Cuiabá, Quarta-Feira, 30 de Julho de 2025
VINÍCIUS SEGATTO
29.07.2025 | 05h30 Tamanho do texto A- A+

Processo penal fora do tempo

Reforma legislativa deve priorizar a proteção de direitos fundamentais

Enquanto o mundo digital avança em velocidade impressionante, o Brasil ainda se vale de normativas processuais elaboradas em um período em que a rádio AM e a correspondência manuscrita constituíam os principais meios de comunicação. Nesse cenário, permanece-se aplicando o Código de Processo Penal, datado da década de 1940, para apuração de crimes digitais.

 

A reforma legislativa é urgente e deve priorizar a proteção de direitos fundamentais e a segurança jurídica nas investigações criminais

O Código de Processo Penal e o Código Penal brasileiros possuem mais de oitenta anos de vigência. Ambos os Decretos-Leis foram promulgados durante o chamado "Estado Novo", período autoritário conduzido por Getúlio Vargas, marcado por censura, centralização do poder e restrições às liberdades civis. Consequentemente, trata-se de legislações concebidas em ambiente político não democrático, alheias aos ideais de um Estado de Direito pautado por garantias constitucionais. Dessa forma, os referidos diplomas legais não foram submetidos ao devido processo legislativo democrático, com deliberação pelo Congresso Nacional.

 

Ainda que reformas pontuais tenham sido implementadas ao longo das décadas, o núcleo estrutural do processo penal brasileiro permanece atrelado a premissas autoritárias e obsoletas. Sob essa ótica, revela-se absolutamente descompassado aplicar um modelo processual concebido antes mesmo da popularização da televisão colorida para lidar com questões complexas como vigilância em massa, rastreamento por inteligência artificial e coleta remota de dados por meio de softwares espiões.

 

A realidade investigativa contemporânea, que envolve o acesso a informações armazenadas em nuvem, análise de metadados e extração de conteúdos de dispositivos digitais altamente sensíveis, exige um arcabouço normativo compatível com os princípios constitucionais e com as peculiaridades tecnológicas atuais. O Código atual, herdeiro direto de uma matriz autoritária, revela-se insuficiente e inadequado.

 

Permitir a coleta indiscriminada de dados digitais mediante autorizações genéricas, despidas de critérios objetivos e de um padrão probatório rigoroso, implica não apenas em violação a garantias constitucionais, mas também na normalização de práticas invasivas e desproporcionais.

 

A jurisprudência predominante, ao equiparar o acesso a dados armazenados digitalmente à apreensão de documentos físicos, desconsidera por completo as especificidades qualitativas e quantitativas da informação digital. Afinal, não é razoável sustentar que a obtenção de históricos de localização, interações em redes sociais, transações financeiras e comunicações privadas seja equivalente à apreensão de correspondências ou recibos em papel. A ausência de balizas normativas claras favorece a atuação discricionária das autoridades investigativas.

 

É imperioso, portanto, reconhecer que a problemática transcende a simples defasagem legislativa. Trata-se de uma crise estrutural entre o Direito Processual Penal vigente e os fundamentos do Estado Democrático de Direito em tempos de revolução digital. O uso de tecnologias como inteligência artificial, aprendizado de máquina e mineração de dados demanda não apenas eficácia probatória, mas também o fortalecimento de garantias processuais. Sob esse prisma, é imprescindível a construção de um modelo de persecução penal que assegure o respeito aos marcos constitucionais da privacidade, do contraditório e da ampla defesa, prevenindo a transformação do aparato tecnológico em instrumento de exceção.

 

O reconhecimento do direito fundamental à proteção de dados pessoais (art. 5º, LXXIX, da Constituição Federal) representa um avanço normativo, mas sua efetividade depende da consolidação de um novo equilíbrio entre eficiência investigativa e salvaguarda das liberdades civis.

 

Diante disso, é inevitável concluir que a superação do anacronismo legislativo vigente demanda a elaboração de um novo paradigma jurídico-normativo que reconheça a era digital como uma transformação estrutural e não meramente circunstancial. O Projeto de Lei nº 8.045/2010, que visa instituir um novo Código de Processo Penal, encontra-se em tramitação há mais de uma década no Congresso Nacional, o que evidencia, além da morosidade legislativa, a resistência política em implementar reformas que imponham limites ao poder punitivo estatal.

 

Enquanto isso, os Tribunais seguem adotando soluções improvisadas, baseadas em analogias frágeis e interpretações extensivas de normas ultrapassadas, aplicando dispositivos da década de 1940 a realidades investigativas do século XXI. A formulação de um novo marco legal, comprometido com o devido processo legal, com critérios probatórios sólidos e com a integridade das decisões judiciais, constitui, assim, uma necessidade não apenas técnica, mas também ética e democrática.

 

A reforma legislativa é urgente e deve priorizar a proteção de direitos fundamentais e a segurança jurídica nas investigações criminais realizadas em meio digital.  

 

 Vinícius Segatto Jorge da Cunha é advogado.

*Os artigos são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do MidiaNews. 

 

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