Cuiabá, Segunda-Feira, 16 de Junho de 2025
PAULO MODESTO FILHO
16.06.2025 | 05h30 Tamanho do texto A- A+

Desassossego

Choque anafilático durante procedimento odontológico me levou para a UTI

Manhã de terça-feira, temperatura amena, vento minguado, quase morno. Embora nuvens no céu anunciasse chuva, era outono. Fui a uma clínica, buscando os cuidados do cirurgião bucomaxilofacial que me atendia havia longo tempo, para extração de dente e implante. Na verdade, almejava, pelo menos, resgatar o simpático sorriso, embora o doutor, expert em reabilitação, prometesse ganhos ainda maiores. Às 9h30min, chego à Rua das Orquídeas. Na calçada, folhas secas sopradas pelo vento.

 

Numa semana anterior, atendendo a sua demanda, consultei a minha cardiologista sobre os procedimentos cirúrgicos pretendidos pelo dentista. A médica informa que não havia restrição. Confesso que precisar do nihil obstat da cardiologista foi novidade para mim. Eu já havia passado por cirurgia semelhante. Mas, claro, devo reconhecer que, pela ação do tempo, o meu corpo não é semelhante ao que já foi. Só as pirâmides resistem à passagem do tempo.

 

Como de praxe, recebe-me em seu consultório, recapitula comigo o passo a passo a ser realizado, indaga se, na véspera, eu tinha tomado o antibiótico recomendado etc. Estando tudo conforme, passamos ao gabinete. A assistente executou toda a preparação: deu-me os comprimidos e água com que ingerir – eram anti-inflamatório e analgésico-antitérmico, ela fez a antissepsia da face, aplicou sobre o meu rosto a toalha fenestrada etc. O papo era agradável, sorríamos todos com muita descontração. Recebi duas pequenas doses de anestésico, como previsto, para mais conforto na retirada de porcelana de antigos implantes fixos.

 

Colocaram-me em decúbito dorsal na poltrona. Tem início o procedimento. Passados alguns minutos, sinalizo ao dentista que há algo estranho, que não estou me sentindo bem. Ele interrompeu a intervenção e perguntou pelo que acontecia. “Estou sentindo frio nas mãos, no corpo”. Constatado o fato, verticalizou a poltrona e falou que devíamos aguardar alguns minutos – “quem sabe, passe”, observou. Ele percebeu que eu transpirava, já molhado de suor. Aferiu a minha pressão arterial: 110/50. Manifesto vontade de ir ao sanitário, pois sentia certo desconforto abdominal, além de náusea, vômito e dificuldade ao respirar. Monitora-me, indaga sobre os sintomas etc.

 

Quando sai do sanitário, ele disse que iriamos ao hospital, porque a reação de meu organismo era grave: um choque anafilático! Ensaiei uma recusa, mas foi enfático, hospital e rápido! Naquele momento, eu estava “pra lá de Bagdá”.

 

Da clínica ao PA foi rápido. Lá chegando, fui colocado numa cadeira de rodas e, já na sala de atendimento, numa cama. Tinham-me dispensado da triagem. Mesmo atordoado, percebo a ação das enfermeiras e de uma médica sobre mim. Meu dentista estava certo. A ponta dos meus dedos e as unhas tinham ficado roxas, e os braços, com vermelhidão e manchas, e eu respirava mal. Aplicaram-me adrenalina, fenergan e outros medicamentos que desconheço.

 

A pressão arterial foi novamente aferida, como também a saturação de oxigênio, que estava em 71%. Recebi a máscara de oxigênio. Preparada a veia – coletaram o meu sangue. Fui submetido a um eletrocardiograma. A equipe parecia mais preocupada com o nível de oxigênio do sangue. E essa preocupação me preocupava, estava em situação de risco.

 

Colocaram-me em decúbito dorsal na poltrona. Tem início o procedimento. Passados alguns minutos, sinalizo ao dentista que há algo estranho, que não estou me sentindo bem

Depois, já com a saturação a 95%, foi a vez da tomografia toráxica. O “eletro” não apresentava novidade. No meio da tarde já me sentia bem. A jovem médica comunicou que no âmbito do PA os cuidados estavam finalizados. Por cautela, porém, disse que iria me encaminhar para a UTI, onde eu ficaria sob observação por algumas horas.

 

Chego a UTI com fome. Até então não havia alimentado. “A solução é esperar o jantar, informa a enfermeira que me recebe, e acrescenta: “Tire toda essa roupa, aqui se fica nu”. Sorri. Gostei da acolhida. Logo eu vestia aquele avental ridículo aberto nos lados. Na troca de roupa, notei que manchas arredondadas no meu corpo estavam generalizadas, mas a pele não aparentava irritação.

 

O médico intensivista se apresentou. Conversamos sobre o problema ocorrido. Ele explicou o protocolo a ser seguido e, então, as enfermeiras ligaram-me aos aparelhos. Tive braço, tórax e mão ligados a monitores. Havia, também, o soro que gotejava lentamente “para preservar a veia”, esclareceu a enfermeira. Alguns condutores elétricos, múltiplos fios e cabos, dividiam a cama comigo.

 

Eu estava cansado, e não era para menos, dada a crítica experiência da manhã. Após jantar, eu esperava dormir, mas não consegui. O acender e apagar de lâmpadas, o incomodo da luminosidade, os cabos e fios atrelados ao corpo limitando movimento, a repetida presença da enfermagem para restabelecer sinal do equipamento à central de controle – tudo isso tornava impossível o sono.

 

Irrequieto, imagino o dia amanhecendo – na UTI a noção de tempo não é evidente. Resolvo tomar banho, desvencilho-me de aparelhos, o enfermeiro retira o acesso venoso. No banho, verifico que as manchas no corpo desapareceram. Eram 4h da madrugada. Embora ansioso para deixar a UTI, só no meio da manhã tenho alta. Em cadeira de rodas, procedimento padrão, “passeei” pelos corredores, entrei no elevador, sai dele no andar térreo, passei por pessoas e, finalmente, fui deixado à porta do hospital.

 

Na calçada, senti o sopro do ar quente tocar meu rosto. Meus olhos e ouvidos deixaram-se penetrar pelas cores e sons da cidade, que nunca me tinham parecidos tão vibrantes. Então, de repente, me pego cantarolando baixinho, só de mim para mim só, “Deixe a vida me levar...”. Um bocadinho mais, antes de a morte me tomar dela, espero.

 

Paulo Modesto Filho é engenheiro e doutor em Meio Ambiente e Biologia Aplicada, UCL-Bélgica

 

*Os artigos são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do MidiaNews. 

 

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Henrique do Carmo Barros  16.06.25 14h40
Sabendo agora, Professor Paulo, dessa passagem desagradável. Foi apenas um susto. Vida longa!
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