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28.09.2025 | 11h00 Tamanho do texto A- A+

Aluguel inviável desafia o cotidiano de famílias, diz professora

Falta de condições é fator decisivo para aumento da população em situação de rua e facilita processos de abuso sexual

Yasmin Silva/MidiaNews

A professora Lélica Elis Pereira de Lacerda, que falou sobre moradias m Mato Grosso

A professora Lélica Elis Pereira de Lacerda, que falou sobre moradias m Mato Grosso

LARISSA AZEVEDO
DA REDAÇÃO

Pelo menos 65 mil famílias em Mato Grosso e 22 mil em Cuiabá não possuem acesso à moradias dignas, sendo submetidas a localidades precárias, sem acesso a saneamento básico, em áreas de preservação ou risco ou sem condições até mesmo de alugar uma casa, precisando “viver de favor”.

 

Os dados são de um levantamento exposto em 2023 pela ACDHAM (Associação Comunitária de Habitação do Estado de Mato Grosso) e pela Câmara Municipal de Cuiabá. 

Hoje, nós estamos em um estado tão avançado, que até o próprio aluguel está se tornando inviável para quem vive de salário [médio e baixo]

 

Esses números são uma ilustração do cenário atual do estado, em que a especulação imobiliária e a valorização de áreas centrais e movimentadas aumentam constantemente os preços das moradias.

 

Com isso, até mesmo viver de aluguel está se tornando inviável para milhares de famílias de Mato Grosso, de acordo com Lélica Elis Pereira de Lacerda, professora de Serviço Social da UFMT.

 

O MidiaNews falou com a profissional, que estuda temáticas como desigualdade econômica e periferização urbana. Ela ressaltou que a questão da falta de moradia é um problema grave na sociedade mato-grossense. 

 

Desafio de vida

 

A professora afirmou que para um trabalhador comum tentar comprar uma terra, ele vai precisar trabalhar por muitos anos e na maioria das vezes sequer consegue, tendo que viver de aluguel. No entanto, mesmo o aluguel tem se tornado um desafio para grande parte da população. 

 

“O trabalhador é cada vez mais afastado do poder de compra para conseguir adquirir a sua casa própria, e ela vai se tornando cada vez mais um luxo. E a princípio, quem não consegue comprar, aluga. Hoje, nós estamos em um estado tão avançado, que até o próprio aluguel está se tornando inviável para quem vive de salário [médio e baixo]”, afirmou. 

 

Ainda, essas pessoas podem optar por programas de financiamento, mas eles acabam sendo maléficos à médio e longo prazo, pois geram uma especulação imobiliária que encarece as moradias. No fim das contas, as famílias que compraram acabam criando longas dívidas e outras famílias ficam sem condições de comprar pelo preço anterior. 

 

Além disso, a própria população julga auxílios aos mais pobres que podem amenizar o problema da habitação precária em Mato Grosso, como o programa Bolsa Família, que atende justamente o perfil da pobreza brasileira, como a professora afirmou. 

 

“São mulheres negras, empobrecidas, mães solo, que não têm escolaridade e que, em grande parte, trabalham em serviços absolutamente precarizados para poder suprir a vida”, disse. 

 

“Vai se reproduzindo um ciclo de exclusão social. Então, as pessoas que hoje são mais excluídas do acesso à habitação são a população negra, em grande parte, mulheres negras”. 

 

A falta de condições e os moradores de rua 

 

“A gente está tendo uma produção de população em situação de rua em larga industrial, porque cada vez menos a população consegue comprar uma casa ou pagar um aluguel”, afirmou a professora. 

 

 

Conforme ela explicou, as pessoas costumam inverter a ordem das coisas que acontecem para uma pessoa começar a viver em situação de rua. Em grande parte das vezes ela não vai para as ruas por causa das drogas, mas usa drogas por estar em situação de rua. 

 

“As pessoas pensam assim, ‘ah, aquela pessoa está em situação de rua porque ela usou drogas até chegar lá’. Mas muitas vezes, a maior parte, talvez eu diria, é o contrário: as pessoas, de repente tiveram um adoecimento, alguém na família que morreu, alguma coisa aconteceu que a pessoa perdeu a capacidade produtiva ou a possibilidade de trabalhar pra se sustentar e chegou a um ponto que ela vai parar na rua”, disse. 

 

“E quando ela tá na rua, o desalento é tão grande que muitas vezes ela passa fome, ela passa necessidades, privações. Então, muitas vezes, a coisa mais barata que ela acessa para poder viver é usar droga. A população que tá na rua tá tão sem perspectiva que acaba fazendo uso abusivo de drogas”. 

 

A professora afirmou que é necessário que o poder público apoie essas pessoas para que elas possam se recuperar e voltar a ter onde viver. 

 

Facilitador para abusos e falta de higiene 

 

Se tratando de moradias precárias, há casos em que duas ou três famílias moram em um mesmo cômodo. Quando isso ocorre, crianças e adolescentes de uma família podem estar vulneráveis a abusos de um terceiro que vive no mesmo local. 

 

Essa disposição facilita para o abusador se aproveitar da pessoa indefesa. 

 

 

“Aí você vai ter crianças e adolescentes dormindo juntos com adultos. Isso oportuniza um cenário muito facilitador dos processos de abuso sexual. A dignidade humana, ela passa pela dignidade da moradia. Se a gente não consegue oportunizar pras crianças e adolescentes um ambiente para poder se acolher, dormir, descansar, isso vai trazendo implicações negativas para toda a sua vida”, afirmou. 

 

Além disso, a questão do saneamento básico e da higiene é outro problema enfrentado por essa população. Este problema ficou visível na época da pandemia, de acordo com Lélica, quando era impossível manter o afastamento social. 

 

Você vai ter crianças e adolescentes dormindo juntos com adultos. Isso oportuniza um cenário muito facilitador dos processos de abuso sexual

“Imagina famílias que tinham só um cômodo na época da pandemia. E tinha algum adulto que tinha que trabalhar. A família toda estava exposta à doença. E a gente teve a pandemia de Covid-19, mas isso perpetua com muitas outras doenças”, afirmou. 

 

“O contágio de doenças é mais facilitado numa casa precária. Geralmente, essas casas não têm saneamento básico, elas não têm o mínimo pras pessoas sobreviverem a esse calorão, imagina”, acrescentou. 

 

Impacto no cotidiano 

 

A  moradia precária gera impacto social em todos os indivíduos de uma família. 

 

No caso da criança, ela terá menos condições de se desenvolver em uma habitação sem acesso a água e luz e em um ambiente violento, por exemplo. 

 

“A única coisa que ela vai ter na rua quando ela sai é violência urbana, gente com revólver na cintura. Então, isso vai configurar um perfil de adulto posteriormente, e vai criando desigualdades para essas pessoas ingressarem no mercado de trabalho e concorrerem entre si”, disse. 

 

O trabalhador que mora em um bairro periférico e trabalha no centro também enfrenta desafios como resultado dessa situação. 

 

“Imagina uma casa precária na situação de Cuiabá. Você vai dormir amontoado, você não vai dormir primeiro porque é um calor insuportável. Então, se você dormir mal, você vai ter um dia ruim. Você vai ter maior tempo para chegar no seu local de trabalho", lamenta a pesquisadora.

 

"Quanto mais periférico, mais precário é o transporte que chega, mais raro são os horários desse transporte. Então, tudo isso vai implicar na forma de inserção das pessoas no mercado de trabalho, na rotina”, completa. 

 

Pai e mãe longe dos filhos

 

Até mesmo na criação dos filhos esses trabalhadores enfrentam dificuldade, pois não possuem horas o suficiente de contato com eles. 

 

 

“As pessoas reclamam muito na educação, que as famílias não educam mais os seus filhos. Mas como que vai ter condições e tempo de uma família educar um filho se ela tem que sair [de casa] 5h para pegar duas horas de ônibus para chegar e trabalhar? Ela vai ter que almoçar no local de trabalho dela, porque é muito longe de casa, ela vai voltar, chegar em casa só às 18 ou  19 horas", explicou.  

 

“Qual é o tempo que essas famílias têm para poder educar os seus filhos? Então, o lugar de moradia, ele vai refletir em toda a situação de vida. E aí você vai, você andando pelas periferias, você vai observar que na maior parte das crianças, as mães e os pais não estão presentes, porque eles estão trabalhando, e elas ficam na rua”. 

 

Este cenário facilita o contato das crianças a ambientes criminalizados, levando-as a uma maior possibilidade de envolvimento com práticas ilegais, finalizou a professora.

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