O perito criminal Daniel Soares, de 42 anos, especialista na análise de manchas de sangue, garante que essa é uma técnica que pode ser crucial para a resolução de um crime e que, mesmo sem um corpo, é possível identificar o instrumento usado e até o possível local do ferimento.
“Eu consigo, através de uma análise de manchas de sangue, dizer se aquilo foi um homicídio, um suicídio, um possível acidente. Se não tem o corpo, não tenho como analisar as lesões. Mas, a partir de algumas manchas de sangue, consigo determinar quais são os possíveis instrumentos utilizados para cometer o crime. A depender da altura, da dispersão delas no local, posso até mesmo inferir qual foi a região anatômica em que a pessoa foi lesionada", explicou o perito, que atua desde 2011 na Politec.
Daniel conta que, em um dos casos em que atuou, sua análise foi fundamental para a absolvição de um um homem acusado de feminicídio a partir das manchas de sangue. O caso se tratava de um suicídio e, segundo o perito, as manchas revelaram que ninguém, além da própria vítima, poderia ter feito o disparo.
Daniel conta que decidiu sua carreira antes mesmo de terminar o ensino médio, inspirado pelo seriado CSI. “Era motivo de chacota entre os amigos, todo mundo dava risada: ‘Esse negócio nem existe no Brasil. Tá assistindo muito seriado’. E hoje eu sou perito criminal”.
O perito falou sobre o dia a dia da profissão, os principais desafios e casos de repercussão em que atuou. Ele também percorre o país palestrando sobre a prática da profissão.
Confira a entrevista completa:
MidiaNews – Como surgiu seu interesse pela perícia criminal? De todas as especializações, por que escolheu se aprofundar na análise de manchas de sangue?
Daniel Soares – Por incrível que pareça, através do seriado "CSI". Sempre tive interesse na perícia e, com o CSI, já decidi minha profissão antes mesmo de escolher a graduação que queria fazer. Decidi que queria ser perito criminal quando ainda estava no colégio. Era motivo de chacota entre os amigos, todo mundo dava risada: ‘Esse negócio nem existe no Brasil. Tá assistindo muito seriado’. E hoje eu sou perito criminal. Sangue é uma coisa que impressiona e, conhecendo o seriado "Dexter", acabei gostando mais ainda do assunto. Quando entrei como perito, comecei a estudar cada vez mais, fiz diversos cursos voltados para análise de perfis de manchas de sangue. Em 2017, fiz o meu primeiro curso em Florianópolis (SC), com um perito federal, que me habilitou como analista de manchas de sangue. No final do ano, vou para a Holanda fazer um curso voltado para a busca de vestígios de sangue latente.
MidiaNews – Em que consiste a análise pericial quando vocês chegam à cena do crime?
Daniel Soares – A gente vai investigar o crime como um todo. A análise de manchas de sangue é só uma das ferramentas que utilizamos. Eu, como perito de local de crime, faço a análise do contexto como um todo, das lesões, que é o exame perinecroscópico. Quando tem sangue, me debruço um pouco mais sobre isso e essas análises, muitas vezes, me trazem informações cada vez mais completas de como foi o fato. Não somente da dinâmica, mas também elementos que podem me levar à autoria. Eu consigo, muitas vezes, através de uma análise de manchas de sangue, pensando no contexto de locais envolvendo morte violenta, dizer se aquilo foi um homicídio, um suicídio, um possível acidente. Se, de repente, não tem o corpo, não tenho como analisar as lesões. Mas, a partir de algumas manchas de sangue, consigo determinar quais são os possíveis instrumentos utilizados para cometer o crime. Há manchas muito específicas para cada tipo de instrumento. A depender da altura, da dispersão delas no local, posso até mesmo inferir qual foi a região anatômica em que a pessoa foi lesionada. São uma série de análises que me trazem maior robustez na hora em que estou levantando a prova técnica.
MidiaNews – Como é a rotina de um perito criminal hoje em Mato Grosso?
Daniel Soares – Depende. Tem o expediente que vai das 8h às 18h e abrange diversas gerências. Tem a de Computação Forense, que analisa celulares, computadores e mídias eletrônicas. Tem a gerência de Áudio e Vídeo, que faz análise de imagens captadas em cenas de crime e acidentes de trânsito. Temos a área de Documentoscopia, que analisa documentos, assinaturas falsas etc. A área de Identificação Veicular, que investiga se um veículo recuperado de furto, por exemplo, tem algum tipo de adulteração no chassi. Tem também a área de vestígios de impressão de pele.
Já a rotina do perito de local, das externas, é totalmente imprevisível. A gente está ali 24 horas de plantão. E conforme vão chegando as ocorrências, nós vamos atendendo. Na Capital, existem equipes especializadas; no interior, não. Lá, o perito que está de plantão é o que chamamos de “clínico geral”. Ele atende desde acidente de trânsito até homicídio, furto em residência, latrocínio... tudo o que chega, ele vai abraçar. Na região metropolitana, temos a Gerência de Perícias em Acidentes de Trânsito. Tem também a Gerência de Perícias em Mortes Violentas. Ficamos de plantão 24 horas e, conforme "canta" a ocorrência, somos dois ou três por dia nessa gerência, e daí é uma loucura. A gente atende desde mortes suspeitas até chacinas com cinco, seis, sete pessoas assassinadas. Existem locais extremamente fáceis de acessar e outros de difícil acesso, onde precisamos percorrer muitas horas de estrada de chão, ou onde não é possível chegar a pé. Às vezes, é preciso ir de barco ou contar com o auxílio de alguém que conheça bem a região.
MidiaNews – Isso dificulta muito para carregar os instrumentos que vocês precisam para fazer as perícias?
Daniel Soares – Muito. Quando temos longos deslocamentos fora da viatura, precisamos planejar bem o que e como levar. Muitas vezes, tenho que caminhar dois ou três quilômetros, pegar um barco… e como fazer isso carregando quatro, cinco, seis maletas? Eu levo uma mochila que atende grande parte das minhas necessidades do dia a dia e uma maleta com equipamentos sobressalentes. Mas, em um local com disparo de arma de fogo, por exemplo, tenho um kit de trajetória balística; se for um local escuro, levo tripés com holofotes, luz forense, plaquetas e outros elementos. Se precisar de escalas, tenho uma maleta exclusiva para isso. Em locais com disparos de arma de fogo, há diversos estojos e projéteis espalhados; se for em mata, é difícil localizar sem o auxílio de um detector de metais. Ainda que eu consiga encontrar os vestígios sem o detector, posso acabar deixando um ou outro para trás.
Então, precisamos saber exatamente qual é a tipicidade daquela ocorrência. É um suicídio? Um homicídio? Faca? Arma de fogo? Quanto mais detalhes passam para a gente, melhor conseguimos selecionar os equipamentos necessários para fazer uma perícia de qualidade e auxiliar a Justiça da melhor forma possível. A perícia não trabalha para A ou B. Se a Polícia Civil encontrou um suspeito, não buscamos elementos para incriminar ou inocentar aquele indivíduo. Buscamos elementos que possam apontar uma possível autoria, seja essa pessoa ou não.
MidiaNews – Acredita que há uma glamourização da profissão por causa de filmes e séries?
Daniel Soares – Com certeza. E o glamour que a Globo não mostra, eu mostro no meu Instagram. A gente tem cadáveres em esgoto, em avançado estado de putrefação, e que precisamos manusear, fazer o exame perinecroscópico, o exame de local. A gente tem que retirar aquele cadáver de onde ele está para levar ao IML, para que o médico legista e o técnico de necrópsia possam fazer o seu trabalho. Tem muito perrengue que a gente passa e que você nunca vai ver num seriado. As coisas bonitas e polêmicas eles mostram, mas o dia a dia nem sempre é tão glamouroso como aparece na televisão. Ele é um pouco mais sujo do que isso.
MidiaNews – Com o aumento das séries que mostram como os criminosos atuam e de que forma são descobertos, houve algum impacto no desfecho dos crimes? Os criminosos estão mais cuidadosos?
Daniel Soares – Eu acredito que deva sim haver uma interferência, mas não única e exclusivamente por conta dos meios de comunicação e das formas como as coisas são abordadas. Particularmente, não acho bacana quando vejo alguém dando riqueza de detalhes de como algo foi feito, porque o criminoso mais atento vai pensar: “Opa, se isso aqui caiu pro fulano, vou mudar”. Mas o meio de buscar informação é muito simples: você faz uma busca na internet e aparecem milhares de formas de como fazer aquilo. Isso acaba facilitando. Hoje, até mesmo o crime organizado tem pessoas com instituições especializadas que fazem monitoramento das vítimas por drone, para depois cometer o crime. Então, a própria tecnologia acaba facilitando para os criminosos.
MidiaNews – Existe algum tipo de pessoa que não se daria bem na profissão?
Daniel Soares – Tem muitas. Uma pessoa que não gosta de corpo, que tem medo de sangue? Com certeza. Tem sessões onde se trabalha só com papel e outros elementos. Mas uma pessoa que não gosta de estudar, essa não se daria bem na área da perícia, porque constantemente temos que buscar atualizações, fazer cursos, pós-graduações, ler livros, artigos, usar cada vez mais a tecnologia. Hoje, nas minhas cenas de crime, estou começando a fazer imagens 360º e tour virtual, igual você vê em museu. Estou fazendo isso com as minhas cenas de crime. A pessoa vai caminhando pela cena com imagens 360º e, quando vê um vestígio, pode clicar naquele vestígio, que abre uma série de fotos em 2D. E, se quiser tirar medidas, consegue também.
As coisas que a gente tinha dentro da criminalística, até mesmo quando entrei em 2011, já evoluíram muito. E a gente tem que incorporar essas tecnologias. Até mesmo a análise de manchas de sangue mudou: terminologias que antes eram utilizadas hoje já não são mais. Existem uma série de técnicas para fazer o levantamento que são diferentes daquelas utilizadas há 15, 20 anos. Então, uma pessoa que não é adepta a se atualizar, a estudar, a perícia não é uma área para ela. Porque os crimes vão evoluindo, e a gente precisa acompanhar essa evolução. A perícia tem a função de utilizar a ciência a favor da Justiça para poder solucionar crimes.
MidiaNews – Em mais de uma década como perito, algo mudou na forma como você vê o crime e a Justiça?
Daniel Soares – Bastante. A gente vê que há impunidade, mas quando você faz um trabalho bem feito, amarradinho, seguindo todos os padrões legais, dificilmente aquele trabalho é derrubado. A gente recebe, pelos meios de comunicação, informações pinceladas, recortes da informação real. E aí você fala: “Mas o indivíduo cometeu tudo isso, por que ele está solto?” Às vezes foi porque não se seguiu, por exemplo, uma cadeia de custódia rígida no processo, ou porque existem elementos que não foram levantados, que não conseguiram provar a materialidade ou a autoria. Algumas falhas processuais. E, com o tempo, a gente vai vendo que quanto mais legalmente amarrado o trabalho é feito, mais difícil fica uma pessoa culpada ficar impune. Então, começamos a tentar fazer cada vez mais tudo pautado no que a lei determina. Ainda que isso acabe enrijecendo algumas etapas, depois você vê um resultado melhor do seu trabalho.
MidiaNews – O que mudou do início da sua carreira até hoje em relação à tecnologia na perícia criminal?
Daniel Soares – Hoje temos muito mais auxílio, por exemplo, de drones. O uso de scanner 3D, esse próprio tour virtual que faço nas cenas, com imagens 360°, tecnologias mais precisas para fazer diversas determinações. Você tem, dentro do IML, por exemplo, equipamentos que antigamente não existiam. Antes era só o raio-x tradicional. Hoje existem scanners corporais, como o FlatScan. Temos tecnologia para quebrar criptografia de senhas em equipamentos eletrônicos, como o Cellebrite. Tudo isso traz um número maior de respostas na busca pela solução dos crimes, coisas que eu não via quando entrei, em 2011, há 14 anos.
A tecnologia forense vem avançando e buscando respostas que antes nós não tínhamos, principalmente na área de computação e elementos gráficos. A gente consegue, com uma imagem de drone, recriar o local em 3D. Já vi colegas fazendo isso: sobem o drone em um acidente de trânsito, ou escaneiam um veículo danificado, e a partir dessa nuvem de pontos criada no escaneamento, conseguem sobrepor uma imagem de um veículo semelhante, como um Jeep Compass, por exemplo. Assim, é possível comparar com o carro acidentado e calcular a energia necessária para causar aquela deformação. Com isso, estimar a velocidade que o carro estava no momento da batida.
MidiaNews – O tour virtual que você começou a fazer fica disponível somente para a Polícia ou, eventualmente, poderá ser acessado pelo público?
Daniel Soares – Ele vai chegar aos operadores do Direito, promotor, juiz. Eu estou começando a inserir esses tours nos meus laudos com um link e uma senha, e somente quem tem acesso ao laudo poderá acessar esses elementos. Então, o delegado, no momento em que estiver lendo o laudo, se quiser olhar a cena, vai entrar naquele link, colocar a senha e conseguir fazer esse tour virtual dentro da cena de crime com todos os elementos que foram levantados.
O promotor, se precisar mostrar isso em plenário, ele consegue mostrar exatamente como estava a cena, como os vestígios estavam dispostos e explicar como o crime aconteceu. O júri, olhando aquilo ali, o juiz, se tiver alguma dúvida, consegue mexer na cena como um todo e identificar os vestígios.
MidiaNews – Qual é o peso do tour virtual em relação às imagens 2D? Como isso interfere na análise do laudo?
Daniel Soares – Ele permite uma visão mais completa da cena. Mesmo não estando lá, o operador do Direito consegue enxergar a cena e observar outros elementos que podem ser de interesse, não necessariamente pericial, mas que ajudam na persecução da justiça.
A perícia trabalha com a materialidade, a autoria, a dinâmica, a gente entra na cena e busca esses elementos. Mas o delegado, o juiz, o promotor, muitas vezes, além desses elementos essenciais, buscam outros dentro da cena que auxiliam na teoria do crime. E o fato de eles poderem, mesmo não estando presentes, mexer e buscar esses elementos facilita bastante.
MidiaNews – Quais são hoje os maiores desafios da profissão?
Daniel Soares – Principalmente o custo das soluções, que não são baratas. O tour virtual, por exemplo, requer equipamentos que eu adquiri, licença de software, só essa licença custou 500 euros. Tem scanner 3D que custa R$ 650 mil. Então, o custo ainda é muito elevado, e o Estado não investe tanto nessas soluções, infelizmente.
Aos poucos, esses investimentos vêm sendo buscados, mas ainda é difícil [fazer] compreender que comprar equipamentos para perícia, muitas vezes parecendo simplesmente um tripé com uma câmera que custa R$ 600 mil, vai ajudar na Justiça. Sendo que com esse dinheiro, poderiam comprar 50, 100 armas, coletes, viaturas e equipar policiais. Ainda não quebramos esse paradigma. Fazer um exame de DNA custa de R$ 200 a R$ 300. Se fizer 10, já dá R$ 2 ou R$ 3 mil. Isso cria uma barreira, porque para gerir uma instituição como a Politec é necessário muito dinheiro.
Outra coisa necessária, e que também não é barata, é a capacitação. Só a inscrição da capacitação que vou fazer na Holanda custou R$ 15 mil. Além disso, tem passagem, diária. Uma capacitação dessas muitas vezes não sai por menos de R$ 60, R$ 70 mil. Muitas vezes, o servidor acaba tirando isso do bolso, como no meu caso. Não são só as soluções tecnológicas. Não adianta trazer um scanner se eu não capacitar as pessoas para usá-lo, se não tiver servidor para operar.
MidiaNews – Já teve dificuldade em se desvincular emocionalmente de algum caso? Como lida com isso?
Daniel Soares – Sempre tem. Principalmente para nós, que somos da área de mortes violentas e trabalhamos com homicídios e suicídios, a carga é muito grande. Dia após dia, a gente vê gente morta em todo plantão, e um crime mais atroz do que o outro. Essa carga emocional acaba nos atingindo direta ou indiretamente. Ainda que eu não esteja de plantão, eu estou revivendo aquele crime dia após dia, enquanto estou fazendo o laudo. Acho que a gente precisa ter válvulas de escape. Família, amigos… Gosto muito de esporte, pratico academia, faço jiu-jitsu. Gosto de tocar violão, de juntar com os amigos. Isso ajuda a aliviar e manter a gente mais centrado. Mas pessoas que não têm uma válvula de escape, muitas vezes, acabam se afetando muito e de forma muito mais rápida.
MidiaNews – Você atuou em casos de bastante repercussão, como foi a morte de Roger André Soares da Silva, assassinado com mais de 30 facadas e posicionado em formato de cruz após a morte. Em uma entrevista, você disse que “nunca viu algo semelhante”. O que mais te marcou nessa ocorrência?
Daniel Soares – Foi o terceiro assassinato dele. Era um assassino em série. Ele já tinha cometido outros dois, com modus operandi bem semelhante, em outros estados, e já estava com uma vítima meio que planejada. Ele foi preso em São Paulo antes de cometer esse quarto assassinato. Você via a frieza da pessoa ao organizar toda a cena. Ele desenhou até três cruzes na parede. Você vê que a pessoa, após o fato, caminhou pela cena, organizando a cena. Ele se limpou, foi tomar banho. Tinha elementos que me indicavam que ele se machucou e tomou remédio. Ele tentou organizar a casa, limpar antes de sair, daí viu que não tinha muito como. Ainda que não fosse um crime premeditado – não sei se foi –, mas todo o depois... A gente vai tendo contato com o pior do pior do pior do ser humano. Como uma pessoa é capaz de, depois de tudo o que foi feito, ainda ter atitudes pós-fato dessa forma?
MidiaNews – Você também atuou na chacina de Colniza, onde nove pessoas foram assassinadas. Como foi lidar com a cena e o volume de vítimas?
Daniel Soares – Foi um grande desafio, do começo ao final. Já era fora da minha área de operação, então nós tivemos que pegar avião e barco. Tudo teve que ser pensado. Eu não podia levar todos os materiais que queria. Outros colegas iam operar também, e eles também precisavam levar materiais. O espaço no avião é muito restrito. Então já começa por aí. A gente tem que ter um planejamento inicial da operação. O que eu vou levar, o que vou deixar pra trás? O que cada coisa que eu deixar pra trás pode trazer como prejuízo? Porque se eu deixo um equipamento, certamente algum prejuízo será gerado. Mas esse prejuízo pode ser mitigado de outra forma?
Chegando lá tinha as dificuldades de operar no território. Precisamos de apoio de barco, viaturas 4x4. Eu estou indo de avião e tenho que utilizar a estrutura do Estado e de outras instituições coirmãs. E, muitas vezes, como naquele caso, elas não tinham barco. A gente teve que conseguir apoio da população. Não tinha combustível.
Teve o apoio de um vereador que doou combustível. Tivemos que usar o apoio dos mateiros que conheciam a região. Tínhamos uma distância a ser percorrida em um tempo muito curto. Eu não sabia se os corpos estariam lá ou se teriam sido retirados.
Tudo começou com muito planejamento. Graças a Deus, eu já tinha feito alguns cursos sobre desastres em massa, sobre identificação de vítimas. Isso me auxiliou nesse caso. Eu tive que andar, entre o ponto inicial e aonde a gente voltou para o barco, quase 30 km ao longo do dia. Num terreno lamacento, estava chovendo. Tinha uma subida que a gente dava dois passos e escorregava um para trás. E tudo isso antes do escurecer. Porque não era só eu terminar a perícia, eu ainda tinha o deslocamento de barco, mais uma hora, e eu não podia fazer isso num rio escuro, sem visibilidade para navegação.
MidiaNews – E os corpos, nesse caso, estavam todos próximos um do outro?
Daniel Soares – Não, estavam espalhados pelo terreno. Só que eles haviam sido retirados pela Polícia. Quando eu estava no meio do deslocamento, encontrei esses corpos na caçamba de duas viaturas. Aí já comecei um trabalho inicial de individualização desses corpos e uma possível identificação para auxiliar os papiloscopistas ou quem fosse fazer os exames de identificação.
Tiramos os corpos da caçamba, criamos técnicas para preservar a luva cadavérica, buscando elementos de identificação. E com as pessoas que estavam ali próximas, ainda que os cadáveres estivessem em avançado estado de putrefação, pelas vestes, por uma tatuagem ou outro elemento, fomos levantando as possíveis identidades daqueles corpos. Se o papiloscopista conseguiu pegar a digital do indivíduo é muito mais fácil eu buscar, ao invés de todas as pessoas que vivem na região, entre três possíveis nomes. A equipe trabalhou muito bem, era muito dedicada. Em um dia, conseguimos identificar todos os nove cadáveres e entregar para as famílias. Foi um trabalho em tempo recorde, por conta da sinergia que existia entre a equipe.
MidiaNews – Há algo que ainda te surpreende nas cenas de crime?
Daniel Soares – Sempre tem. Cada cena de crime traz algo novo, algo que a gente acaba aprendendo, que acaba nos impressionando. A gente não tem como prever tudo o que é possível acontecer em um local de crime. Esses dias mesmo atendi um caso em que a pessoa tinha duas lesões que acredito terem sido facadas, regiões que sangraram muito, e, ainda assim, ela se deslocou por toda a cena, vindo a morrer do lado de fora da residência, a uns 30 metros de onde estava inicialmente. Fomos buscando todos os elementos para determinar essa dinâmica.
O próprio atendimento que fiz em Várzea Grande, dentro de um condomínio - que passou na mídia -, os indivíduos mataram dois dentro de um apartamento, um deles tentou fugir do condomínio e foi emboscado do outro lado, deram vários tiros e ainda foram lá e esfaquearam o rosto dele. Então, a gente sempre encontra algo que impressiona em uma cena de crime.
MidiaNews – E no caso de feminicídios, há alguma especificidade nesse tipo de crime?
Daniel Soares – Temos vários elementos que precisamos buscar, que são diferentes de um homicídio. No caso de feminicídio, além de todos os elementos de um homicídio comum, é necessário buscar elementos de violência simbólica, que possam ser utilizados pelo delegado, pelo promotor, pelo juiz, para enquadrar aquele caso como feminicídio.
Regiões como o rosto, partes tipicamente femininas, lesões nessas áreas, além de elementos de violência pregressa, porque, muitas vezes, a vítima de feminicídio não sofreu apenas aquela lesão fatal, ela já vinha sendo agredida de forma progressiva.
Nem toda morte de mulher é, de fato, um feminicídio e, para que ele seja bem enquadrado e o autor responda por esse crime, o perito precisa estar muito atento à cena. A Polícia também tem que estar atenta a esses elementos. Caso contrário, a defesa pode usar a ausência desses elementos para alegar que foi um homicídio, e não um feminicídio. São muitas nuances que precisam ser observadas no local de crime, descritas no laudo pericial e bem fundamentadas dentro do inquérito, para que a gente não permita, de forma alguma, que o crime fique impune ou que o autor pague menos do que deveria pagar.
MidiaNews – Tem algum caso que tenha marcado a sua carreira?
Daniel Soares – Tem alguns muitos. Mas o que mais me chocou não é um crime de fato. Casos que envolvem crianças sempre são muito marcantes. Um dos primeiros que atendi foi de um bebê que veio a óbito. Ele regurgitou e isso obstrui suas vias aéreas e ele faleceu. Isso é algo que eu não esqueço. Vimos todos os sinais de asfixia e não era um crime, foi uma fatalidade. Na época, eu nem tinha filhos, mas foi algo que me marcou bastante e que eu lembro até hoje. Foi o caso mais marcante que eu tive.
MidiaNews – Quais os principais elementos em que você se atenta em uma cena de crime?
Daniel Soares – Como analista de manchas de sangue, uma das primeiras coisas que gosto de analisar e destrinchar ao máximo – porque me trazem muitas respostas – são as manchas de sangue. Tem manchas que indicam deslocamento, busco elementos que vão mostrar todo o trajeto da fonte de sangue, seja da vítima, seja do autor do crime ferido. Depois, começo a analisar como a cena aconteceu. Onde o autor pode ter encostado? A partir disso, passo a buscar impressões digitais, elementos de DNA… Em seguida, analiso os instrumentos presentes na cena. Muitas vezes há uma arma. Quando faço um levantamento de local de crime, minha cabeça está sempre voltada a buscar a maior quantidade possível de elementos que possam me levar à autoria.
Eu não me contento apenas com a materialidade e a dinâmica do crime. A população quer que o crime seja solucionado e é isso que eu, como cidadão, também espero da Polícia. Não posso fazer menos do que isso quando atendo uma cena de crime. Para isso, utilizo todos os conhecimentos que tenho: balística, impressão digital, manchas de sangue e todas as outras áreas que estudei.
MidiaNews – Já se deparou com casos em que a análise de manchas foi decisiva para esclarecer uma dinâmica criminal?
Daniel Soares – Tem. Inclusive, teve um caso que, se não fossem as manchas de sangue, um inocente poderia ter sido preso. Foi um caso em que não se sabia se era um homicídio forjado como suicídio ou se, de fato, era um suicídio. Quando eu estava analisando a cena, chegaram informações de que aquela mulher tinha discutido com o ex-marido alguns dias antes do fato, e ele tinha falado que ia dar um tiro na cara dela. Poucos dias depois, ela apareceu com um tiro bem no meio da face, na região temporal. A primeira coisa que se imaginou foi que tivesse sido um homicídio, que o ex-marido tivesse matado ela. Entretanto, começamos a analisar a cena, e as manchas de sangue foram cruciais para determinar que aquilo, de fato, era um suicídio. Havia manchas de sangue ali que não existiriam se fosse um homicídio, naquela posição em que estavam, da forma como estavam dispersas. A única forma possível era se ela mesma tivesse dado o tiro. O indivíduo foi inocentado.
MidiaNews – Você acredita que existe crime perfeito?
Daniel Soares – Não. Existem crimes que, muitas vezes, não foram possíveis de serem solucionados com as ferramentas que foram utilizadas naquele momento. Mas crime perfeito, não. Como o próprio [Edmond] Locard já diz: ‘Todo contato deixa uma marca’. Eu, estando aqui neste local, células epiteliais minhas que encostaram nesta mesa ficaram. Eu falando, pequenas gotículas de saliva acabaram entrando em contato com a mesa, fios de cabelo… Esses elementos indicam que eu estive aqui. Muitas vezes, não temos ferramentas para buscar esses elementos. Sempre que alguém estiver em algum lugar, vai deixar algo dele ali e vai levar algo daquele lugar com ele. Se você tiver as ferramentas certas para fazer uma busca completa do local e encontrar elementos que levem à possível autoria, esse crime será solucionado. Se não, é onde alguns crimes acabam ficando impunes.
MidiaNews – Você também é palestrante e professor. Como tem sido essa troca com alunos e profissionais da área?
Daniel Soares – É extremamente enriquecedor. Eu rodo a maior parte das polícias científicas do Brasil, ministrando instruções sobre manchas de sangue e também em faculdades, falando sobre a área da perícia criminal, sobre local de crime. E, a cada dia, eu aprendo alguma coisa. Com isso, melhorei ainda mais os procedimentos que uso para levantar meus locais de crime. Muitas vezes, estou ali como palestrante, e alguém vem — seja aluno de graduação, aluno de colégio ou até mesmo colegas da área — e pergunta: ‘Você fez tal coisa? Você coletou tal vestígio? Fez tal exame?”. Poxa, eu não tinha pensado nisso! Então, na próxima vez já começo a fazer isso também. Dia após dia, a ciência vai evoluindo. Então, para eu poder ensinar, preciso acompanhar essa evolução.
MidiaNews – Hoje em dia, como profissional, você olha para aqueles seriados que inclusive o inspiraram a se tornar perito com um olhar diferente? Enxerga erros na prática da profissão, por exemplo?
Daniel Soares – Muitos. Muitos mesmo. Mas eu entendo que aquilo ali é uma ficção. Estou assistindo com a intenção de me distrair. Então, tento assistir com o mínimo de julgamento possível. Mas tem umas coisas que são muito gritantes. Você fala: ‘Não, isso aqui não é possível, gente. Assim não dá!’.
O que mais me chama atenção é quando vejo uma pessoa levando um tiro e voando para trás. Ou então toma um tiro e já cai. E na vida real não é assim. Quem estuda um pouquinho de balística sabe que essas coisas não acontecem. A única forma de incapacitação imediata é quando o tiro acerta a região do sistema nervoso central, que é onde os snipers, os atiradores de comprometimento, miram. Fora isso, se eu der um tiro no peito, no coração, a pessoa ainda vai ter uma série de movimentações voluntárias e involuntárias. Então, a pessoa tomar um tiro e já cair? Difícil. Voar para trás? Certamente não vai. E é o que a gente mais vê em filme, em seriado. O carro capota uma vez e explode. Não é tão simples assim fazer um carro explodir.
MidiaNews – Que mensagem deixa ao nosso leitor?
Daniel Soares – Para quem tem interesse em seguir nessa área, não fique preso ao seu estado de origem. Ame a profissão e esteja disposto a segui-la onde houver oportunidade. Esteja com os horizontes abertos para novas experiências. E a perícia vai te encantar, independentemente do estado onde estiver.
Outra coisa: esteja disposto a estudar sempre. Você acha que vai estudar muito só para passar no concurso? Não. Você vai estudar muito mais depois que entrar.
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2 Comentário(s).
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SEBASTIAO DIAS 04.08.25 08h51 | ||||
Perito qualificado e dedicado, parabéns nobre colega. | ||||
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Paulo Carvalho 03.08.25 13h13 | ||||
Sou muito admirado desses malucos do bem. | ||||
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