Imagine cair no sono durante uma conversa com um amigo, uma reunião de trabalho importante ou até ao volante. Essa é a realidade diária enfrentada por pessoas com narcolepsia, uma doença neurológica rara que afeta entre 20 e 50 pessoas a cada 100 mil habitantes.
Segundo estudos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), cerca de 70% dos brasileiros sofrem com algum tipo de distúrbio do sono. Os mais comuns são a insônia, a apneia e o sonambulismo. Há também a narcolepsia que, apesar de rara, é subnotificada, segundo o neurologista e especialista em medicina do sono, Lucio Huebra, de 38 anos.
O principal sintoma da doença é a sonolência excessiva diurna, manifestada em “ataques de sono abrupto”. Nesses episódios, o paciente, segundo o especialista, não consegue resistir e acaba cochilando.
“É mais comum que essa sonolência aconteça em situações mais quietas, monótonas. Mas pode acontecer, às vezes, em situações ativas. E aí pode acontecer um acidente. Os mais preocupantes são os relacionados ao trânsito, dormir ao volante ou até um acidente de trabalho, como no manejo de alguma máquina pesada”, explicou.
De acordo com Huebra, os cochilos costumam durar de 10 a 15 minutos e, mesmo curtos, cumprem uma função reparadora. “A pessoa acorda desse cochilo com a sensação de que dormiu por muito tempo e de que aquele tempo foi satisfatório e a deixou mais ativa para fazer o resto das atividades”.
Um mito, segundo ele, é acreditar que pessoas com a doença dormem mais horas do que uma saudável — entre 7 e 8 horas. “Em geral, dormem a mesma quantidade de horas, mas têm o sono da noite muito fragmentado e vários períodos de cochilo durante o dia”, afirmou.
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Juliano Duarte de Oliveira, que sofre com distúrbios do sono
A frequência varia de caso a caso, podendo chegar a 10 cochilos por dia. “Tem pessoas que conseguem passar até quatro horas sem cochilar, mas tem aquelas que precisam de cochilos mais repetidos”, observou.
Causas e sintomas
Huebra explica que essa é uma doença autoimune com predisposição genética, que costuma ser desencadeada por um “gatilho ambiental”, como uma infecção, vacina ou até situações de estresse.
“O sistema imune é ativado de forma errada e, em vez de atacar só aquele fator de estresse, ele cria anticorpos contra uma área específica do cérebro que produz uma substância chamada hipocretina, que é o grande combustível para nos manter acordados”, explicou.
Além do sono noturno fragmentado e da sonolência diurna, pacientes com narcolepsia têm alterações no sono REM, fase em que ocorrem os sonhos. Nesse estágio, o corpo perde o tônus muscular para evitar que a pessoa reproduza as ações sonhadas.
A falha nesse mecanismo pode desencadear a cataplexia — em até 70% dos casos —, que consiste na perda repentina do tônus muscular durante o dia, mesmo sem estar sonhando.
A cataplexia é desencadeada por gatilhos emocionais, como gargalhadas ou até o orgasmo.
Outros sintomas são a paralisia do sono ou os chamados “sonhos acordados”, em que o paciente tem uma espécie de alucinação: “uma situação muito assustadora, aterrorizante”, disse.
Vivendo com o sono
O dia a dia de uma pessoa com narcolepsia é impactado de diversas formas, que vão desde a dificuldade de concentração ao isolamento social, para evitar, por exemplo, emoções que possam desencadear a cataplexia.
O cuiabano Juliano Duarte de Oliveira Camargo Rocha, de 36 anos, mais conhecido como Juliano Samambaia, conta que tem problemas com o sono desde jovem. Ele foi diagnosticado com depressão e ansiedade e, mais recentemente, descobriu também uma apneia do sono.
Com ajuda de medicação, hoje consegue controlar melhor seu sono e os cochilos diurnos que antes eram frequentes, mas relatou atrasos, perda de compromissos e até de credibilidade.
“Várias vezes dormi durante o trabalho, tive que me retirar de eventos, reuniões e ir ao banheiro ou ao carro para cochilar. Algumas vezes já encostei o carro em algum lugar para tirar um cochilo”, disse.
“Antes do medicamento, eu precisava tirar vários cochilos durante o dia ou passava muito sono. Com isso, vem a indisposição, dificuldade de concentração, conversar sem bocejar, etc”.
Ele disse ser frustrante viver com sono, perder compromissos e a confiança das pessoas, além de ter que lidar com as “brincadeiras” de pessoas próximas. “Às vezes acabo duvidando da minha própria capacidade. Isso afeta todo o resto e vira um ciclo em looping”, disse.
Juliano faz acompanhamento psiquiátrico e, apesar de não ter um diagnóstico de narcolepsia, pretende buscar especialistas no assunto e melhorar sua qualidade de sono. “Ainda preciso procurar uma terapeuta do sono e fazer exames específicos para melhorar a qualidade do meu descanso. Devido aos altos custos ainda não fiz, mas logo farei”, afirmou.
Segundo Huebra, os sintomas costumam surgir entre a adolescência e a “terceira década de vida”, tornando tarefas simples, como ir ao cinema ou assistir a um culto religioso, em um grande desafio.
“Existe até essa questão, de certa forma, vexatória, de dormir em público e gerar uma situação de constrangimento, além do preconceito, julgamento, como sendo pessoas mais preguiçosas ou que não estão levando o trabalho ou estudo a sério”, explicou o especialista.
Subnotificação
Segundo Huebra, o diagnóstico é complexo e começa com a exclusão de outras causas de sonolência, como falta de sono, uso de medicamentos ou doenças associadas.
O sono é monitorado por meio da polissonografia e do teste de múltiplas latências, que avalia a rapidez para adormecer e entrar em sono REM. Na doença, isso acontece muito mais rápido do que o normal.
Há ainda um exame mais complexo e invasivo: a coleta do líquor para medir a hipocretina no cérebro.
Os exames, segundo Huebra, são de difícil acesso no Brasil e, pelo SUS, só aparecem em contextos de pesquisa. Mesmo em clínicas particulares, estão concentrados em grandes centros.
Não existe cura para a doença, apenas o tratamento dos sintomas com medicamentos, como estimulantes e alguns antidepressivos, que exigem prescrição rigorosa. Há também uma alternativa, segundo ele, o cochilo programado como “estratégia de tratamento”.
“Antes de cochilar sem querer, a gente pode orientar o paciente a se programar para cochilar. Se ele tem uma brecha no trabalho de 10, 15 minutos, pode cochilar para conseguir voltar ao trabalho e executar a função de forma plena. Ou, por exemplo, antes de uma reunião importante que precise de concentração”, explicou.
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