Ao lado de vários outros artistas, Liu integrou o primeiro grupo de teatro de rua de Mato Grosso, o Gambiarra, e rapidamente conquistou o público em um momento decisivo para a autoafirmação da identidade regional.
Você sabe a origem do falar cuiabano, famoso por seu humor ácido e sotaque fonético no qual "gente" vira “djente”, e "chuva" se torna “tchuva”? Muitos acreditam que deriva do português Galício, mas também foi moldado com forte influência dos povos indígenas, como os Bororos, assim como de africanos e até castelhano.

O tema voltou à tona após o criador de conteúdo sobre linguística e história, Michael B., responsável pela página The Word Cartographer, citar que o "cuiabanês" pode ser considerado o linguajar que mais se aproxima do "português medieval".
“A capital do estado brasileiro de Mato Grosso, Cuiabá, é conhecida por preservar alguns traços arcaicos do norte de Portugal, trazidos há vários séculos. Um exemplo é pronunciar chuva como tchuva e, também, pronunciar o g antes de e como dj, resultando em djente em vez de gente, o que possivelmente era a pronúncia original antes de se fundir com a letra j e formar o som de zh", disse ele em um vídeo publicado no início de dezembro e que tem mais de 17 mil curtidas.
Em entrevista ao MidiaNews, a linguista Cristina Campos, professora aposentada e doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), disse que é uma tarefa difícil afirmar que o linguajar cuiabano tem uma procedência única.
“É uma mistura. Nós temos aqui os portugueses que vieram pra cá, mas Cuiabá era um território Bororo. Essa região toda era território dos Bororo. Então, acredito que há um componente forte indígena que a gente tem que ressaltar, além de matrizes africanas também", disse.
"Predomina, é lógico, o português, mas temos vizinhos que falam espanhol. Então, pode ser que tenha uma influência castelhana no falar cuiabano”, contou.
Cristina é autora de sete livros, entre eles “O falar cuiabano”, de 2014, no qual detalha características idiossincráticas do cuiabanês, como a ausência de artigos. Na publicação, a doutora dá dois exemplos de como isso ocorre na prática.
“'Mãe dele foi embora pra Goiânia; [ǿ] pai e [ǿ] irmão dele inda mora aqui co’ele'; '[ǿ] Catchorro mordeu [ǿ] criança duro na perna'”, exemplificou ela no livro. Também ressaltam diferenças como mudança de e para i, e do o para o u, como “sirviçu” [serviço], “pulitica” [política] e “cabiludu” [cabeludo].
Para a linguista, a manutenção desses falar nos dias atuais tem certa influência com o fato de Mato Grosso ser um estado relativamente “isolado”, e deve ser motivo de orgulho e pertencimento. “Valorizá-lo significa investir no modo de ser mato-grossense, que é um tesouro para as gerações presentes e futuras”, disse.
Cristina explicou, ainda, que muitas das marcas mais reconhecíveis do linguajar cuiabano, como o famoso “tchuva” ou o “djente”, não surgem de um único tronco linguístico, mas podem ser resultado da sobreposição de influências que, ao longo dos séculos, foram se reforçando mutuamente. Segundo ela, até detalhes pouco conhecidos ajudam a entender essa construção.
“Por exemplo, o Bororo não tem C e G; é só T e D. Talvez, essas características, somadas a pronúncias ibéricas antigas, criem essa sonoridade tão forte no cuiabanês”, afirmou.
Outra particularidade marcante é a indistinção entre masculino e feminino, um traço presente nas línguas indígenas e incorporado ao português falado na região. “Eu vou lá no mamai" ou "Ele tá doente", mesmo quando se refere a uma mulher. "Isso é indígena”, explicou ela.
Além das variações fonéticas, o modo de falar também guarda pistas sobre a forma como o cuiabano entende e interpreta o mundo. Para Cristina, o linguajar vai além do sotaque, é um símbolo cultural que traduz uma cosmovisão própria. “A maneira como você fala traduz o modo como vê o mundo. Lugares que desenvolvem um dialeto próprio, vão refletir uma forma única de perceber a realidade”.
O traço mais único
Quando questionada sobre qual seria a marca mais simbólica do falar cuiabano, a linguista afirmou que são muitos elementos. Mas um deles, para ela, é imbatível: o humor cuiabano, especialmente na arte de criar apelidos.
Arquivo Pessoal/Ivan Belém
O artista cuiabano Liu Arruda, que criou mais de 40 personagens
“O cuiabano tem essa capacidade de bater o olho e criar um apelido que é uma metáfora, uma imagem. Tem muita inteligência nisso. É único", disse.
Quando se fala em humor e cultivar o orgulho pelo falar cuiabano, um nome que não pode ficar de fora é o de Liu Arruda, artista cuiabano que nos anos 80 e 90 transformou o teatro local e ajudou a difundir o jeito de falar da cidade com irreverência, crítica e profundo senso de pertencimento.
Nascido em 30 de maio de 1957, Elonil de Arruda, conhecido como Liu, foi ator, comediante, músico, jornalista, professor e diretor. Em mais de 25 anos de carreira, criou cerca de 40 personagens marcantes inspirados no cotidiano cuiabano. Seu enorme repertório contou com a criação da família da Comadre Nhara, que era composta por Compadre Juca, Ramona e Gladstone. (Assista abaixo a abertura do show)
O trabalho dele dialoga diretamente com os apontamentos da linguista sobre a cuiabania, como o humor peculiar, a maneira de contar histórias e a forma cênica como ele incorporava o jeito de falar do povo. Eram formas vivas de expressão cultural.
Ao levar o linguajar para o palco, Liu não estava apenas entretendo a plateia, estava mostrando que seu “djeito de falar” tinha potência artística.
Mesmo após sua morte, em 24 de outubro de 1999, sua obra continua vivendo na memória cultural de Cuiabá e mostra a importância dele para a cultura local seguir sendo reconhecida. Ele já foi homenageado com exposições, livros sobre sua trajetória e até peças que revivem seus personagens.
Isolamento e transformação
Apesar da força cultural, Cristina reconheceu que esse modo de falar vem mudando, e rápido. Para ela, o que por séculos ajudou a preservar o sotaque foi justamente o relativo isolamento da região.

“A notícia demorava três meses para chegar. Até a década de 60, era mais fácil viajar pelas águas do que por terra”, contou. “Esse isolamento permitia que uma singularidade se desenvolvesse. Se não tivesse isso, seria igual ao resto”.
Com o "boom" migratório e o avanço do agronegócio, o cenário virou de ponta-cabeça e comunidades tradicionais se diluíram na expansão urbana. “Quando você interfere no modo de vida, desmata, muda tudo, traz gente de fora, rapidamente o falar desaparece. Não é só a língua. É a cultura inteira que some".
Segundo ela, o linguajar cuiabano, hoje, sobrevive com mais força em nichos específicos, como São Gonçalo e Beira Rio, ou em famílias antigas da elite cuiabana. Mas, na vida cotidiana das cidades maiores, já é possível perceber a diluição do sotaque. A escola e a mídia também influenciam esse processo, uma vez que ambas reforçam a norma padrão e raramente valorizam o falar regional.
Preconceito, resistência e vergonha
Para Cristina, o preconceito linguístico existe, mas não é o principal responsável pelo enfraquecimento do cuiabanês. Paradoxalmente, ele até ajuda a reforçar o sentimento de pertencimento. “Quando alguém debocha de você, às vezes, isso até fortalece o desejo de continuar sendo aquilo que você é”, afirmou.

Segundo ela, o problema é quando esse deboche gera vergonha, principalmente entre os mais jovens. “A pessoa começa a não querer falar como a comunidade dela fala. Aí, sim, isso acelera o desaparecimento".
Preservação
Oficialmente, o falar cuiabano já foi reconhecido como patrimônio imaterial de Mato Grosso. Porém, a linguista ressaltou que a preservação depende de ações permanentes, especialmente dentro da escola.
“Tem que ter respeito. O aluno não fala errado. Ele fala a linguagem da comunidade dele. Errado é usar isso onde se exige a norma culta. A escola pode pesquisar, registrar, valorizar”.
Mas, segundo ela, conservar o linguajar vai muito além do registro formal. Envolve manter vivas as histórias, as lendas, os costumes, o jeito de existir.
“A linguagem nasce de uma cultura. Cuiabania é maior que Cuiabá. Não pode ser algo para inglês ver, tem que estar no cotidiano", completou.
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