Cuiabá, Domingo, 23 de Novembro de 2025
GONÇALO ANTUNES
23.11.2025 | 05h30 Tamanho do texto A- A+

A filosofia da crise

Para Mário Ferreira, a crise começa quando confundimos meios com fins

Há crises que são eventos — guerras, recessões, quedas de governos — e há a crise que é estrutura: um modo de estar no mundo quando os fins se obscurecem e os meios multiplicam-se sem direção. É esta segunda que Mário Ferreira dos Santos, o mais prolífico filósofo brasileiro do século XX, examinou com rigor cartesiano e língua brasileira. Em sua “filosofia da crise”, dispersa por livros e ensaios que dialogam com sua lógica concreta e sua metafísica dos universais concretos, ele propôs uma anatomia do nosso mal-estar: não vivemos apenas uma turbulência histórica, mas uma desordem axiológica, a inversão silenciosa pela qual técnicas, índices e aparelhos tomam o lugar das finalidades humanas.

 

prova pela qual retomamos a hierarquia entre o que apenas funciona e o que verdadeiramente se justifica

Para Mário, a crise começa quando confundimos meios com fins. A ciência torna-se scientismo, a economia vira economismo, o Estado escorrega para estatolatria, e a política, sem telos, reduz-se à administração de expectativas. O resultado é conhecido: massificação, fragilidade das convicções, fetichismo da novidade e a crença de que toda verdade é provisória e negociável. Não é a crítica lúcida das tradições; é a sua erosão por cansaço. Muda-se de opinião como se troca de aplicativo, e a consciência, desancorada, passa a confundir liberdade com disponibilidade infinita.

 

O filósofo diagnostica, então, quatro deslocamentos. Primeiro, o epistêmico: o saber especializado multiplica certezas parciais e, somado, não produz sentido. Segundo, o ético: a escala dos valores colapsa; coragem, justiça e prudência perdem hierarquia e viram adereços retóricos. Terceiro, o político: a representação sem critérios se curva ao clamor imediato, e a técnica governa onde faltam razões. Quarto, o existencial: homens e mulheres vivem como se estivessem sempre “de passagem”, incapazes de compromisso, com medo de qualquer forma de permanência — um nomadismo interior.

 

Contra isso, Mário não oferece saudosismo nem panaceias. Propõe reconstrução: recompor a ordem do saber (lógica rigorosa), reerguer a ordem dos valores (ética da finalidade) e devolver ao agir a sua teleologia (política como arte de orientar meios a bens humanos). Sua lógica concreta não é jogo de símbolos: é método para reatar conceitos à experiência, recolocando o real como medida do discurso. A metafísica dos universais concretos recusa tanto o nominalismo dissolvente quanto o abstracionismo estéril: há formas estáveis que informam a vida comum — pessoa, verdade, bem, justiça — e que podem ser reconhecidas na história sem serem devoradas por ela.

 

Daí duas teses incômodas. A primeira: não há neutralidade. Toda técnica carrega uma aposta sobre o humano; todo número expressa uma visão do bem. Se não tornamos explícitos os fins, acabamos governados por meios que se autolegitimam. A segunda: não há cultura sem hierarquia de valores. Igualdade não é nivelamento; é justiça no distribuir, reconhecimento no conviver e prioridade aos vulneráveis. Sem gradação entre o que é preferível e o que é intolerável, a democracia vira cálculo de likes.

 

O remédio? Paideia e ascese — palavras antigas para problemas atuais. Paideia: educação para discernir fins, ordenar afetos, cultivar atenção ao real. Ascese: disciplina interior para dizer não ao fluxo, ao ruído, ao espasmo de opinião. Não se trata de moralismo, mas de responsabilidade ontológica: o ser humano não é um agregado de instantes; é uma vocação à forma, ao sentido, à promessa. Uma sociedade que abandona essa exigência renuncia a sua liberdade e terceiriza a própria alma.

 

Por fim, a “filosofia da crise” de Mário Ferreira é um convite à coragem intelectual. Em vez de se resignar ao niilismo elegante, ele pede que se reabra a pergunta pelos bens que merecem ser amados e pelas verdades que valem o sacrifício. A crise, então, deixa de ser catástrofe e vira critério: prova pela qual retomamos a hierarquia entre o que apenas funciona e o que verdadeiramente se justifica. E, ao aceitar o teste, talvez se descubra que o futuro não é invenção do acaso, mas obra de uma razão que voltou a ter fins.

 

É por aí...

 

GONÇALO ANTUNES DE BARROS NETO (Saíto) é da Academia Mato-Grossense de Letras (Cadeira 7). 

*Os artigos são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do MidiaNews. 

 

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