Cuiabá, Sexta-Feira, 4 de Julho de 2025
RODRIGO RODRIGUES
04.07.2025 | 05h30 Tamanho do texto A- A+

Iracema, Sofia e o Brasil

Rever Iracema não como símbolo da entrega, mas como alerta

Em 1865, José de Alencar escreveu Iracema, um dos marcos do romantismo brasileiro. A história da índia que abandona seu povo para viver um amor com um estrangeiro não é apenas uma fábula romântica: é, sobretudo, uma metáfora sobre o nascimento do Brasil e as escolhas que moldaram, e continuam moldando, nossa identidade nacional.

 

Iracema, guardiã dos segredos da tribo Tabajara, abandona suas raízes, trai sua missão sagrada e vira as costas para sua cultura em nome de um amor proibido. Sua união com Martim, o colonizador português, representa o início de um povo novo, miscigenado, porém fundado na dor, no rompimento, na submissão. O filho desse amor, Moacir, simboliza justamente isso: o “filho da dor”, o brasileiro que nasce do conflito entre a terra e o invasor.

 

Mais de um século depois, em outra parte do mundo, o cinema nos apresentou A Escolha de Sofia. No filme, uma mãe, prisioneira em um campo de concentração nazista, é forçada a escolher qual de seus filhos será executado. Uma escolha impossível, que a destrói por dentro. A ligação entre Iracema e Sofia parece, à primeira vista, distante. Mas ambas foram colocadas diante de dilemas extremos, em que qualquer escolha significava perda irreparável. Ambas representam, em níveis distintos, o custo humano de decisões impostas por sistemas mais fortes, impiedosos e colonizadores — um pela espada, outro pelo terror.

 

A tragédia é que o Brasil continua vivendo, de forma coletiva, a “escolha de Iracema”. Como apontava o dramaturgo Nelson Rodrigues, sofremos da síndrome do vira-lata: a incapacidade de reconhecer o próprio valor, a crença persistente de que tudo que é nosso é inferior e de que a salvação só virá de fora, da cultura estrangeira, das soluções importadas, do “primeiro mundo”.

 

Negamos nossas raízes indígenas e africanas. Desprezamos a arte nacional. Ridicularizamos nosso sotaque, como se fosse marca de atraso. Ainda hoje, como Iracema, abrimos mão daquilo que somos em nome de uma promessa sedutora, mas muitas vezes vazia, de aceitação e progresso.

 

Essa autoimagem fragilizada não é apenas um problema cultural. É também político, social e econômico. Ela afeta como votamos, consumimos, nos relacionamos com o mundo e conosco mesmos. Um país que não acredita em seu próprio valor está sempre à mercê de outros, como Iracema esteve nas mãos de Martim.

 

O desafio contemporâneo do Brasil é romper esse ciclo. Rever Iracema não como símbolo da entrega, mas como alerta. Escolher a valorização da identidade nacional não significa rejeitar o mundo, e sim parar de rejeitar a si mesmo. Afinal, enquanto continuarmos a negar quem somos, viveremos como estrangeiros em nossa própria terra.

 

Rodrigo Rodrigues é empresário, jornalista e graduado em gestão pública

*Os artigos são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do MidiaNews. 

 

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