A cuiabana Domingas Oliveira da Silva tinha 81 anos quando morreu, em 21 de março de 2020, na Capital. Mulher forte e descrita como à frente de seu tempo, passou os últimos três anos de vida em estado vegetativo, sendo cuidada de perto pela família, que recorreu aos cuidados paliativos para tornar esse período o mais digno e sem dor possível.
A história desse triste desfecho remonta a 2005, quando Domingas foi diagnosticada com câncer de útero. O tumor não permitia cirurgia, e ela foi submetida a sessões de rádio e quimioterapia. O tratamento, apesar de curá-la do câncer, provocou o ressecamento de parte do intestino, que parou de funcionar.
Quem conta essa história é a pedagoga Antonia Nice da Silva, de 51 anos, filha de Domingas, que assumiu a maior parte dos cuidados da mãe quando ela ficou acamada, dividindo parte dessa função com outros irmãos.
Segundo Antonia, após a última internação, foram quase 30 dias de tentativas médicas para que o intestino da mãe voltasse a funcionar.
“No meio dessa luta, ela começou a passar mal. Meu irmão ia dar banho nela e, quando ela começou a tossir, desfaleceu. Foram quatro paradas: uma de quatro minutos, outra de sete e outra de três. Ela ficou em estado vegetativo”.
Na UTI, Domingas teve outras paradas cardíacas e voltou à vida, mas já não era a mesma. Depois de tanto tempo sem oxigênio, para os médicos, era um mistério como ela havia sobrevivido e, depois, resistido por três anos.
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Domingas Oliveira da Silva, que morreu aos 81 anos em Cuiabá
“Uma das médicas falava: a medicina não consegue explicar porque ela está viva. Mas, pra mim — ela falava —, eu acredito que é o amor de vocês”.
Sinais sutis
Domingas nunca mais disse sequer uma palavra. Dormia, acordava, abria os olhos e raras vezes respondia a estímulos. Mas bastava o neto favorito chegar para o cenário mudar.
“Ela podia estar dormindo, com o olho fechadinho. Ele chegava no ouvido dela e falava ‘vó, cheguei’ e ela abria o olho. Algumas vezes acontecia comigo também”, relembrou Antonia.
A idosa era medicada contra dor a cada seis horas, mas os sinais eram perceptíveis. “Quando ela tava com dor, a gente sabia. Ela tremia a mãozinha, apertava a boquinha dela”, contou a filha.
Além da bolsa de colostomia, Domingas passou a viver com uma sonda de gastrostomia (GTT) — tubo que permite a alimentação e a administração de medicamentos — e com uma traqueostomia, procedimento que cria uma abertura na traqueia para permitir a respiração direta.
Do câncer ao estado vegetativo
Em 2006, após o intestino parar de funcionar, Domingas precisou se submeter a uma colostomia — cirurgia que cria uma abertura na parede do abdômen para exteriorizar o intestino grosso, permitindo que as fezes sejam eliminadas em uma bolsa coletora.
Foram mais de dez anos vivendo com a bolsa de colostomia presa ao corpo, sem recaída do câncer ou qualquer outro efeito colateral. Até que, em 2015, começaram a surgir os primeiros sinais de inchaço e dor no local da abertura.
O quadro se agravou com o tempo e, em 2017, diante de uma febre persistente que não cedia, Domingas precisou passar por uma cirurgia de urgência, pois “a alça do intestino estava solta”.
Um mês após o procedimento, ela voltou às pressas ao hospital: o intestino havia parado de funcionar novamente — e de lá não saiu a mesma.
O quadro de Domingas era irreversível, e foi nesse momento que os cuidados paliativos entraram na vida da família Silva, com a ajuda da médica geriatra e paliativista Mariana Carvalho, de 39 anos.
Cuidado com a vida
A dra. Mariana descreve o paliativismo como um “cuidado oferecido para todas as pessoas que têm alguma doença grave que ameace a vida”, contemplando demandas físicas e emocionais, realizado por meio de uma equipe multidisciplinar.
Arquivo pessoal
Último aniversário de Domingas em família antes do estado vegetativo
Segundo ela, enquanto a medicina tradicional foca na doença, no cuidado paliativo o foco é a pessoa.
“Antes da doença, eu tenho uma pessoa. Ela tem uma história de vida, pessoas que a amam, vontades, desejos, e a doença faz parte desse contexto”, afirmou a médica.
“Não é porque a pessoa está em um tratamento que ela não pode receber cuidados paliativos ou que ela tem que ter alta de um ou de outro. Quando esses cuidados se interpõem, a literatura já mostrou que o paciente vai viver mais e melhor do que quem não recebeu o cuidado paliativo”, completou.
Apoio e aprendizagem
Para Antonia, sentir que não estava só enquanto cuidava da mãe foi fundamental para enfrentar esse período. Ela aprendeu do zero como cuidar dela nas condições em que se encontrava e teve esse acompanhamento médico até o fim.
“Eu gravava vídeo, tirava fotos e levava para a dra. Mariana, e ela ia me orientando, porque seria muito doloroso para minha mãe levá-la de ambulância”, afirmou a filha de dona Domingas.
“O cuidado paliativo, fora a questão médica, é você ter apoio, estar unido com a sua família para um ajudar o outro. Porque você sozinha não dá conta. É um cansaço mental, físico, emocional, e tem que ter ajuda”.
“A dra. Mariana foi essencial pra gente nessa jornada. Ela foi diferente, não tratava só a minha mãe, tratava também quem estava com ela", diz.
"A gente chegava e ela perguntava primeiro de mim, queria saber como eu estava mentalmente para poder cuidar da minha mãe. Perguntava dos meus irmãos, do meu pai, que ainda era vivo”, recorda Antonia.
Ela conta que, em todas as conversas, a médica a preparava para a partida iminente de Domingas. “Ela me preparava e falava ‘eu tô com você’, e que essa era uma trajetória que iria passar”.
Para a pedagoga, um dos episódios mais marcantes nesse período foi quando, percebendo sua angústia, a médica passou o próprio contato e se colocou à disposição para receber fotos e vídeos de Domingas, a fim de orientá-la.
“Aquilo me marcou muito. Ela não sabe o quanto foi importante. Porque, no fundo, eu sabia que a doutora Mariana não podia fazer mais nada. Mas só o fato de me dar a segurança de que eu podia ligar já me confortava de alguma forma. Era saber que eu não estava sozinha”, afirmou.
Para quem ainda tem preconceito com esse tipo de tratamento, Antonia garante: “É ter qualidade de vida, não importa o tempo de vida que te reste”, disse.
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Domingas ao lado das filhas em evento, já com bolsa de colostomia
Último desejo
A geriatra afirma que os arrependimentos em casos terminais “são sempre os mesmos”. As pessoas se arrependem de ter trabalhado muito e de ter passado pouco tempo com os amigos e familiares. “Se arrependem de coisas simples: às vezes, é comer uma comida familiar, ouvir a voz de um filho, um abraço. Ninguém nunca me pediu, por exemplo, para dar uma volta de Ferrari”, disse.
Antonia lembra que Domingas parecia pressentir que algo de ruim fosse acontecer. Antes de entrar em estado vegetativo, pediu para ver todos os netos.
A um deles, que mora no interior de Mato Grosso, disse ao se despedir: “Então tá, tchau, vai com Deus. Se a gente não se encontrar mais nessa vida, quando Jesus voltar, a gente vai se encontrar”, contou Antonia. “Seu último desejo foi ver os netos dela”.
Domingas morreu na UTI após passar mal e permanecer internada por dez dias.
Cuidar do outro e de si
Antonia disse só ter se arrependido de uma coisa: ter esquecido de si enquanto cuidava da mãe.
“Que as pessoas consigam conciliar o cuidado da pessoa que ama com a própria vida. Não se deixar de lado, porque a pessoa também precisa viver. Eu não fiz isso e isso me fez mal”. Ela chegou a deixar o emprego para cuidar da mãe.
“Eu vivia pra ela e deixei tudo de lado. Eu era o braço, a perna, o olho, tudo dela. O que as enfermeiras faziam não estava bom. Se iam trocar um curativo, eu estava lá em cima. Eu morava a duas quadras da casa dela, acordava de madrugada, pegava o carro e ia lá”.
Seis meses após a morte da mãe, Antonia se mudou para Campo Verde. “Eu precisava recomeçar”.
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