A sociedade brasileira contemporânea tem sido marcada por uma profunda inversão de prioridades morais e políticas, na qual questões simbólicas e superficiais passam a ocupar maior centralidade no debate público do que problemas sociais estruturais. Esse fenômeno pode ser analisado à luz da sociologia crítica, especialmente a partir dos conceitos de sociedade do espetáculo (Debord), violência simbólica (Bourdieu) e polarização ideológica. Nesse contexto, observa-se que episódios banais frequentemente geram maior mobilização social do que tragédias concretas, como o feminicídio, expressão extrema da violência de gênero.
O feminicídio, enquanto fenômeno social, não pode ser compreendido como um conjunto de eventos isolados, mas como resultado de uma estrutura patriarcal historicamente consolidada, que naturaliza a violência contra as mulheres. No entanto, apesar de sua gravidade e recorrência, tal problema permanece frequentemente marginalizado no espaço público. Em contraste, a recente controvérsia envolvendo um comercial da marca Havaianas, estrelado pela atriz Fernanda Torres, provocou reações intensas de atores políticos e econômicos, evidenciando o que pode ser denominado indignação seletiva.
A peça publicitária utiliza um jogo semântico ao afirmar que não deseja que o público inicie o ano “com o pé direito”, propondo, em vez disso, começar “com os dois pés”, em referência à ação, ao engajamento e à totalidade do indivíduo. Ainda que a mensagem se situe no campo simbólico e publicitário, a reação de setores da direita política extrapolou o âmbito cultural, transformando o anúncio em um objeto de disputa ideológica. Esse deslocamento evidencia o avanço do sectarismo político, no qual qualquer manifestação cultural é imediatamente interpretada como um posicionamento partidário, anulando a possibilidade de leitura plural e racional.
Sob a perspectiva habermasiana, pode-se afirmar que há uma crise da esfera pública, caracterizada pela perda do debate argumentativo orientado pela razão. O espaço público deixa de ser um local de deliberação coletiva e passa a funcionar como um campo de confrontos morais e emocionais, nos quais prevalecem discursos simplificados e dicotômicos. Nesse ambiente, problemas sociais complexos, como a violência de gênero, são obscurecidos por polêmicas artificiais que exigem baixo custo cognitivo e não demandam enfrentamento estrutural.
Além disso, a centralidade atribuída a esse tipo de controvérsia revela a lógica da sociedade do espetáculo, na qual a visibilidade e o impacto midiático se tornam mais relevantes do que a substância do problema. A indignação pública, nesse sentido, não é orientada por critérios éticos universais, mas por estímulos simbólicos capazes de gerar engajamento imediato. Assim, a morte de mulheres por feminicídio, por sua recorrência e complexidade estrutural, perde sua capacidade de choque, enquanto um jogo de palavras em uma campanha publicitária é elevado à condição de crise moral.
A radicalização e a intolerância ideológica reforçam esse processo ao reduzir o debate social a narrativas simplistas, esvaziando pautas fundamentais de seu conteúdo político e transformando-as em instrumentos retóricos. Tal dinâmica contribui para a reprodução da alienação social, na medida em que desloca a atenção coletiva de problemas estruturais para conflitos simbólicos de baixa relevância social.
Em síntese, a polêmica envolvendo o comercial da Havaianas não deve ser analisada como um evento isolado, mas como um sintoma de um quadro social mais amplo, caracterizado pela polarização extrema, pela fragilização da racionalidade no debate público e pela banalização da violência. A maior indignação diante de símbolos do que diante da morte de mulheres revela uma crise ética e política profunda, na qual a sociedade se mostra incapaz de hierarquizar problemas e enfrentar suas próprias contradições estruturais.
Joel Mesquita é sociológo.
Entre no grupo do MidiaNews no WhatsApp e receba notícias em tempo real (CLIQUE AQUI).
|
0 Comentário(s).
|