisonha de seu texto não deveria dar cadeia?”.

Em consonância com Villaça, pergunto: alguém gostaria de ver, p. ex., o sorriso de Mona Lisa – obra de Da Vinci – escancarado, à lá gargalhada de Dercy Gonçalves, por algum apreciador que quisesse “facilitar” a compreensão daquele discreto e tímido sorriso, fruto do sfumato, que é uma das técnicas da pintura?

Machado também tinha técnicas para escrever; por isso é universal. Ninguém tem o direito de mexer em obras de arte. Isso é crime contra o patrimônio cultural de um povo. E sobre o pretexto que se apresenta é desserviço ao próprio estudante, de quem não se pode tirar o direito de conhecer mais e mais.

Em tempo: o jovem Drummond – quando adepto das rupturas pregadas pelo Modernismo –, em relação a Machado, errou ao escrever que o melhor a fazer seria repudiá-lo. Décadas depois, prestou-lhe uma das mais lindas homenagens por meio do poema “A um Bruxo, com amor”.

“Bruxo do Cosme Velho” é a antonomásia de Machado.

O que é “antonomásia”?

A resposta é simples. Não é preciso chamar ninguém para facilitar...

ROBERTO BOAVENTURA DA SILVA SÁ é doutor em Jornalismo pela USP e professor de Literatura na UFMT.

*Os artigos são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do MidiaNews. 

 

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