Agnes Blanco, de cinco anos, brincava na cidade de Bordeaux quando um vagão de trem desgovernado a atropelou levando embora a sua perna. O vagão era da Companhia Nacional de Manufatura de Tabaco, explorada pelo governo francês.
O pai, inconformado, entrou na justiça pedindo a responsabilização do Estado francês pelos danos causados a Agnes. Ele não achava justo que o Estado não respondesse pelos atos de seus agentes. O caso chegou até a última instância, que, numa decisão histórica, acabou com a irresponsabilidade civil do Estado e condenou a França a pagar à menina uma pensão vitalícia.
O ano era 1873 e inaugurou uma ruptura com a total irresponsabilidade estatal da época das monarquias absolutistas, que consagrou a máxima "o rei não erra" ("the king can do no wrong"). Como todo o poder vinha de Deus e o monarca era o seu representante na terra, ele e, por extensão, o Estado não podiam se submeter aos próprios tribunais.
O mundo então avançou para a era da responsabilidade subjetiva, que exigia a demonstração de culpa do Estado, e, finalmente, para a objetiva, que exige apenas a ocorrência de ligação entre o dano sofrido pela vítima e uma conduta estatal. É o modelo que a Constituição brasileira de 1988 adota.
Em 1998, porém, o Brasil começou a erguer os pilares da irresponsabilidade absolutista com a aprovação da lei que criou as Organizações Sociais, entidades privadas que prestam típicos serviços públicos com dinheiro público, mas não se submetem às regras de concurso e de licitação, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal de 2015.
Então veio a proliferação desenfreada da terceirização na Administração Pública, depois que o Tribunal de Contas da União decidiu que os gastos com empregados terceirizados não se sujeitavam aos limites de despesa com pessoal impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Em outras palavras, chancelou a irresponsabilidade e induziu a substituição de funcionários de carreira por empregados precários, pouco treinados e mal remunerados.
Uma grande parte das empresas terceirizadas, como meras fornecedoras do produto "trabalhador", aproveitou a oportunidade dos contratos com a Administração, embolsou o dinheiro público e deu um calote nos terceirizados, deixando o ônus com o Estado. Já o Estado, por sua vez, achou que bastava pagar a empresa contratada para se livrar do problema.
Os tribunais trabalhistas reconheceram por muitos anos a responsabilidade objetiva do Estado pelas dívidas das empresas terceirizadas até que, em 2010, o Supremo entendeu que só haveria responsabilidade se demonstrada a culpa do Estado na fiscalização dos contratos. Aparentemente, um artigo de lei valia mais que o texto expresso da Constituição.
Os juízes se adequaram à nova orientação, mas as condenações não pararam. Quem pesquisa o mercado de trabalho brasileiro ou trabalha com essa realidade vê que existe uma alta rotatividade tanto dos trabalhadores terceirizados quanto das próprias empresas terceirizadas. É comum que empresas terceirizadas abram e fechem mantendo o mesmo trabalhador prestando serviços para o mesmo contratante por anos. Muda o CNPJ, continua o empregado.
Finalmente, com a tentativa de aprovação pelo Congresso Nacional de projeto de lei de terceirização ilimitada nos setores público e privado, o retorno do rei parece iminente: os Ministros do Supremo estão divididos, cinco a cinco, entre um dever simbólico e inócuo de fiscalização pelo Estado e a simples e total irresponsabilidade.
Ao novo Ministro empossado caberá sacramentar o resultado. Entre o calote da prestadora de serviço e a irresponsabilidade do Estado, restará o trabalhador alienado dos mínimos direitos.
Em outras palavras, a decisão final a ser tomada pelo STF consagrará a substituição dos funcionários concursados, que geram responsabilidade automática do Estado, pelos terceirizados, que o exoneram absolutistamente.
Agnes Blanco tinha melhores chances na França de 1873.
Rodrigo Octavio de Godoy Assis Mesquita é procurador do Trabalho.
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10 Comentário(s).
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Sandro 07.04.17 21h44 | ||||
Eu concordo com mudanças, mas desde elas comecem de cima para baixo. Por exemplo eu vejo como um absurdo para com a independência entre os poderes, Os Senadores, e o Presidente da República escolherem aqueles que irão julgá-los por crimes, que são os Ministros do Supremo Tribunal Federal e Procurador da Republica. Essas indicações políticas que a sociedade consciente deveria cobrar, pois deveriam ser escolhidos por magistrados de carreira e com critérios objetivos. No mesmo raciocínio a escolha daqueles que irão julgar suas contas, não deveriam ser escolhidos politicamente, mas sim por critérios objetivos e ao menos metade da corte ser funcionários com reconhecida capacidade e independência política. Outro fator é o instituto da vitaliciedade, o que é vitaliciedade? É uma garantia constitucional em que o juiz, desembargador, promotor de justiça e membros dos tribunais superiores, STF, STJ, etc. mesmo que incorra em um crime cuja setença transite em julgado, ela mantenha sua função, e como punição ele é aposentado compulsoriamente (obrigado a aposentado). Eu sou favorável pela vitaliciedade como forma de garantir a independência funcional, mas com uma única exceção, em crimes que o magistrado (juiz) der causa a desvio de dinheiro público.Tivemos um exemplo, na década de 1990 o juiz Nicolau dos Santos Neto desviou um montante que hoje se atualizado é dar 1 bilhão de reais, e ainda assim hora tira hora ele consegue retornar com a aposentadoria. Aqui em Mato Grosso 9 juizes por irregularidades envolvendo a maçonaria foram aposentados compulsóriamente, e no Brasil foram 39 membros da justiça que cometeram as irregularidades e mesmo assim continuamos pagando as suas aposentadorias. Tudo que eu afirmei está nos link: 1)http://www.em.com.br/app/noticia/politica/2015/07/01/interna_politica,664042/ex-juiz-nicolau-dos-santos-neto-pede-de-volta-aposentadoria-e-bens.shtml 2) https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/12/05/afastados-por-beneficiar-maconaria-magistrados-custam-r-34-milhoes-ao-mt.htm | ||||
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Eduardo 05.04.17 17h32 | ||||
Leio isso e me entristeço e desanimo. Entristeço por todos, por meus filhos, pelos concidadãos. Desanimo, não abro um negócio a não ser que precise muito. Prefiro ser empregado ou servidor público. Não contrato empregado, nunca! É arriscado demais. Os operadores do direito trabalhista ajudam a afundar o país na miséria. Eu é que não vou rebocar o submerso com meu esforço e sacrifício. São muitas falácias num texto só. Tudo segue bem no texto até a primeira delas, quando afirma que um artigo de lei vale mais que a constituição. Que artigo? De que lei, camarada? O parágrafo 6º do art 37 fala dos danos que o agentes públicos, nessa qualidade, causam a terceiros. Uma empresa, por terceirizada que seja, quando contrata um funcionário e não o paga, não pode ser vista como agente público lesando o cidadão, mas tão somente como empregador que não paga o empregado. Não misture melancias com laranjas. Não queira confundir. Se houve entendimento do supremo e os juízes não pararam de condenar o Estado pela responsabilidade objetiva no caso de calote trabalhista é por teimosia. O empregado da prestadora terceirizada tem os mesmos direitos que o das demais empresas estabelecidas no país. Nem a mais nem a menos. Tem também as mesmas obrigações. As OSS que dão calote nos funcionários devem ser processadas, condenadas e executadas, até mesmo porque tem benefícios tributários bem claros. Que tem o Estado a ver com isso? | ||||
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hadassa 05.04.17 16h43 | ||||
já estou na segunda terceirizada fiquei 4 anos em uma e estou ha 3 meses em outra elas não tem responsabilidade com o funcionário tipo atrasa os salários ate 20 dias e ai fica aquele jogo de empurra que não pagou pq o governo não repassou ai o funcionário paga juro e despejado não cone todos esses transtornos e elas não estão nem ai com seus funcionário acho que vai ficar pior do que esta | ||||
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Barbara Garnica 05.04.17 15h45 | ||||
Melhor artigo sobre a terceirização até agora! | ||||
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Alex r 05.04.17 15h38 | ||||
Parabéns!! Vamos só analisar o caso de Presídios privatizados, se pagou 4x mais e no fim o Estado teve que indenizar por ter péssimo serviço... Oras a população gosta de ser enganada tanto verdade que continua votando em bandidos... | ||||
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