A democracia não é um móvel pronto: é obra em andamento, feita de instituições, hábitos e desacordos. Costuma-se defini-la por eleições livres. É pouco.

Como lembrava Norberto Bobbio, o método eleitoral é condição necessária, não suficiente: contam também direitos fundamentais, publicidade dos atos e alternância no poder.
Joseph Schumpeter foi além ao chamar de “método competitivo” a disputa porvotos; útil, mas estreito, porque a qualidade da vida democrática não se mede só pelatroca de governantes, e sim pela capacidade de conter o poder e incluir vozes.
Quais seriam os fundamentos para uma plenitude democrática? A primeiraâncora está em Montesquieu: separar funções, equilibrar competências, multiplicar freios. Democracia é moderação institucional.
A segunda vem de Tocqueville: sem associativismo, imprensa plural e costumes de autogoverno, as regras viram casca; o risco é a “tirania da maioria” por conformismo.
A terceira, de Benjamin Constant e Isaiah Berlin: proteger a esfera individual contra a vontade onipotente do “todo” — a liberdade moderna precisa de direitos e de razões, não de virtude compulsória.
Pela tradição republicana, ser livre é não ser dominado: não basta ausência de interferência; é preciso que ninguém possa mandar arbitrariamente (Philip Pettit e Quentin Skinner).
Daí a exigência de leis impessoais, controles independentes e condições materiais que evitem dependências que silenciam. A isso, John Stuart Mill agrega o núcleo da liberdade de expressão: calar dissidências empobrece a verdade e infantiliza a cidadania. Quando a crítica é punida, o voto vira ritual.
Mas a democracia também é deliberação. Para Jürgen Habermas, decisões legítimas pedem publicidade de motivos e reciprocidade argumentativa: governar é convencer com razões acessíveis a cidadãos razoáveis. Tal perspectiva pode ser chamada de razão pública: em temas fundamentais, as justificativas devem falar a todos, não só a convertidos. Sem esse “ethos”, cresce o populismo plebiscitário, que troca debate por aclamação (Rawls).
O olhar sociológico ajuda a aterrar o ideal. Em Weber, toda autoridade precisa de legitimidade; quando só o carisma conta, a política degenera em culto à personalidade, os procedimentos viram ornamento e a decisão passa a oscilar ao sabor do líder.
Outro grande destaque do pensamento sociológico, Émile Durkheim lembra que instituições são fatos sociais: exteriores aos indivíduos, coercitivas e dotadas de vida própria. Elas resistem a voluntarismos e não se dobram ao ímpeto de “reinventar tudo” a cada crise. Quando laços comuns afrouxam, sobrevém a anomia — perda de referências normativas — e os conflitos se agravam.
Em outra vertente, Pierre Bourdieu ilumina a democracia pelo ângulo da linguagem como poder. Os espaços públicos são “campos” com regras próprias, nos quais agentes disputam capital simbólico — prestígio, autoridade, credibilidade — para definir a doxa, isto é, o que passa por “natural” ou “razoável”.
Quem domina o código legítimo (técnico, jurídico, econômico) não apenas descreve o mundo: faz valer uma certa visão do mundo.
É assim que o juridiquês, o economês, o tecnicismo administrativo e certos editorialismos funcionam como fronteiras invisíveis: transformam diferenças de capital cultural em diferenças de voz, produzindo violência simbólica — a aceitação, pelos próprios dominados, de classificações que os silenciam.
E as tensões contemporâneas? Plataformas digitais aceleram o debate, mas premiam o ruído. A economia da atenção favorece certezas instantâneas e linchamentos morais.
O antídoto não é censura; é transparência ativa, educação midiática, jornalismo rigoroso e instituições que exponham dados, estudos de impacto e alternativas
rejeitadas.
Assim, democracia não é unanimidade; é conflito civilizado. Hannah Arendt lembrava que a política nasce quando nos reunimos para falar e agir; o espaço público é conquista, não automatismo.
É por aí...
Gonçalo Antunes de Barros Neto é formado em Filosofia, Sociologia e Direito.
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