O calor chega, e com ele o barulho das garrafas se abrindo. O verão, no Brasil, é a estação da celebração: das festas, dos reencontros, dos clubes, das praias cheias e dos convites que parecem inofensivos.
Mas, para quem está em tratamento psicológico contra a dependência química, essa é também a época mais perigosa do ano. O consumo de álcool dispara, as propagandas normalizam o uso e o prazer líquido se disfarça de convivência, de alegria e de tradição familiar.
O álcool continua sendo a droga mais aceita e mais vendida do mundo, e talvez por isso seja a mais perigosa. Ele é a porta de entrada para outras substâncias, e o primeiro a fragilizar o autocontrole e o sistema de recompensa cerebral.
O problema é que, socialmente, o álcool não é visto como droga — é visto como cultura, como rito, como encontro. E é nesse ponto que o tratamento psicológico sofre seu maior golpe: as próprias famílias pedem ao psicólogo para “liberar” o sujeito para beber um pouco, “só naquela ocasião”.
Mas o que parece um gesto de afeto é, na verdade, um rompimento com o processo terapêutico. O sujeito em remissão, quando exposto ao álcool, ativa circuitos cerebrais adormecidos.
A dopamina, a serotonina e a noradrenalina voltam a oscilar; o cérebro reacende memórias de prazer, sensações de pertencimento, lembranças do uso. Mesmo que não volte imediatamente à droga de escolha, a mente volta a desejar o efeito, e a fissura retorna em forma de nostalgia.
É como se o corpo dissesse: “lembro-me disso, quero de novo”. Por isso, nenhuma recaída é acidental; ela começa no meio, no contexto, na permissão.
A base do tratamento psicológico é o respeito ao próprio processo. A psicologia é a pedra filosofal da recuperação porque é entre o psíquico e o social que o vício nasceu — e é nessa mesma fronteira que ele precisa ser desfeito.
O sujeito não adoeceu apenas por usar, mas por interagir com um mundo que o empurrou para o uso. E é cuidando dessa interação que ele pode começar a se libertar.
A terapia trabalha com ressignificação — um processo de reconstruir o sentido das experiências e dos contextos.
Quando o psicólogo ajuda o sujeito a compreender por que aquela festa, aquele grupo, aquele copo estão ligados à sensação de prazer e poder, ele não está apenas proibindo o uso. Ele está resgatando a liberdade psíquica de escolher de novo, sem o peso da compulsão.
O objetivo não é o isolamento, mas a reconstrução de vínculos com meios saudáveis, onde o prazer e o pertencimento possam ser experimentados sem o artifício da substância. O corpo, nesse processo, vai reaprendendo a reagir.
A ausência da substância devolve lentamente a sensibilidade natural dos neurotransmissores.
Mas quanto mais tempo se passa longe do uso, maior é a vulnerabilidade à sensibilidade — uma pequena dose pode causar uma reação intensa, como se o organismo tivesse esquecido como lidar com o álcool. Por isso, a distância é um remédio, e o respeito a essa distância é a base da cura.
A psicologia ensina que a valorização do não uso é fundamental. Cada dia longe da substância é uma vitória biológica e simbólica.
O sujeito que consegue dizer “não” não está apenas resistindo — ele está ressignificando o próprio prazer. Ele deixa de buscar no copo o que pode reencontrar em si: o riso, o toque, a presença, a emoção.
No verão, tudo convida ao excesso. Mas a mente que se conhece aprende que o verdadeiro descanso não está no entorpecimento, e sim na sobriedade. Porque estar sóbrio é estar inteiro.
E só quem se mantém inteiro é capaz de, um dia, brindar a própria liberdade — sem precisar de álcool no copo para sentir-se vivo. O tratamento psicológico não tira o prazer da vida. Ele devolve o prazer de viver.
Nailton Reis é neuropsicólogo clínico com especialização em Neuropsicologia Cognitiva Comportamental.
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