Cristian Siqueira
O pai de santo Cristian Siqueira foi considerado, ainda na adolescência, um dos sacerdotes mais jovens de Mato Grosso. Aos 16 anos, já conduzia um grupo de estudos de práticas umbandistas em Cuiabá. Hoje, aos 33, lidera o Templo de Quimbanda Itaim de Babel, em Várzea Grande, e define a religião como uma “proposta de evolução responsável e consciente”.

De família católica, Cristian chegou a frequentar um seminário e até sonhou em ser padre, mas, aos 14 anos, por influência do padrinho, conheceu o terreiro — e não saiu mais de lá.
O título de pai de santo não veio de um diploma ou certificado, mas da função que desempenhava ao liderar pessoas na prática de um terreiro. “Mas, no decorrer da caminhada, eu acabei recebendo e passando por rituais que, para a nossa tradição e para a nossa religião, confirmam, socialmente, o sacerdócio”, explicou.
Para Cristian, a Quimbanda é uma proposta de “vivência humana e espiritual pautada nos princípios que norteiam o bem-estar da matéria”. Ele explicou que as religiões podem seguir por dois caminhos: o da “mão direita” ou o da “mão esquerda”.
"Vivência do ideal"
“As religiões dentro do caminho da mão direita são aquelas que nos apresentam a proposta da vivência do ideal. É como se, para viver bem, eu precisasse ser bom. Para viver uma vida positiva após a encarnação, eu precisasse fazer caridade, dar de comer aos pobres. E as práticas da mão esquerda são aquelas que acreditam que é possível vivenciar um contexto de evolução a partir da sua realidade hoje”, disse.
Para a Quimbanda, então, uma pessoa pode evoluir dentro de suas necessidades de bem-estar material ou sexual, por exemplo.
“É uma proposta brasileira de vivenciar a busca da evolução através da realidade humana e material. Nós acreditamos que não tem como ter bem-estar espiritual sem que você tenha bem-estar material. Para nós, é inaceitável a ideia de evoluir espiritualmente, por exemplo, passando fome”, disse.
Segundo Cristian, a Quimbanda começou a se manifestar dentro dos terreiros de Umbanda e a maior sacerdotisa da religião na história do Brasil foi, inclusive, uma mãe de santo umbandista, Mãe Cacilda de Assis, que incorporava o Exu Sete da Lira, o maior fenômeno mediúnico do País.
Victor Ostetti/MidiaNews
Interior do Templo de Quimbanda Itaim de Babe, em Várzea Grande
“O Seu Sete da Lira fazia giras [reuniões] semanais no Rio de Janeiro para 40 a 50 mil pessoas. Isso em plena ditadura militar, nos anos 70, e realizava milagres a olho vivo. Fazia cego enxergar, paralítico andar, mudo falar, câncer sumir”, contou Cristian.
Uma vez que a Quimbanda é uma proposta de evolução a partir da vivência da matéria, uma de suas preocupações principais é o “bem-estar material”, mas, segundo Cristian, não apenas no sentido financeiro, e também ligado à saúde.
“A Quimbanda sempre se manifestou como a prática da feitiçaria para fins da cura do corpo físico. As pessoas nos buscam muito para magias relacionadas ao bem-estar material, para abertura de caminho, oportunidades, reconhecimento social, visibilidade pública, equilíbrio mental e, principalmente, cura física e de problemas psicológicos”, afirmou.
Cada Casa é uma Casa
Cristian explicou que não existe um grupo fixo de doutrinas oficiais nas religiões afro-brasileiras. “Aquilo que eu falo aqui na minha Casa acaba se valendo apenas para a minha Casa, porque você pode ir a outro terreiro de Quimbanda e lá ser completamente diferente. Se tratam de cultos ancestrais e quem dita as regras são os ancestrais daquele lugar”.
Em Itaim de Babel, a Quimbanda se expressa como uma proposta de “evolução a partir da consciência da realidade humana e material”, na crença de que é possível uma vida consciente e positiva sem abrir mão do que a matéria precisa.
A figura do demônio e do diabo, como apresentada nas religiões cristãs, não existe na Quimbanda. “Não consideramos que haja uma energia que esteja constantemente nos incitando a fazer ou não fazer algo”. O quimbandeiro, segundo o pai de santo, não crê na existência de um “mal”, porque o próprio homem possui as ferramentas necessárias para causar os maiores danos do mundo.
“Quimbanda é igual consciência de si. O quimbandeiro é identificado com a cor preta porque ele tem domínio da sua escuridão, e pelo chapéu porque nós entendemos que conseguimos um posto na sociedade quando entendemos quem nós somos e quais são os nossos potenciais”, completou.
Segundo Cristian, hoje quem mais procura pela Quimbanda é quem está cansado de fugir de si, de viver a vida que carrega, de estar à margem da sociedade e quer assumir seu lugar dentro dela.
Victor Ostetti/MidiaNews
Cristian Siqueira, é pai de santo e um dia sonhou em ser sacerdote católico
A Quimbanda é, para ele, o “culto dos marginalizados”, mas também dos “mortos poderosos”, que em vida enfrentaram mazelas e, depois de mortos, venceram as “limitações da matéria e do espírito” e voltaram com ensinamentos.
“Os espíritos que se manifestam na Quimbanda são nada mais nada menos que pessoas, geralmente do nosso próprio sangue, que tiveram que enfrentar as mesmas realidades da vida que nós e voltam com a única função de nos aconselhar. A Quimbanda, então, é um culto de poderosos e vencedores, mas principalmente de lutadores”, disse.
Segundo Cristian, o quimbandeiro é atento aos papéis da sociedade e não é possível sê-lo sem se expressar sobre a realidade política do País, sobre o feminicídio, a destruição da Amazônia e tantas outras mazelas que assombram a humanidade.
“O quimbandeiro não vive em busca de um bem-estar espiritual. O quimbandeiro vive o bem-estar espiritual hoje, à medida em que ele vive bem a sua realidade material”.
“Quimbanda não é supermercado”
Cristian disse ser “curioso” o estereótipo de “mal” atribuído à Quimbanda uma vez que ela propõe evolução a partir da consciência de si e da realidade humana. Para ele, aí está a resposta: “o ser humano teme a realidade humana”, disse.

“A ligação que nós fazemos, não apenas com a Quimbanda, mas com todas as práticas do caminho da mão esquerda, com aquilo que é negativo, que merece temor, aquilo que é escuro, está relacionado ao próprio medo que nós aprendemos a desenvolver das nossas realidades humanas”, completou.
Outro ponto que gera curiosidade em quem não pratica a religião são termos como “trabalhos”, “amarrações” e “ataques energéticos”.
O pai de santo explicou que “trabalho” é um termo genérico e envolve toda a prática da religião.
“Os espíritos, como também nós, entendem que o trabalho é o que edifica o homem e cria a sociedade. Então, todo terreiro usa a palavra trabalho para designar as atividades que acontecem dentro do terreiro. Se vamos ter uma gira, chamamos de trabalho. Se vamos fazer uma limpeza, chamamos de trabalho. Nós realmente acreditamos que o trabalho é uma forma de vivenciar a religião”, disse.
A Quimbanda, segundo ele, é muito procurada para a realização de trabalhos que “atendam às necessidades de bem-estar material”, e traz resultados expressivos.
“Não vejo que isso fuja dos princípios da Quimbanda, uma vez que ela está pautada exatamente no bem-estar material. Mas a Quimbanda não é um balcão de pedidos. Ela ainda não é um supermercado que a gente chega com um quilo de velas e sai de lá com o trabalho que a gente quer”, afirmou.
Enquanto isso, uma amarração é um tipo de magia feita com fins amorosos, mas, segundo o pai de santo, a maioria das suspeitas não se confirma, principalmente porque esse tipo de ritual é raro e caro, podendo ultrapassar R$ 20 mil. Ele próprio não pratica e nem recomenda.
Victor Ostetti/MidiaNews
Altar de Itaim de Babel; templo é inspirado no terreiro do Seu Sete da Lira
“Sei que tem pessoas que praticam, mas não é o que nós indicamos porque acho que o maior dos bens que podemos possuir na vida é a liberdade de escolha, é o livre-arbítrio. As magias negativas existem de verdade e, até que você seja vítima de uma, você pode acreditar que não existe”, disse.
Cristian atende de quatro a dez pessoas por dia, de Cuiabá, outros estados e até de fora do Brasil, e diz lidar pouco com “ataques espirituais”. Em sua maioria, os “ataques” são, na verdade, criados pela “própria consciência”. Segundo ele, a energia não é boa nem ruim, depende de como é percebida e do que estamos atraindo.
“Mesmo que tenhamos recebido algo de alguém, a pergunta não é se alguém me mandou, mas o que estou fazendo para receber isso?”, disse.
Futuro museu
Itaim de Babel é um templo inspirado na casa do Seu Sete da Lira, considerado um dos maiores terreiros da história do Brasil, e conta com um rico acervo histórico.
“Nós temos um acervo formado por elementos jornalísticos, registros de áudio e vídeo, indumentária sacra, mobília sacra, fotografia e depoimentos. Esse memorial vai ser apresentado em forma de museu futuramente, vamos construir o Centro de Cultura Afro Religiosa a partir do ano que vem”, explicou.
Em meio a retratos de exus, atabaques e velas, vemos também elementos da Igreja Católica, como crucifixos, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida e outra, bem no centro do altar de mármore preto, de Santo Antônio.
Cristian explica que, no templo, é praticada a Quimbanda setista ou da Lira, como era praticada pelo Seu Sete da Lira, que era muito devoto de Santo Antônio. “Essa peça aqui atrás é uma peça histórica de 1948. Ela foi a primeira imagem do Seu Sete da Lira de Santo Antônio que estava dentro do primeiro terreiro dele de Quimbanda, no Rio de Janeiro”.
Itaim de Babel recebeu a peça como doação da família Assis, por ser inspirada no primeiro templo dele.
O fenômeno, segundo o pai de santo, é chamado de sincretismo, quando há uma fusão ou mistura de diferentes elementos de culturas, crenças ou religiões.

“O sincretismo é uma forma que o homem utiliza já há muito tempo como ferramenta de integração de conhecimentos. Nós usamos elementos sincréticos porque aquilo que se entende lá com aquele símbolo é igual ao que nós entendemos aqui com esse ou com outros símbolos”, disse.
“A Quimbanda, em particular, é formada por influências da tradição indígena brasileira, da tradição africana e também da raiz branca, europeia, e amarela, que seriam os orientais. Então, a depender das raízes locais da Casa, você pode encontrar elementos que são oriundos dessas outras tradições e que são ressignificados dentro da prática de Quimbanda”, completou.
Aos curiosos pela Quimbanda, Cristian convidou a conhecer um terreiro de perto e tirar suas próprias conclusões, mas alertou sobre a escolha da Casa. “Infelizmente, vários lugares que se identificam como ambientes religiosos não vivenciam princípios da religião e acabam realizando até mesmo crimes. Como dizia Mahatma Gandhi, a divindade é maravilhosa, mas o religioso não é”.
Para ele, a intolerância religiosa é fruto do preconceito, e o preconceito da falta de conhecimento. “Eu acho que a maior preocupação dos sacerdotes e praticantes deve ser de mostrar para a sociedade, ou de permitir à sociedade ter uma consciência daquilo que é feito, daquilo que é praticado”, disse.
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